Autonomia coloca USP, Unicamp e Unesp entre as melhores da América Latina

A autonomia financeira conquistada pelas três universidades estaduais paulistas há trinta anos garante seu protagonismo e excelência

O que eu tenho a ver com a USP, Unicamp e Unesp e a autonomia universitária? Se você mora no Estado de São Paulo e vai ao mercado, pega ônibus para chegar até outra cidade, frequenta bares e restaurantes ou tem internet em casa, então você tem muito a ver com o que acontece nas universidades estaduais paulistas.

É que toda vez que a gente compra uma mercadoria ou usa serviços de transporte e de comunicação, uma parte do dinheiro vai para o governo paulista. Se você olhar na sua nota fiscal, vai ver lá a parte destinada ao ICMS, um tipo de imposto.

E é uma fatia do ICMS a principal fonte de financiamento dessas três universidades, reconhecidas pela qualidade do ensino e da pesquisa e por serem gratuitas. E qual a relação disso com a autonomia universitária?

Toda. Só em 1989, com um decreto do governo do Estado de São Paulo, essa parcela do imposto começou a ser destinada às três universidades. Isso viabilizou a autonomia universitária da USP, Unicamp e Unesp. Elas puderam finalmente organizar suas contas e planejar seu futuro – e foi só depois disso que as instituições conquistaram a qualidade atestada por diferentes rankings nacionais e internacionais.

O decreto veio um ano após o nascimento da nossa Constituição mais recente, ou seja, num contexto de redemocratização em 1988. Pela primeira vez, um Estado colocou em prática o que está previsto na Carta Magna: que as universidades devem ter autonomia para decidir de que forma preferem desenvolver o ensino, a pesquisa e a gestão da instituição.

Trinta anos depois da promulgação do decreto nº 29.598, de 2 de fevereiro de 1989, o Jornal da USP traz uma entrevista com os reitores das três universidades – Vahan Agopyan, Marcelo Knobel e Sandro Valentini – e o convidamos a fazer um exercício de “futurologia”: imaginar o que teria ocorrido com a USP, Unicamp e Unesp se o decreto não tivesse sido criado. Eles também projetaram como as instituições estarão daqui 30 anos.

Professores na época da publicação do decreto relembraram como eram as universidades antes da autonomia de gestão financeira e o processo de aprovação do decreto. José Goldemberg, então reitor da USP, Carlos Alberto Vogt e Paulo Milton Barbosa Landim destacam que os recursos garantidos possibilitaram a qualificação dos professores e, consequentemente, o aumento da pesquisa e inovação.

Hoje, as três universidades juntas são responsáveis por 35% da produção científica realizada no Brasil. Ciência que impacta diretamente todo o País. Seja na descoberta de medicamentos, uma nova técnica cirúrgica, desenvolvimento de vacina, tecnologia para aumentar a produção de alimentos, políticas públicas em educação, urbanismo. Os exemplos são inúmeros.

Rankings nacionais e internacionais - ainda que não avaliem o impacto social que as três universidades possuem nas regiões onde estão instaladas, no Estado e no País com suas atividades voltadas à comunidade - trazem uma amostra da importância da USP, Unicamp e Unesp para a ciência brasileira. Elas se destacam na América Latina, onde estão entre as dez melhores. No mundo, ocupam posições entre as 500 de mais destaque. No Brasil, a excelência também é verificada: as estaduais paulistas estão entre as dez melhores.

Rankings e as três universidades estaduais de São Paulo

Times Higher Education (THE)
América Latina 2019

150 instituições avaliadas

USP

UNICAMP

UNESP

10º

QS World University Rankings 2019

1 mil instituições avaliadas

USP

118º

UNICAMP

204º

UNESP

491º

CWUR - World University Rankings 2019-2020

2 mil instituições avaliadas

USP

128º

UNICAMP

353º

UNESP

444º

RUF Brasil
2018

196 instituições avaliadas

USP

UNICAMP

UNESP

Na quinta-feira, dia 15 de agosto, as três universidades públicas estaduais paulistas se reuniram no campus Cidade Universitária da USP, em São Paulo, para comemorar os 30 anos da autonomia universitária com um evento de resgate histórico e de debate sobre os desafios desse modelo inédito.

Ouça abaixo trechos da cobertura da Rádio USP e acesse aqui mais informações sobre o encontro.

Big Bang da Ciência

Produção científica das três universidades cresceu 1.700% nos últimos 30 anos

A autonomia de gestão financeira acrescentou ao cardápio das universidades estaduais paulistas dois ingredientes essenciais para o crescimento de sua produção científica: estabilidade e previsibilidade.

A estabilidade institucional permitiu investir de forma consistente na ampliação, diversificação e qualificação técnica de seus pesquisadores, incluindo professores e alunos de pós-graduação. A previsibilidade orçamentária, por sua vez, permitiu a essa massa crítica de cientistas planejar suas pesquisas de forma mais audaciosa, apostando em projetos maiores, mais ambiciosos e de longa duração.

“A autonomia é fundamental para nós termos planejamento a médio e longo prazo”, diz o reitor da USP, Vahan Agopyan. “As pesquisas não são coisas pontuais e de curto prazo; são coisas de muito longo prazo. Então, a autonomia é essencial para a pesquisa.”

Vahan Agopyan, reitor da USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

No lugar de um orçamento imprevisível, que precisava ser negociado ano a ano com os políticos do Executivo e do Legislativo de São Paulo, a autonomia deu às três universidades estaduais paulistas um quinhão fixo da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do Estado — 5,0295% para a USP, 2,1958% para Unicamp e 2,3447% para a Unesp, em valores atuais —, e liberdade para decidir como gastar esse dinheiro.

“A autonomia deu às universidades a responsabilidade de planejar o seu próprio futuro”, diz o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) e ex-reitor da USP, Jacques Marcovitch.

O valor dos repasses varia mês a mês de acordo com as flutuações da economia — e, consequentemente, da arrecadação do ICMS —, “mas existe uma base que é previsível”, ressalta Marcovitch. Além de investir em projetos mais ambiciosos, diz ele, isso permitiu aos pesquisadores do Estado ampliar suas redes de colaboração e trabalhar de forma muito mais intensa com cientistas do exterior, impulsionando, assim, a internacionalização da ciência paulista.

Jacques Marcovitch, reitor da USP durante a gestão de 1997 a 2001. Foto: Wikimedia Commons

O resultado, somado todos os fatores, foi um crescimento explosivo da produção científica dessas três universidades nos últimos 30 anos. Juntas, em 1989, elas publicavam cerca de 1.200 trabalhos científicos por ano em revistas indexadas da base Web of Science (referência na literatura científica internacional). Em 2018, três décadas de autonomia depois, foram mais de 22 mil — um aumento de 1.700%, segundo os dados compilados pelo Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi) da USP, à pedido da reportagem. Um verdadeiro “big bang” na produção de conhecimento científico e tecnológico.

Os benefícios extrapolam os limites do Estado, já que muitas das pesquisas produzidas aqui têm relevância nacional. Por exemplo, na área da saúde, biomedicina, meteorologia, urbanismo, engenharia, agricultura, biotecnologia, robótica, inteligência artificial e tantas outras.

O grau de impacto internacional dessas pesquisas também cresceu no período, ainda que de forma mais modesta. O diagnóstico varia de acordo com a disciplina e as métricas utilizadas na avaliação. Em algumas áreas, como medicina, física e ciências da vida e da Terra, a pesquisa paulista se destaca entre as melhores do mundo.

“Dizer que a autonomia não contribui para a produção científica seria uma heresia; mas dizer que ela é o fator determinante também é incorreto”, avalia o professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e ex-pró-reitor de Pesquisa da Universidade, José Eduardo Krieger.

José Eduardo Krieger, ex-pró-reitor de pesquisa da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Segundo ele, a autonomia provoca uma série de “retroalimentações virtuosas” que beneficiam o desempenho da Universidade como um todo, mas a força da ciência paulista depende de uma combinação de fatores também externos às universidades. Entre eles, a pujança econômica e a tradição política de apoio à ciência e à tecnologia no Estado.

Uma engrenagem fundamental nesse sistema é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Criada em 1962, antes mesmo da Unicamp e Unesp, ela tem uma autonomia semelhante à das universidades e recebe, desde 1989, 1% da receita tributária estadual — garantindo, assim, uma base de estabilidade e previsibilidade na disponibilidade de recursos para ciência e tecnologia no Estado.

Desde 2015, apesar da crise econômica, o valor investido pela Fapesp em bolsas e projetos de pesquisa no Estado supera a marca de R$ 1 bilhão por ano (foi R$ 1,2 bilhão em 2018), blindando a ciência paulista dos efeitos mais nocivos do colapso orçamentário das agências de fomento federais (Capes e CNPq).

Carlos Henrique Brito Cruz – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

“O regime de autonomia virou o jogo aqui em São Paulo”, diz o diretor-científico da Fapesp e ex-reitor da Unicamp, Carlos Henrique de Brito Cruz.

Além do aumento das cooperações internacionais, ele coloca em destaque o crescimento das interações entre academia e indústria. O número de trabalhos científicos publicados por pesquisadores das três universidades estaduais paulistas em coautoria com pesquisadores de empresas, segundo ele, aumentou de menos de 10, em 1989, para mais de 560, em 2018. “Creio que esse é um indicador poderosíssimo para mostrar como a interação em pesquisa entre universidade empresa tem crescido fortemente, ao contrário do que se diz com frequência contra a boa universidade pública”, afirma Brito Cruz.

“Tirar a autonomia das universidades seria um tiro no pé”, alerta Marcovitch. “O Estado de São Paulo é o que é hoje graças às pesquisas e aos recursos humanos altamente qualificados que são produzidos nessas três universidades.”

Dados compilados pela Fapesp mostram que o número de mestres formados pela USP, Unicamp e Unesp cresceu 300% nos últimos 30 anos; e o de doutores, quase 600%, apesar de o número de funcionários ter diminuído 22% e o de docentes, 1,4%. As receitas do Tesouro repassadas às universidades, por sua vez, cresceram apenas 50%. “Todos os resultados cresceram mais do que o custo”, aponta Brito Cruz. “É a fórmula da eficiência.”

Apesar do balanço positivo, Krieger acredita que as universidades ainda “usam pouco” a sua autonomia. “A USP é a melhor universidade de pesquisa, mas deveria ser muito melhor do que é”, diz o ex-pró-reitor. “Acho que poderíamos fazer muito mais com essa autonomia.”

Ele cobra uma postura mais firme das universidades, por exemplo, no debate de temas controversos em que a decisão mais correta, do ponto de vista científico, pode não ser a mais popular do ponto de vista da opinião pública ou da política.

Onde estão as universidades estaduais paulistas?

O antes e depois da USP, Unicamp e Unesp

Os números ajudam a mostrar a evolução das três universidades nos últimos 30 anos. Número de vagas, quantidade de alunos, formação de mestres e doutores e publicações científicas tiveram grandes saltos. Apesar de ter mais que duplicado a quantidade de estudantes na graduação e quase triplicado na pós-graduação, o número de professores e funcionários teve queda no período.

Vagas na graduação

1989

12.584

2017

22.169

Alunos de Graduação

1989

57.055

2017

118.920

Alunos de Pós-Graduação

1989

23.270

2017

69.533

Professores

1989

11.065

2017

10.914

Funcionários

1989

35.167

2017

27.593

Títulos de Mestre

1989

1.571

2017

6.311

Títulos de Doutores

1989

767

2017

5.302

Publicações científicas

1989

1.064

2017

17.175

Fonte: Fapesp (Incites/Web of Science/Clarivate - Anuários USP, Unicamp e Unesp)

Quanto as universidades recebem do governo do Estado de São Paulo?

Entre os tributos que compõem a receita do Estado de São Paulo está o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, o ICMS. Parte do arrecadado com o imposto é dividido entre o Estado e os seus 645 municípios. Dentro da chamada cota-parte que vai para o governo estadual, um porcentual é destinado para as três universidades estaduais paulistas.

Primeira reunião do Cruesp após o decreto de autonomia universitária, em 14 de fevereiro de 1989 - Foto: USP Imagens/Arquivo/Oswaldo José dos Santos

Autonomia de gestão financeira: professores qualificados,
mais produção científica

As verbas para o pagamento de pessoal eram mais ou menos garantidas, bastava ver o que tinha sido gasto no ano anterior. Evidentemente havia outras verbas, como quando se queria criar um novo curso, ampliar vagas e assim por diante. Então havia sempre uma necessidade de uma relação boa com o governo, a fim de que essas verbas conseguissem ser destinadas para a universidade

Era uma época de inflação muito grande, então a administração do orçamento era uma situação que exigia uma atividade constante do reitor e dos seus auxiliares, para suplementações e coisas desse tipo

Dentro da universidade, as carreiras docentes estavam organizadas como estrutura de carreira. Do ponto de vista das estruturas técnicas e administrativas, era um horror, era uma situação catastrófica. Porque todo o funcionalismo das universidades estava vinculado ao sistema geral do funcionalismo público, e isso criava problemas

Se você não tem economias suficiente em sua conta, você vai conversar com o gerente do banco, como ele te trata? A sua cadeira com as pernas menores e a cadeira dele com as pernas maiores... Ou seja, sempre havia uma coisa velada, posso aceitar o seu pleito, mas era sempre uma negociação que não era muito fácil

As falas acima fazem parte do relato de três professores sobre como as universidades públicas paulistas funcionavam antes do reconhecimento da autonomia de gestão financeira, em 2 de fevereiro de 1989. Os depoimentos de José Goldemberg, reitor da USP na época da assinatura do decreto, Carlos Alberto Vogt e Paulo Milton Barbosa Landim revelam as dificuldades de fazer ensino, pesquisa e extensão sem ter a garantia de recursos para planejar cursos e qualificar professores e funcionários, em tempos no qual a inflação alta comprometia seriamente o orçamento das universidades.

Os professores também contam sobre as negociações que levaram a assinatura do decreto da autonomia e o impacto da medida, que permitiu a ampliação do número de alunos, da titulação dos professores, da capacitação dos funcionários e da produção científica.

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