Um latim para chamar de seu: professor defende uso da língua

Darcy Carvalho busca reabilitação diferente do latim em meio a projeto de divulgação de obras científicas

 20/07/2017 - Publicado há 7 anos
Por
O deus da comunicação, Mercúrio, em detalhe da pintura de Hendrik Goltzius, 1611 – Ilustração: via Wikimedia Commons

Expulso ad infinitum por suas ideias rebeldes do fórum virtual sobre latim de que participava, Darcius Carvalius parece estar sozinho em sua batalha. A versão gladiadora do nome é aquela com que o professor Darcy Carvalho se identificava no site Grex Latine Loquentium, espaço de discussão sobre o latim onde procurou compartilhar suas ideias nada ortodoxas sobre o aprendizado e uso da língua. Ali chegou a escrever cerca de 600 cartas. Todas, claro, em latim. “Eles eram todos latinistas clássicos e eu era da ideia de que não era a hora de ser latinista clássico, mas simplesmente aprender latim comum. Latim como meio de comunicação.”

Por sua forma um tanto rude de lidar com certas colegas de site, ganharia o apelido de “amazônico”, conta o professor. A sentença da expulsão viria por ordem do polonês “Draco”, usuário com mais poderes na comunidade que faria de Darcius persona non grata. Professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, Carvalho dedica-se a difundir um uso atual do latim que siga uma ordem mais parecida com a das línguas latinas modernas, como o próprio português. Ele assevera: “Não é latim vulgar. É latim.”

A ideia é que a língua de Catulo (poeta romano) possa ser usada na escrita cotidiana e mesmo na redação de trabalhos acadêmicos. “O latim traz universalidade”, diz. Mas e o inglês? “Ora, então vamos mudar de língua. O latim é a base da nossa língua, da nossa cultura.” Falar já é uma questão mais complicada por conta da grande variedade de pronúncias que o latim tem, explica o professor. Seria preciso entrar em acordo sobre qual delas adotar para que a tertúlia corra bem. Mas essa não tem sido a prioridade no momento: “Como é que eu vou conversar se eu fui expulso de um grupo que só escreve?”.

As obras completas de Erasmo de Roterdam em latim são parte do acervo digital construído pelo professor Darcy Carvalho – Foto: Reprodução

Na empreitada para estabelecer sua proposta, Carvalius encontrou um site em modelo wiki dos alunos da graduação em Filosofia na Unicamp voltado para a disciplina de latim, presente na grade do curso. “O site na verdade não tinha nenhum conteúdo. Só o título. Os alunos ainda estavam começando. Quando eu fui expulso da Grex resolvi colaborar com eles para escrever latim de novo.”

Aproveitando-se da estrutura editável, o professor rapidamente passou a usar a página para registrar suas ideias e métodos. Porém pouco efeito causou. Às vezes, recebia um e-mail avisando que a página havia sido alterada. Mas as mudanças vinham dele mesmo, que, por vezes, fazia as edições de computadores que não o seu próprio. Nada disso o desanimaria. Quando o espaço para editar a página acabou, abriu um site próprio.  

O professor dedica-se também ao cultivo de um amplo acervo virtual de obras em domínio  público, todas disponibilizadas em seu perfil no site Archive.org. Além de diversas gramáticas e dicionários de latim, a página também abriga materiais para estudo autodidata de diversas outras línguas, como árabe, russo, alemão, italiano. É possível encontrar até um dicionário inglês-ucraniano. Há ainda livros de história do pensamento econômico brasileiro, matemática para economistas, geopolítica, filosofia, entre outras áreas. São obras recolhidas ao longo de sua trajetória acadêmica, das quais Carvalho faz uma cópia integral em papel e depois pede para ser digitalizada. A curadoria é feita exclusivamente por ele. Tal como as bibliotecas pessoais, o acervo digital, que conta com quase 650 obras, constitui um verdadeiro arquivo de si.  

Reabilitar uma língua

Um uso contemporâneo do latim como língua científica ou para comunicação mais ampla tem seus defensores espalhados mundo afora. Há desde livros didáticos da língua para crianças até iniciativas célebres, como a rádio finlandesa que anuncia notícias em latim. A proposta de Carvalho, apesar de semelhante na intenção de popularizar o idioma, é difícil de ser enquadrada.  

O interesse por línguas associa-se aos estudos sobre geopolítica e economia internacional, temas com forte presença no acervo digital construído pelo professor – Foto: Divulgação

Pensar o latim como instrumento para educação e produção científica se aproxima da proposta do latim moderno, ou neolatim, forma que surge por volta do século 16. Mas o professor conta que também se inspira na simplicidade do latim medieval. Menciona que a vulgata, versão latina da Bíblia, adota em larga medida a ordem do hebraico, língua original de quase todo o velho testamento. “Isso é um argumento para mim. Eu posso escrever latim com a sintaxe que bem entender. Já fizeram isso.”  

A proposta do professor ainda não tem angariado muitos adeptos, apesar de seus esforços de divulgação. Sendo economista de formação e autodidata no aprendizado da língua, sente que a falta de uma titulação mais adequada o impede de ter mais espaço e voz nas discussões da área.

“Essa ideia de um novo latim para todo mundo não é aceitável por nenhum professor de latim. Nenhuma instituição tradicional ou acadêmica de latim prega isso. Porque seria o mesmo que tirar o ganha-pão deles. O ganha-pão deles é ensinar Cícero”, ressente-se.

Mas Carvalho não desiste do projeto. Pretende organizar as ideias que já registrou sobre o aprendizado da língua e seguir com o levantamento de material de estudo para disponibilizar on-line. Anima-se com o número de downloads das obras que disponibiliza no archive.org, ainda que a mais baixada seja um dicionário português-espanhol sobre falsos cognatos. Já da academia, não espera muito. É por seus empreendimentos na internet que pretende espalhar a palavra de um outro latim. “O que me irrita é esse pessoal da faculdade não se interessar por nada que não seja tradicional.”  


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.