Este 14 de março marca um ano do assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. O Escritório USP Mulheres, projeto que busca o alcance da igualdade de gênero e do fim da violência contra a mulher na Universidade, publicou texto e ilustração em memória da vereadora morta em 2018 em uma emboscada.
“Para marcar esta data, convidamos duas mulheres negras para – em palavras e traços – homenagear a memória de Marielle e afirmar que sua luta e inspiração estarão sempre PRESENTES”, divulgou o Escritório.
Síndrome social do pânico
Zainne Lima da Silva
como nos dias que mataram Marielle e as dezenas na favela de Acari, respirar me
pesa o peito. uma pessoa negra sempre sai de sua casa com o medo como
companhia. é uma presença velada, fantasmagórica, mas sempre está lá. está nos
olhares das pessoas, na polícia armada, no mendigo caído no chão, pedindo
comida. o medo de um passado que se atualiza com novas roupagens, sempre a
dizer: você tem que morrer.
penso em cada rosto que está implicitamente ameaçado. rostos negros, indígenas,
de mulheres, de pobres, de LGBTs, de nordestinos, de professores, de artistas, de
macumbeiros, de maconheiros, de putas, muçulmanos, de refugiados, de
comunistas; de qualquer pessoa que se note contrária à ideia de branquitude
hegemônica e conservadora. a ideia de violência fascista, isto é, em palavras
cotidianas normais: aquela que diz que todos estes rostos não são dignos de existir.
que são rostos que merecem o aniquilamento, a porrada, a vergonha, a crucificação
em praça pública. ideias de anticristos. ideias religiosas com desculpas cristãs, mas
absolutamente anticrísticas, uma vez que substituem o tal do amor ágape pelo ódio
higienista daquele que veio para roubar, matar e destruir.
nunca pensei ter de me preparar para a guerra. está certo que o sistema é uma
guerra entrelinhas, uma guerra fria, no plano da estrutura, e que ele, desde o
princípio, me quer enterrada como meu pai, meus tios e meus avós. como os meus
antepassados nos navios negreiros, nas vielas, nos quilombos e favelas. mas eu
quero viver. minha vida se baseia na esperança de que há uma voz em minha
garganta e que posso gritar, mesmo que seja em linhas como essas. e se me
tirarem a literatura? e se me deixarem louca depois de ver tanta morte ao meu
redor? se caírem mil ao lado e dez mil à minha direita?
uma mulher construída como bandeira política foi desasteada por arma de fogo.
matar Marielle não foi simplesmente tirar uma vida, todo mundo sabe. mas o que
não sabem é que a morte de uma pessoa negra dói em toda a comunidade. que
matar um de nós é matar cada um de nós. nos inflamar em raiva. e nos multiplicar
em força. a cada queda, um voo mais alto. um voo mais alto. um voo mais alto.
está ouvindo o barulho dos tiros? é meu pesadelo toda noite. eu durmo pouco, cheia
de insônia, de coceira, de cortes na pele do rosto pelo nervosismo que me invade.
logo não tem lei ao meu lado. estou, como estavam anos atrás, sobrevivendo no
inferno. cuidado! socorro! a ameaça é real; o cotidiano, suicida. há uma mordaça
sendo exposta e eu sou o alvo desejado. vejam no meu choro o meu pedido de
ajuda. minhas forças são palavras e só posso existir ao lado delas. eu escrevo. eu
persisto.
please, let my people go.
ou passaremos por cima de vocês.
Zainne, oficialmente Zainne Lima da Silva, filha de retirantes nordestinos, nasceu em 26 de dezembro de 1994 e vive em Taboão da Serra, São Paulo. Estudante de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, escreve para a Coletiva Entre Irmãs de mulheres negras. Foi alfabetizada em casa aos cinco anos; desde então, nunca parou de por em palavra o que vem à cabeça. Sua produção, em poesia e prosa, se encontra em livros, revistas e sites de literatura. Entre 2016 e 2017 foi estagiária do Escritório USP Mulheres.