Série de conteúdos produzidos pelo projeto Ciclo22, que remete à reflexão da USP sobre quatro grandes marcos (1822, 1922, 2022 e 2122): o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna, o tempo presente e os desafios para os próximos 100 anos

Foto: 123RF

Todo termo pode ser impreciso quando se fala em diversidade, diz professor da USP

Em entrevista, Ricardo Alexino Ferreira, da Escola de Comunicações e Artes da USP, afirma que a melhor maneira de abraçar a diversidade na comunicação é deixar que os grupos falem

 31/03/2023 - Publicado há 1 ano

Crisley Santana

Desde a Constituinte de 1988, o Brasil passa por mudanças. O respeito às diversidades entre grupos tem se mostrado um dos maiores desafios entre elas. Para o professor Ricardo Alexino Ferreira, do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em São Paulo, as terminologias têm se mostrado um dos grandes desafios dos comunicadores. Alexino produz o podcast Diversidade em Ciência, exibido pela Rádio USP e pelo Jornal da USP.

Permitir que os diferentes segmentos se definam é o que há de mais contemporâneo na mídia, segundo o professor. A mudança apresentada na imprensa nacional, por exemplo, está conectada às pressões dos grupos sociais que se mobilizam desde a redemocratização. Leia na entrevista abaixo.

20230327_ricardo_alexino_ferreira_eca_usp

Ricardo Alexino Ferreira, professor da ECA-USP

Tem sido mais frequente vermos produções midiáticas demonstrando a diversidade brasileira. Na sua opinião, há um abraço midiático à diversidade? E se há, qual a complexidade desse abraço?

Está no agendamento a questão das diversidades. Esse fenômeno vem acontecendo com mais força desde 1988. Digo isso porque nós temos nesse ano o Centenário da Abolição da Escravatura no Brasil, então é um momento em que o Brasil está no processo de redemocratização.

Tinha acontecido o movimento Diretas Já e ao fim dele temos o primeiro presidente no processo de abertura democrática, mas eleito indiretamente. Ele morre, assume o José Sarney. Então, ao final de 1987, o movimento negro diz para o Sarney: 

— Olha, 1988 é o Centenário da Abolição da Escravatura e não é um ano de comemoração, mas de reflexão.

Isso dá um tom de como seria a cobertura ou agendamento do Centenário da Abolição. Muitos fenômenos começaram a acontecer naquele momento. 

Nós temos, então, os trabalhos da Constituinte. Carlos Alberto Caó de Oliveira, deputado federal do PDT (Partido Democrático Trabalhista) do Rio de Janeiro, propõe uma substituição da Lei Afonso Arinos por uma lei mais rígida: racismo como crime inafiançável e imprescritível perante a lei. Então começamos a ter todo um debate em cima disso. 

Começa também a questão das terminologias. Como nomear uma pessoa negra? Antes não tinha essa preocupação. Como chamar essa pessoa? A imprensa começa a ter um desafio de como cobrir assuntos sobre pessoas negras. Qual é o termo a ser utilizado? Começa a ter destaque uma classe média negra, que começa a fazer entrar esse debate do racismo como sendo algo que existe no Brasil. Tem também a ONU (Organização das Nações Unidas) convocando os países ligados a ela para o combate do Apartheid na África do Sul, e a libertação de Nelson Mandela.

Começa também todo o movimento voltado, por exemplo, à Campanha da Fraternidade da Igreja Católica, que vai tratar a questão do racismo nas suas campanhas. O Carnaval também vai abordar isso. Então há toda uma sociedade que começa a se voltar para essa temática. É interessante que, já em 1989, um outro grupo que era pouco apresentado dentro da imprensa começou a surgir: o grupo gay. Na época, chamado GLS  —  Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Inclusive, a Folha de S. Paulo, através do jornalista André Fischer, começa a tratar do assunto. Você começa a ter um movimento que vai crescendo e puxando outros grupos também. Entra a questão de gênero, mulher, e vai numa evolução… A questão do idoso; de pessoas com deficiência. 

A partir dos anos 1990, começa aquilo que é a base para o que estamos discutindo hoje como agendamento das diversidades, principalmente dentro da imprensa. Mas, pegando toda a mídia, essa questão começa a ser trazida também por telenovelas, para o cinema e na publicidade. 

Esse agendamento, e não só no Brasil, porque praticamente muitos países começam a fazer esse debate, a questão das diversidades vai numa evolução do ponto de vista das teorias. Nós temos os estudos culturais de Stuart Hall, que começa também a ser mais bem compreendido. Ele trabalha sobre a questão operária na Inglaterra, e grupos que não eram muito citados, então vai tendo uma evolução que hoje se chama decolonialidade: ouvir as vozes que não eram ouvidas. 

As vozes mais ouvidas eram vozes eurocentradas ou dos Estados Unidos. Países ricos. Mas hoje, por exemplo, dentro desse pensamento da decolonialidade, se eu quero falar sobre indígena, eu vou até lá e vou ouvir o que o indígena tem a dizer. Se eu quero falar sobre quilombolas, eu vou lá e ouço o que os quilombolas têm a dizer. Eu vou pegar a produção desses grupos, daquilo que eles já produziram. Isso é o que tem de mais contemporâneo hoje. 

O movimento de 1988 até agora em relação à diversidade tem uma construção teórica muito presente dentro da Universidade. A diversidade está no agendamento político, no agendamento social, no agendamento cultural, no agendamento científico também. Hoje, dentro da Universidade, a decolonialidade é um paradigma muito importante. A diversidade não é só uma ação que fica à margem. Ela está na essência, e ao mesmo tempo em que temos a questão das diversidades, temos as antidiversidades. É uma reação. Vai ter um aumento do racismo, aumento da homofobia, da violência de gênero. Vai tendo um aumento ao contrário também.

Eu nem diria aumento, mas uma publicização da violência contra as diversidades. Talvez isso era legitimado, não se falar hoje é inadmissível. A questão da diversidade na contemporaneidade tem uma repercussão muito grande. Ela trouxe visibilidade para os grupos e também a denúncia dos casos de violência e o entendimento de que as pessoas que pertencem às diversidades não são apenas coisas. São pessoas cidadãs, que detêm direitos.

É um movimento muito interessante porque ele mexe com várias camadas da sociedade, com vários entendimentos. Ele vai mexer com vários setores sociais. É uma pedra jogada no meio do lago que vai tendo várias ondas até chegar às margens. A importância das diversidades é essa. Em 1988, eu dizia: neocidadão. Novos cidadãos, do século 20 e que tomam com muita força o século 21.

E o jornalismo? Será que o jornalismo tem abraçado a diversidade de maneira eficaz?

A formação do jornalista ainda precisaria ter mais ênfase na questão das diversidades. Se você pegar a própria USP, e isso se repete em outras universidades também, são poucas as matérias que trazem as diversidades como tema. Ainda que seja um tema que está no agendamento e tem sido falado, os cursos de jornalismo não se empenham muito em trazer essas questões de forma transversal, passando por todas as disciplinas, desde as disciplinas de legislação às laboratoriais e teóricas. Por exemplo, tem muitos alunos que passam pelo curso vendo muito mal as teorias da comunicação. E nem veem as teorias que tratam das questões das diversidades, que são a base para abordar isso. Há estudantes que nunca tiveram estudos culturais, alunos que nunca estudaram sobre decolonialidade. Eles estão passando sem saber essa temática.

Está no agendamento, e eu diria que nem tanto pela intenção da imprensa, mas muito mais pelos movimentos sociais que pressionaram essa temática. Agora, a grande imprensa começa a correr atrás, colocando, inclusive, as periferias. Então nas periferias os movimentos sociais começam a falar:

— Olha, queremos falar sobre nossa própria realidade.

Então, o que esses movimentos fazem? Começam a contar a própria história. Eu utilizo o termo favela porque é como as pessoas querem. Antes eram chamadas de comunidades e muitas pessoas falaram: 

— Não. Comunidade, não. Comunidade dá uma ideia de que tá tudo bem. 

As pessoas moradoras desses espaços querem que esse espaço seja chamado de favela, mas que não se use o termo favelado, pois é lógico que é extremamente pejorativo. Então você começa a ver que dentro desses espaços periféricos, por exemplo, começa-se a desenvolver certos movimentos sociais ligados à comunicação utilizando o rádio, a internet.

Eu diria que a melhor forma de se falar dessas questões seria com os grupos que pertencem às diversidades. Pegando, por exemplo, as questões das periferias: esses grupos estão criando veículos de comunicação que possam falar sobre essa realidade, assim como o segmento LGBTQIA+  e os outros segmentos vão criando informações, ou veículos próprios, utilizando a internet para falar das suas realidades. Isso é um ponto importante. 

A grande imprensa foi fazendo isso porque ela percebeu que era uma demanda social, mas mesmo assim os jornalistas levaram muito tempo para entender que a sigla não é simplesmente uma junção de palavras. Ela implica uma percepção de mundo, uma mudança. Ela tem um teor político, social e cultural. 

No entanto, se encontra jornalistas até hoje criticando o politicamente correto, sendo que o politicamente correto é extremamente importante para tentar resgatar a diversidade. Não tem como você falar de diversidade sem trazer o politicamente correto. Por exemplo, chamar uma pessoa com deficiência de “aleijada”. Quer dizer, até dói nos ouvidos, mas se formos lembrar, esse termo era amplamente utilizado há uns 30 anos. Hoje, “pessoa com deficiência” é o melhor termo porque essas pessoas querem ser reconhecidas assim. Politicamente correto é qual é a forma correta de eu designar pessoas, e implica ouvir aquilo que essas pessoas têm a dizer. 

Um dos segmentos das diversidades que eu considero, em termos de terminologia, tratamento de compreensão, um dos mais difíceis, mais complexos, é o LGBTQIA+. É o segmento que tem uma variedade de palavrinhas ali que eu não sei como resolver, porque cada palavra daquela é uma identidade. E isso é positivo. Não são todos iguais. São identidades diferentes. Mas a sigla está ficando enorme, justamente por se compor de identidades complexas e totalmente diferentes entre si. Não é somente sobre pessoas que gostam do mesmo sexo. Você tem uma variedade muito grande dentro desse universo, então um dos grandes desafios hoje nas questões das diversidades e que a imprensa, o jornalista, ainda se depara e, muitas vezes, não sabe como trabalhar é o LGBTQIA+. No mais ele vai somando mais siglas. As terminologias são muitas.

Eu, por exemplo, quando vou escrever sobre o segmento LGBTQIA+, dou uma olhada se houve alguma mudança porque é muito líquida a questão das terminologias. É bastante complexa. Em relação ao negro, por exemplo, é outro termo que também vai mudando muito. Então, há uns 40 ou 30 anos, chamar uma pessoa preta de parda não era correto, mas hoje faz parte da terminologia. 

Eu, por exemplo, não gosto do termo pardo porque acho ele impreciso. Quem participa de comissão de heteroidentificação, por exemplo… É uma questão bastante complexa porque a pessoa pode se dizer parda, então ela está dentro do universo negro. Existe uma complexidade nisso, pois é tudo muito líquido. Tudo vai mudando com muita rapidez e passa pela questão da terminologia. O jornalista, muitas vezes, está fazendo muito mais por intuição do que por conhecimento, porque justamente no espaço que ele teria para poder conhecer isso, não está sendo colocado. 

Eu dei aulas na Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) durante muito tempo, dava aulas de jornalismo especializado, e fui um dos primeiros professores a inserir no curso, e também dentro do jornalismo científico, a questão da diversidade e das terminologias. Naquela época, estou pegando aí um ano de 1995, tinha muita reação ainda em relação a isso. Não era uma coisa tranquila. É até absurdo isso. 

Eu me lembro que teve um congresso em Portugal de jornalistas em que eu levei essa questão do jornalismo na cobertura. Ainda chamava-se de grupos minoritários. Eu estava apresentando sobre a questão gay, que ainda não tinha o tema LGBTQIA+ e ainda era muito utilizado GLS. Uma pessoa na plateia se levantou indignada e perguntou o que eu estava achando, em qual lugar eu estava. Isso foi em 1997. Foi como se eu estivesse falando uma imoralidade contra aquela plateia. Então imagina só, essa temática ainda estava longe do jornalismo e eu percebo que hoje ainda poucos professores abordam isso. 

Dentro do curso de Jornalismo tem pouquíssimos professores abordando essas questões. São questões complexas. Não é só eu sentar e escrever sobre alguma coisa, por exemplo. Como jornalista, não é possível falar que isso não tem importância.

Um desafio que a gente está tendo hoje, por exemplo: eu chamo “idoso”, “terceira idade”, “melhor idade”? E aí os idosos já estão fazendo um movimento que eles querem ser chamados de “velhos”. É um termo que eu não gostaria de usar, mas se o segmento falar que quer ser chamado de “velho”, não será eu que vou falar “não, esse termo não serve”. Então há essa escuta do outro. É um desafio para o jornalista. Há matérias em que o jornalista está falando de pessoas que têm relação com outras do mesmo sexo e utiliza o termo “homossexualismo”, quando esse termo pertencia à era vitoriana, que designa doença, desvio. Mesmo o termo homossexualidade já está se tornando um termo obsoleto. Hoje já se fala em uma afetividade, mas homossexualidade ainda está dentro de um campo correto de designação, mas a gente está evoluindo para homoafetividade. Então tudo é muito dinâmico. 

A questão das diversidades é transversal. Ela passa pela sociedade como um todo. Na minha tese de livre-docência eu até substituí o termo “minoritário”, por exemplo, que é tranquilo para as Ciências Sociais, pois fala de grupos com pouca expressão política e social. Mas quando é trazido para dentro da comunicação, as pessoas pensam: “minoritário porque tem poucos indivíduos”, e não. O Brasil é um país negro, e o negro seria um grupo minoritário para as Ciências Sociais, que não tem nada a ver com quantidade, pois é maioria. É considerado minoritário porque tem pouca representação social e política. Como mulheres. Trata-se de um grupo minoritário porque tem pouca representação social e política. 

No meu doutorado, utilizei “grupos minorizados”, as pessoas entendiam porque eu expliquei que minoritário traz muita complicação; tinha que ficar colocando no rodapé que eu estava utilizando o princípio das Ciências Sociais, então falei, “preciso criar um termo que é mais direto”, então “minorizado”. Só que “minorizado” as pessoas entendiam que estavam à margem social e econômica, e nem sempre. Às vezes eu estava falando da classe média negra e esses grupos não estavam à margem econômica e social. Na livre-docência eu falei: “olha, vou criar um termo que pelo menos vai dar conta, não preciso ficar explicando tanto. Então criou-se o termo “sociocêntrico”, que são aqueles grupos que independentemente do poder econômico que têm estão aí, à margem.

Outro termo que eu acabo criando dentro da livre-docência é “étnico-midialogia”, também um termo que eu precisava resolver algumas questões; eu não queria utilizar, por exemplo, etnia e comunicação, etnia e mídia. Não são duas coisas separadas. Já é um conceito. Como é que eu vou trazer os outros segmentos para dentro desse conceito? Então criei o termo “etnomidialogia”, porque ele envolvia trazer todos os outros segmentos da diversidade, mas reconheço que ainda é um termo que precisa se aprofundar.

Eu trago esse termo para disciplinas da pós-graduação, trago para a graduação, utilizo esse termo, por exemplo, em artigos e em tudo que escrevo, mas reconheço que ele precisa ser melhor amadurecido. Talvez ele mude. Então, não é uma coisa tranquila. Os termos são todos imprecisos. 

Fui diretor da Rádio Unesp e eu trazia essas questões da divulgação científica para a rádio. Tinha um programa nesse sentido e quando eu vou para a USP, eu pensei: “olha, quero trazer a questão da divulgação científica, mas não quero falar de toda a divulgação científica. Eu quero testar aquilo que eu estudei. Como é que se cobre diversidade no formato da divulgação científica?”. E foi ao ar em 2015 o programa chamado Diversidade em Ciência, na Rádio USP, e que está no ar até hoje. O foco do programa é trabalhar aquilo que eu chamo entre aspas de ciências da diversidade. Ainda não existe o termo, mas uso para fazer um recorte junto aos direitos humanos.

Achei que o programa iria durar no máximo um ano e já teria esgotado, porque as temáticas começariam a se repetir, mas foi quando me surpreendi e vi que essa temática está muito presente dentro da Universidade. Tem mais de 300 horas de entrevistas feitas. Está tudo arquivado no site da rádio, pelo menos a maioria. Cada entrevista tem uma temática diferente. Totalmente diferente. 

Eu acho que a Universidade precisa correr atrás para enfatizar isso dentro da graduação. Inclusive, apresentei para o Departamento de Jornalismo duas optativas nesse tipo de abordagem. Uma seria a Divulgação Científica com intercessão para a questão das diversidades, com foco em como cobrir esse grupo. A outra seria o livro-reportagem, que acabou saindo da grade de disciplinas, mas seria livro-reportagem com foco na cobertura de diversidades.

É uma forma de trazer isso para a formação do aluno de graduação em Jornalismo, né? Porque eu acho que na pós-graduação já está tendo uma evolução nesse sentido, as pesquisas estão evoluindo. É uma preocupação, por exemplo, da ONU, que criou 17 Objetivos Sustentáveis e um deles é a questão das diversidades. Isso está presente nas agências de fomento de pesquisa. É uma temática que está muito viva.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.