São Paulo, Londres e Berlim sob a lente da sustentabilidade

Resultado de projeto cooperativo entre a USP, o King’s College London e a Freie Universität Berlin, novo livro analisa e compara modelos implementados nas três capitais

 05/12/2024 - Publicado há 1 mês     Atualizado: 07/01/2025 às 14:18

Por Fernanda Cunha Rezende, em colaboração especial para o Jornal da USP

Fase final da Global Research Academy ocorreu na USP entre fevereiro e março de 2023 – Foto: Divulgação/Aucani-USP

 

Leia este conteúdo em InglêsUma cidade completamente sustentável é utópica, e o que funciona em um local pode não dar certo em outro. Mas conhecer projetos de sucesso, bem como possíveis fracassos, pode ajudar a desenhar e implementar propostas. Sem a pretensão de abarcar todos os problemas de sustentabilidade de grandes centros urbanos, o livro digital Rethinking Sustainability in Urban Areas: São Paulo, London, Berlin traz análises comparativas de problemas e soluções sociais e ambientais dessas três capitais. A obra acaba de ser lançada no Portal de Livros Abertos da USP e é um dos resultados da Global Research Academy (GRA). 

Sergio Costa – Foto: Academia.edu

Realizada entre 2022 e 2023 em parceria entre a USP, o King’s College London, no Reino Unido, e a Freie Universität Berlin, na Alemanha, a GRA reuniu 30 doutorandos, dez de cada instituição e de diferentes áreas do conhecimento, em torno de uma mesma pesquisa. Foram eles que escreveram os textos do livro, sob a orientação de Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP; Robert Cowley, professor do Departamento de Geografia do King’s; e Sergio Costa, do Departamento de Sociologia da Freie, coordenadores da Academia Global e organizadores da obra. A publicação soma a pesquisa referencial e em bancos de dados às constatações feitas em visitas às cidades-sede de cada uma das três universidades.

Em cinco capítulos, os autores analisam a degradação dos espaços verdes públicos; a questão dos sem-teto; o acesso à infraestrutura azul-verde (equipamentos públicos construídos próximos à água); e o desperdício de alimentos. “Esses problemas – como muitos outros desafios para a sustentabilidade do nosso mundo urbanizado – têm dimensões globais, mas suas formas concretas se relacionam com contextos locais, o que limita a aplicabilidade de soluções de ‘melhores práticas’ derivadas de experiências em outros lugares”, escrevem os organizadores no prefácio. 

Assim, os autores optaram por adotar uma abordagem comparativa fundamentada nas especificidades das três cidades, buscando não apenas diagnosticar sucessos e fracassos em relação às suas cidades de origem, mas também extrair recomendações transversais para o futuro. Cada seção foi escrita por um grupo interdisciplinar, capaz de apresentar contribuições complementares sobre os temas.   

Dois capítulos analisam a participação da população como instrumento de ação. No primeiro, os doutorandos ouviram seis instituições populares ligadas à criação e manutenção de áreas verdes nas três cidades. Com base nas entrevistas e na literatura, 13 sugestões de atuação são apresentadas. Em outra seção, os autores avaliaram o papel da participação cidadã na criação dos parques Augusta, em São Paulo, Tempelhofer Feld, em Berlim, e East London Waterworks, em Londres.

Livro e destaques sobre análise das três infraestruturas de lazer que têm a água como elemento central: a ciclovia em torno do Rio Pinheiros, em São Paulo; o Queen Elizabeth Olympic Park, em Londres; e a Potsdamer Platz, em Berlim – Foto: Divulgação/Portal de Livros Abertos da USP

 

No capítulo que trata da resiliência dos sem teto às temperaturas extremas, as diferenças climáticas de cada uma das capitais foram levadas em consideração. Por isso, as recomendações são feitas separadamente. No bloco quatro, três infraestruturas de lazer que têm a água como importante elemento foram comparadas: ciclovia em torno do Rio Pinheiros, em São Paulo; Queen Elizabeth Olympic Park, em Londres; Potsdamer Platz, em Berlim. Neste caso, os autores consideram que, apesar das diferenças de contextos, prioridades, orçamentos e pressão de atores-chave entre cada um dos locais, certos aspectos apresentados podem ser adaptados para a melhoria desses ambientes.

A publicação é encerrada com uma análise de intervenções sustentáveis para evitar o desperdício de alimentos no varejo das cidades de São Paulo e Londres – Berlim foi deixada de fora por se tratar de uma realidade muito parecida à londrina. O texto traz propostas concretas de ações que podem ser tomadas pelas capitais, adequadas principalmente à realidade paulistana, visto que, segundo os autores, os ingleses já estão à frente nesta questão. Em setembro deste ano, o grupo também publicou um artigo sobre o tema na revista científica multidisciplinar Detritus.     

Uma academia global

A produção do livro é o resultado mais concreto da Global Research Academy, mas não é considerada o principal ganho para os doutorandos que participaram do projeto. Na opinião de Kon, o desenvolvimento de habilidades sociais, a experiência internacional, de apresentar-se em público em outro idioma, e a organização de atividades nas cidades contribuíram fortemente para a formação desses alunos. “Um bom orientador deve oferecer tais desafios. Trancar-se só em leituras e escrita não é suficiente.”

Fabio Kon – Foto: IEA/USP

Idealizada em 2019, a GRA teve de ser adiada para 2022 devido à pandemia de covid-19. “A iniciativa foi resultado de um diálogo conjunto entre a USP, o King’s College e a Freie Universität, que identificaram a importância de um espaço dedicado à colaboração acadêmica entre jovens pesquisadores em doutorado”, conta o professor Sergio Oliva, coordenador executivo do programa na Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional (Aucani). 

A partir da ideia nascida nas áreas de cooperação internacional das universidades participantes, os três professores foram convidados a integrar o programa e a detalhar a proposta da pesquisa, cada um trazendo contribuições relacionadas às suas áreas. Kon é da Ciência da Computação e lidera projetos relacionados a cidades inteligentes; Cowley é da Geografia e tem como objeto de estudos o futuro dos centros urbanos; Costa é da Sociologia e integra o Instituto de Estudos Latino-Americanos da Freie, em parte consequência de ser ele um brasileiro na universidade alemã.

A complementaridade dos perfis também era pré-requisito durante a seleção dos doutorandos. Na USP, a candidatura foi aberta a todas as áreas do conhecimento, dando preferência aos alunos que estivessem no início do doutorado, já que o programa duraria dois anos. “Tínhamos perfis de pesquisa variados: geografia, mobilidade urbana, engenharia civil, medicina, arquitetura, saúde, direito. Priorizamos candidatos sem experiência internacional, pois o programa ofereceria uma oportunidade de interação cultural e profissional”, lembra Kon. Os selecionados em São Paulo receberam bolsa do Programa Santander-USP de Mobilidade Internacional.  

Tema e participantes definidos, as primeiras viagens aconteceram em duas semanas consecutivas de julho de 2022, para Londres e Berlim. Segundo Cowley, a ideia original era fazer uma cidade por ano, mas com a pandemia as atividades tiveram que ser otimizadas. “Infelizmente, isso significava que não poderíamos aprender com uma ‘primeira rodada’ de experiência para melhorar na próxima. Para complicar ainda mais, naquele ano fez um calor extremo em Londres”, conta. 

Ele lembra que os recordes de temperatura na capital inglesa, com termômetros batendo 42 graus numa cidade pouco preparada para isso, caos nos aeroportos mundiais e mudanças de última hora provocadas pela pandemia criaram um desafio a mais para a organização e os alunos. “O que surpreendentemente funcionou bem, porém, foi nossa estrutura fluida e colaborativa. Em vez de uma abordagem de cima para baixo, houve quase uma governança compartilhada”, avalia Cowley. Com tudo isso, muitas vezes os alunos resolveram os problemas sozinhos, uns ajudando os outros.    

À esquerda, seminário na FU Berlin’s International House. À direita, visita à King’s Cross Granary Square, em Londres – Fotos: Nora Jacobs/Reprodução/Aucani-USP e Robert Cowley/Reprodução/Aucani-USP

 

Em Londres, a programação consistiu em palestras pela manhã e passeios pela cidade à tarde. O grupo visitou a região de King’s Cross, recém-remodelada e que segue princípios de sustentabilidade (embora seja uma sustentabilidade “orientada pela riqueza”, segundo Cowley); fez um tour guiado por um antigo morador de rua; e visitou a região da Brick Lane e de Walthamstow, dentre outras atividades. Em Berlim, o programa seguiu o mesmo escopo, com exposições e conversas pela manhã e tours à tarde, sempre tentando conectar o tema da palestra ao do passeio. Eles visitaram a região de Tempelhof e memoriais espalhados pela cidade.

Um ano depois, quando chegou a etapa de São Paulo, a coordenação decidiu que os próprios alunos deveriam planejar e organizar o roteiro, dando a eles nova oportunidade de aprendizado. O grupo visitou um aterro sanitário, uma aldeia indígena, parques locais e de bicicleta por alguns bairros emblemáticos da cidade. A programação foi intercalada com palestras sobre temas relacionados à sustentabilidade.  

Em São Paulo, o grupo visitou um aterro sanitário, uma aldeia indígena, parques locais e fez passeios ciclísticos. Participou também de palestras sobre sustentabilidade – Fotos: Fabio Kon e Reprodução/Aucani-USP

Após as três visitas, interações com especialistas e leituras sugeridas, os participantes tinham uma visão ampla sobre as capitais, com suas similaridades e diferenças. “São Paulo oferece contrastes únicos, especialmente quando comparada a Berlim. Enquanto Londres e São Paulo representam grandes centros urbanos dinâmicos com questões semelhantes relacionadas ao capitalismo e ao investimento imobiliário, Berlim é bastante diferente em suas dinâmicas sociais e econômicas”, afirma Cowley. E complementa: “São Paulo é fortemente influenciada pelo investimento privado e pelo mercado imobiliário, o que afeta a estratificação social e o desenvolvimento urbano, de forma semelhante a Londres. Berlim, no entanto, tem um caráter distinto, mais comunitário, e uma abordagem diferente em relação ao crescimento”.

Impacto acadêmico

Um consenso entre os organizadores é que um projeto como a GRA tem múltiplas motivações, desde a pesquisa em si, passando pela experiência internacional e social dos integrantes, até o estreitamento de laços institucionais. “A relação custo-benefício é muito favorável, tanto operacional quanto financeiramente, com um grande impacto em termos de formação de redes institucionais e sociais, que se destacaram em pelo menos três níveis, incluindo o administrativo”, diz Costa. 

Para a USP, essas parcerias são consideradas estratégicas, segundo Daniel Barcelos, responsável por Redes e Programas Estratégicos na Aucani. “Experiências inovadoras como a da GRA ajudam a fomentar a interdisciplinaridade, fortalecer redes acadêmicas de pesquisas internacionais, promover a formação de novos talentos e a aumentar a captação de recursos.” 

Robert Cowley – Foto: Arquivo Pessoal

No King’s College a percepção é de que o projeto foi positivo, ainda que tenha alcançado apenas dez estudantes da instituição. Emma Bishop, gerente de parcerias para as Américas e Sul da Ásia do escritório de Global Engagement do King’s, argumenta que resultados provenientes de projetos como esse demandam tempo para ficarem claros e muitas vezes não são diretos. “Por exemplo, os programas de doutorado conjunto do King’s com a USP levaram anos para se concretizar. Não surgiram do nada — envolveram muitas viagens de ida e volta, programas colaborativos menores, intercâmbios de estudantes e intercâmbios de doutorandos até chegarmos aos doutorados conjuntos”, compara.

Em termos de contribuições imediatas para a sociedade, Costa e Cowley concordam que os impactos poderiam ter sido mais amplos. “Talvez não tenhamos explorado esse aspecto tanto quanto deveríamos. Houve um certo retorno durante o processo, com participação de associações civis e interação com o poder público, mas os artigos ainda estão em uma linguagem técnica que limita o uso prático. Seria necessário traduzir esses resultados para uma linguagem mais acessível”, afirma Costa. “Poderíamos tê-los orientado a criar documentos de policy briefing. Em seguida, enviaríamos para as prefeituras das três cidades. Ter representantes de cada local envolvidos no projeto daria a eles um verdadeiro senso de propósito”, completa Cowley.

Para Bishop e Costa, os resultados das conexões feitas a partir da GRA e dos aprendizados individuais dos doutorandos serão percebidos agora e também ao longo dos anos. “Os escritórios de relações internacionais se conectaram mais intensamente, o que é importante não só para essa atividade, mas também para futuras. Devido a essa experiência positiva, as pessoas provavelmente vão propor outras formas de cooperação entre as três instituições, talvez até participar de consórcios para aplicar para fundos internacionais”, avalia Costa.


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