Professor da USP adverte contra desvinculação de recursos para ensino superior

José Goldemberg fez a ressalva durante conferência que discutiu educação e pesquisa no Brasil

 25/03/2019 - Publicado há 5 anos
Glauco Arbix e José Goldemberg durante conferência no IEA, em São Paulo – Foto: Clara Gomes Borges / IEA

“Não compartilho da ideia de que o sistema de ensino superior e pesquisa do País esteja falido. O problema é que ele virou uma força autônoma, desvinculada da realidade brasileira. O número de publicações dos pesquisadores está no nível internacional. O que é preciso é melhorar a qualidade dessa produção.”

A avaliação é do físico José Goldemberg, Professor Emérito da USP e honorário do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Para ele, que já foi ministro da Educação e reitor da Universidade, é preciso também que o sistema produtivo do País tenha maior participação no 1% do PIB que o Brasil destina à pesquisa. “A ideia de que a universidade vai resolver o problema da competitividade do Brasil é incorreta; é preciso um sistema dinâmico de empresas competitivas, pois as universidades estão muito bem preparadas para atender à demanda de um setor produtivo mais criativo.”

Goldemberg apresentou sua visão sobre essas questões na conferência Ensino Superior e Pesquisa no Brasil, no dia 19 de março, dentro da programação do Observatório da Inovação e Competitividade (OIC), núcleo de apoio à pesquisa sediado no IEA.

Ele comentou que o sistema brasileiro conta com 475 universidades, com oito milhões de estudantes e um índice de 38 universitários por mil habitantes. Esse índice é de 33 no Reino Unido. O Brasil está dentro da média mundial, segundo o físico. “Nenhum país do mundo tem universidade para todos. O sistema mais abrangente é o da Coreia do Sul e por esse motivo está doente”, afirmou.

Orçamento para o ensino superior 

Pode-se considerar que o Ministério da Educação tenha um orçamento em torno de RS$ 100 bilhões, com dois terços desse montante indo para as universidades, principalmente para o pagamento de salários, comentou.

Goldemberg atribui a causa profunda para a crise pela qual passa o setor a dois aspectos relacionados com o artigo 207 da Constituição Federal, “um dos mais discutidos durante a Constituinte”. Um dos aspectos é a questão da autonomia das universidades e o outro é a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

José Goldemberg – Foto: Clara Gomes Borges / IEA

O tema da autonomia volta ao debate diante da intenção do governo em modificar o sistema de financiamento das universidades, comentou. “A Emenda Constitucional 93, que permitiu maior desvinculação orçamentária, preservou a educação e a saúde, mas, agora, o governo está propondo uma desvinculação completa.”

“A desvinculação é o sonho do Ministério do Planejamento desde que me lembro”, afirmou Goldemberg. No entanto, argumentou que, mesmo com a vinculação, os recursos são insuficientes, uma vez que apenas um terço dos estudantes vai para universidades públicas. Por outro lado, ele considera que a desvinculação “é mais um fantasma, não vai mudar muita coisa, pois a maioria das despesas são com pessoal e as pessoas são concursadas, não podem ser demitidas.”

Diversidade

Uma segunda questão relacionada ao sistema de ensino superior – “e que nem chegou a ser discutida durante a elaboração da Constituição” – é a não instituição de modelos diferenciados de universidade. “Em 1974, Miguel Reale era reitor da USP e já argumentava que seria muito ruim se todas as universidades quisessem seguir o modelo da USP”, comentou Goldemberg.

A concessão indiscriminada do Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) é um exemplo de uniformização indesejada, segundo ele. “Todos querem entrar para o RDIDP como se fosse uma reivindicação salarial, não como decorrência das atividades de pesquisa. Essas coisas tornam o orçamento do ministério completamente virtual. O ministro não tem nada a fazer, a não ser autorizar todo mês pagamentos definidos por critérios diversos.”

A única área em que o ministro tem algum poder discricionário para o direcionamento de recursos é o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, afirmou. “Por isso todos sempre querem um político como ministro, para que ele atenda às demandas políticas com o fundo.”

Goldemberg defende que deveria ter sido criado um sistema duplo, com uma parte das instituições sendo do tipo USP e outra constituída por um sistema de colleges similar ao americano e de outros países, com cursos superiores de dois ou três anos para capacitação para o mercado de trabalho. “A única coisa parecida que temos é o sistema das Fatecs [Faculdades de Tecnologia] em São Paulo.”

Pesquisa

O crescimento do total de mestres e doutores titulados a cada ano está entre 10% e 11%, “maior do que o crescimento de qualquer outro indicador no Brasil”. No entanto, a grande maioria desses pós-graduados vai trabalhar em educação, e um pequeno número vai para áreas profissionais, científicas e técnicas, de acordo com ex-ministro. “O sistema é bom para produzir gente com titulação razoável para o próprio sistema. É uma locomotiva sem ligação com os vagões”, em sua opinião.

Ele criticou também a pulverização das atividades de pesquisa entre grande número de pesquisadores e grupos de pesquisa. “Isso dificulta o estabelecimento de linhas condutoras dos trabalhos. A ideia de criar laboratórios nacionais é boa, desde que eles tenham uma missão, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. No entanto, o CNPq e a Capes acabam criando laboratórios que são ficção. A única coisa que eles têm de nacional é o fato de terem pesquisadores de vários Estados.”

Em relação às universidades estaduais paulistas, Goldemberg disse que o desempenho delas é bom – “e está melhorando” -, mas considera que o papel desempenhado pela Fapesp no apoio à pesquisa deveria ser auxiliar. “O problema é que as três universidades gastam todos os seus recursos em despesas de pessoal, não podendo seguir o que se pretendia estabelecer no decreto sobre a sua autonomia, com a limitação dos gastos com pessoal em 75% do orçamento.”

“Não conheço nenhuma universidade no mundo que não tenha de 20% a 25% de seu orçamento para atividades acadêmicas. As universidades paulistas dependerem da Fapesp para isso, não é o ideal. Uma universidade deve ter um mínimo de recursos para seu trabalho acadêmico, independente do que aconteça fora dela.”

Uma das coisas que ele se arrepende, disse, “é ter permitido que fosse retirado” do decreto o limite de gasto com pessoal. “A não inclusão disso foi um excesso de zelo por parte dos burocratas do governo do Estado. Para eles, isso reduziria a autonomia das universidades, o que é verdade.”

Meritocracia

Durante a fase de debates do evento, Oswaldo Ubríaco Lopes, ex-pró-reitor de pós-graduação durante a gestão de Goldemberg como reitor, defendeu que universidades como a USP devam ser dedicadas à formação da elite intelectual do Brasil. “Todo país tem uma elite, Cuba tem uma elite. Para uma universidade ser de elite, tem de ter um processo de seleção de seus alunos diferente.”

Goldemberg respondeu que é preciso haver uma noção clara do porquê se quer uma universidade. “Em qualquer sociedade é preciso haver pessoas que pensem melhor do que as outras. Napoleão, diante da necessidade de movimentar seus exércitos, criou a escola politécnica para formar gente que construísse as estradas.”

Os criadores da USP queriam que a ciência e a cultura de São Paulo entrassem no mundo moderno de então, afirmou. “Tentaram fazer o que a Semana de Arte de 1922 fizera pelas artes”. Mesmo a criação do regime de dedicação integral, incluída no decreto de criação da USP, fazia parte dessa intenção. “Era algo especial, não era para muitos. Tanto que, até tempos atrás, era concedido por decreto do governador. Acabou virando algo como um piso salarial.”

José Eduardo Krieger – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Para Goldemberg, a discussão sobre cotas para ingresso, “para que a universidade resolva um problema social, envenena a instituição”. Em sua opinião, a formação da elite deve depender de parâmetros democráticos nos quais as pessoas compitam por mérito.

“Depois da Revolução de 1917, a primeira coisa que os governantes da antiga União Soviética fizeram foi abrir as universidades para os trabalhadores, baseados na retórica de que o sistema anterior de ingresso favorecia as elites. Isso durou três anos, não deu certo e foi abandonado. O país voltou ao sistema anterior, com ingresso via exame vestibular.”

Para Eduardo Krieger, do conselho diretor do Instituto do Coração (Incor), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e ex-pró-reitor de Pesquisa da Universidade, o número de pesquisadores ainda é deficitário e soma-se a isso o fato de muitos estarem na academia e poucos no setor produtivo, ao contrário do que acontece em outros países. Outro componente, segundo ele, é o fato de 50% dos doutores serem das ciências sociais. “Nada contra os cientistas sociais, mas o País precisa de mais engenheiros, matemáticos e cientistas de outras áreas.”

No que se refere ao perfil das universidades, Krieger manifestou que é preciso encontrar vias para interferir nesse processo e que uma delas seria mudar o estabelecido na Constituição. Comentou que está havendo uma “reorganização das universidades em muitos países e as universidades de pesquisas não podem ser todas”.

Claudio Rodrigues, diretor-presidente do Cietec – Foto: Beto Moussalli Fiesp

Para Goldemberg, não é o caso de mudar a Constituição – “as universidades federais estão aí para ficar” – e reforçou sua defesa da criação de um sistema de colleges. “O exemplo das Fatecs é bom, apesar de que algumas pessoas se queixem de que o ensino nelas é especializado demais.”

Cláudio Rodrigues, do Parque de Ciência e Tecnologia da USP (Cientec), afirmou que o índice de competitividade do País é baixo e os 40% dos doutores formados que vão para a iniciativa privada deveriam estar ajudando. Ele perguntou se o problema é o setor produtivo não ter capacidade de atrair mais pesquisadores ou se a universidade não estaria formando gente que atenda às necessidades do setor produtivo.

Goldemberg disse que a Capes tentou estabelecer um mecanismo de apoio à realização de pesquisas de interesse das indústrias. A proposta era criar uma divisão das universidades em duas categorias. Uma delas seria beneficiada, por meio de fundo específico, com o recebimento de 1% do faturamento bruto das empresas, recursos a serem investidos em pesquisa e desenvolvimento. “O problema é que algo assim colide frontalmente com a política pública de atendimento à demanda por mais vagas nas universidades adotada pelo governo.”

Mauro Bellesa/Instituto de Estudos Avançados da USP 


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