O luto na pandemia: laboratório da USP estuda e orienta sobre o fim da vida

Laboratório de Estudos sobre a Morte investiga o luto, desastres e cuidados paliativos há 20 anos; produção audiovisual está disponível em novo canal do Youtube

17/12/2020

Tabita Said

Manifestação da Ong Rio de Paz em Copacabana em memória aos 100 mil brasileiros mortos pela covid-19 - Foto: Rio da Paz via Fotos Públicas

Os boletins diários sobre as mortes causadas por coronavírus encobrem o que não se pode calcular. Perdas inestimáveis de pessoas queridas, famílias desestabilizadas pelo luto repentino e desemprego são alguns dos desdobramentos da maior crise sanitária mundial da nossa época. A insegurança diante da ameaça invisível do vírus e a falta de perspectiva de “fim” da pandemia submetem todos ao luto coletivo. Contraditoriamente, negação da realidade e comportamentos de risco também se manifestam entre as pessoas, desafiando a doença. 

Objeto de pesquisa do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) do Instituto de Psicologia (IP) da USP desde os anos 2000, a tanatologia – ciência que se ocupa dos assuntos relacionados ao fim da vida e à maneira como as pessoas reagem a ele – vem se modificando nos últimos tempos. O tabu da morte sai de cena e dá espaço a um processo de reumanização e abertura. “Com a pandemia, nossa atenção está voltada a isso. Tanto pela exposição das mortes, quanto pela interdição dos rituais de luto”, destaca a professora Maria Julia Kovács, livre-docente do Instituto de Psicologia da USP e professora sênior voluntária do LEM. Ela explica que, atualmente, há uma oscilação entre a negação, a elaboração e o que ela denomina ‘morte escancarada’.

É o tipo de morte que invade a nossa vida sem pedir licença. Diferente de uma doença, de uma morte anunciada, ela irrompe. É a morte das guerras, dos desastres, do suicídio, da violência nas ruas. É escancarada pela TV e redes sociais, com imagens fantásticas que acabam levando a uma banalização da morte. Ao mesmo tempo que fascinam, as imagens também aterrorizam. No caso do coronavírus, são as imagens de UTIs cheias, com médicos virando pacientes em posição prona e famílias esperando do lado de fora. Talvez uma das imagens mais chocantes tenha sido das valas comuns. Nelas não há nomes, biografias; apenas números que se empilham. Isso é banalização."

Maria Julia Kovács, do Instituto de Psicologia da USP - Foto: Divulgação/IP

Maria Julia Kovács, do Instituto de Psicologia da USP - Foto: Divulgação / IP

Reunindo estudantes, pesquisadores, profissionais da saúde e educação, além de interessados no tema, o LEM busca desobstruir o acesso aos assuntos relacionados à morte para o público geral, com informações confiáveis e estudos atuais. Tem como premissa naturalizar o luto e conscientizar as pessoas sobre a importância do acolhimento em situações de perda, já que esquivar-se da tristeza pode levar ao adoecimento. 

“É preciso desconstruir a interdição do luto. ‘Você tem que ser forte’, ‘você tem que superar’, não… você tem direito de viver a sua perda e a gente tem que lutar bravamente para a criação de políticas públicas de saúde mental e atendimento especializado em luto. Inclusive na questão trabalhista. É evidente que as pessoas não têm condições de voltar ao trabalho após três dias e muito menos na mesma forma de antes”, avalia a docente.

ANTES E DEPOIS

O enterro de Atalá, óleo sobre tela de Anne-Louis Girodet (1808) - Foto: Museu do Louvre

Até o início do século XX, a sociedade não contava com um tipo de aparato médico que alcançasse as doenças mais comuns. Cuidava-se da morte como se se cuidasse da vida. O medo, no ideário do homem diante da morte, de acordo com o autor Phillippe Ariès, girava em torno do repentino e da impossibilidade de realizar despedidas ou informar seus últimos desejos. Havia, então, a morte ‘domada’. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a medicina avança e as doenças passam a ser tratadas. A finitude humana, neste momento, deixa de ser familiar e passa a ser ‘interdita’. 

“Deixamos de falar sobre a morte porque ela sai de dentro das casas e migra para os hospitais. Antes, as pessoas eram protagonistas de suas próprias mortes, morriam em casa, e agora o luto e o sofrimento passaram a ser escondidos”, analisa Elaine Gomes dos Reis Alves, membro do LEM e pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP. 

Elaine Gomes dos Reis Alves - Foto: Arquivo Pessoal

É neste momento que, segundo Elaine, passamos a nos interessar pela morte do outro. “Mas nós ainda não encaramos os nossos próprios sofrimentos. Discutimos a morte que está escancarada, mas o luto individual continua sendo solitário”, acrescenta.

Para ela, é fundamental compreender o conceito de desastre para lidar com a perspectiva de um luto ampliado. “Se pensarmos no que ocorreu em Brumadinho ou em Santa Maria, na boate Kiss, nem todo mundo estava lá, mas toda a cidade ficou enlutada. O problema da pandemia é que, diferente da guerra, não vemos destruição. Então, fica difícil entender que estamos vivendo um desastre”, admite Elaine. 

Equipe de buscas no desastre de Brumadinho - Foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros Militar MG​

Em períodos de crises humanitárias, outro fenômeno no radar dos profissionais de saúde é o suicídio. O número de casos pode se estabilizar em função da subnotificação e porque outras questões se tornam prioritárias. No entanto, o comportamento suicida, de risco, aumenta. A psicologia define que aproximadamente três meses após o término de uma situação de emergência e desastre, começam a surgir as consequências na condição mental da população. De acordo com a pesquisadora, há uma previsão de adoecimento mental gravíssimo e de um possível surto de suicídio que precisa ser prevenido desde já.

PREÇO DO AMOR

A morte é um elemento que busca compreensão, exigindo da pessoa enlutada a elaboração após a perda de um investimento afetivo. “O luto é baseado no amor, ele é o preço do amor. E o sofrimento é extremo, é do tamanho do vínculo”, ressalta Elaine. Mas quanto tempo pode durar o luto?

1

CHOQUE

Tem duração de algumas horas ou semanas e pode vir acompanhado de manifestações de desespero ou de raiva

2

desejo

Busca da figura perdida, que pode durar também meses ou anos. Dois processos contraditórios coexistem: a realidade da perda e a esperança de um reencontro

3

desespero

A raiva persiste, impedindo a aceitação. Tristeza e culpa se manifestam pela pessoa que partiu. O vazio se intensifica, tornando a fase marcada por apatia e isolamento

4

reorganização

Aceitação da perda definitiva e constatação de que uma nova vida precisa ser começada. Saudade e tristeza podem retornar, tornando o processo de luto gradual e nunca totalmente concluído

Fonte: Maria Julia Kóvacs - coordenadora. Morte e Desenvolvimento Humano

O processo de luto é composto de um conjunto de reações que não necessariamente ocorrem ordenadamente. O tempo é variável e depende do grau de vínculo, bem como da capacidade que a pessoa enlutada tem de lidar com a dor, além de auxílios externos que apoiem este processo. E embora algumas pessoas desenvolvam quadros depressivos após uma perda, tendo mais dificuldades de passar pelas fases do luto, é importante compreender que luto não é depressão. “Infelizmente essa associação é feita com frequência e muitas pessoas acabam sendo medicadas como se estivessem deprimidas, quando deveriam viver o luto”, aponta Julia Kovács. 

HÁ 20 ANOS

Quatro mulheres realizam as atividades do Laboratório de Estudos sobre a Morte. Mas para além delas, uma comunidade de estudantes, pesquisadores e profissionais se articula para pesquisar, aprender, ensinar e colocar o tema em prática entre os profissionais de saúde. O laboratório realiza atividades abertas ao público e projetos de capacitação de profissionais da saúde e da educação, além de orientação a pessoas enlutadas e gravemente enfermas. Prestam consultoria e assessoria a instituições que atendem pessoas em situações de perda e morte, como serviço funerário, cemitérios, IML, hospitais e escolas. 

Com o isolamento social, o LEM deixou de realizar os atendimentos individuais, já que o Instituto de Psicologia montou uma frente de atendimento e apoio psicológico à comunidade. Mas a produção acadêmica continua ativa e, desde novembro, parte dela está disponível em um novo canal do Youtube. Atualmente aposentada e somando 36 anos de dedicação ao trabalho, a professora Julia celebra a trajetória do laboratório e conta com entusiasmo sobre a capacitação dos alunos, desde a graduação. Para ela, a Universidade tem papel essencial na atenção à morte com dignidade e no cuidado especializado de pacientes com doenças terminais, levando alívio e controle de sintomas para a qualidade de vida até a morte.

“Eu gostaria muito que se contratasse um docente efetivo da área para continuar esse trabalho, que é superimportante. Mesmo antes da pandemia, a questão do suicídio já era urgente. Diante das sequelas deixadas nos pacientes que sobreviveram à covid-19, os cuidados serão exigidos e deverão ser ampliados. Temos que continuar falando de luto, suicídio, emergências e desastres, pandemias, morte com dignidade, cuidados paliativos e assuntos relacionados.”

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