Nota pública contra a perseguição político-ideológica no Brasil

Núcleo de Estudos da Violência divulga nota repudiando suposta lista feita pelo Ministério da Justiça com informações de servidores públicos e professores universitários com opiniões contrárias ao fascismo. Leia na íntegra

 28/07/2020 - Publicado há 4 anos

É com extrema indignação que o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) recebe a notícia de que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, por meio da “Diretoria de Inteligência da Secretaria de Operações Integradas” (Decreto n. 9662/19), elaborou lista com nomes, fotos e documentos de servidores públicos da segurança e professores universitários por supostamente manifestarem opiniões contrárias ao fascismo, o que configura clara perseguição político-ideológica, expressamente proibida pela Constituição Federal de 1988 (art. 5o, VIII). Um dos listados é o professor Paulo Sérgio Pinheiro, um dos fundadores do NEV. Paulo Sérgio Pinheiro é considerado e reconhecido por autoridades e organizações nacionais e internacionais como um dos grandes nomes da história dos Direitos Humanos no Brasil e no mundo, tanto por sua atuação acadêmica, quanto por sua trajetória de atuação política. Atualmente é relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para a situação de Direitos Humanos na Síria. Foi secretário nacional de Direitos Humanos, membro da Comissão Nacional da Verdade e professor titular da Universidade de São Paulo, além de ter lecionado na Brown University, Columbia University, Notre Dame University, Oxford University e École des Hautes Études en Sciences Sociales.

Paulo Sérgio coordenou, juntamente com o professor Sérgio Adorno e Nancy Cardia, um dos primeiros estudos do NEV-USP, cujo tema ainda repercute em nossa sociedade. O trabalho Continuidade Autoritária e Consolidação da Democracia (1994 a 2000) analisou a continuidade de violações dos direitos humanos no processo de democratização brasileiro, de construção da cidadania pós-Constituição de 1988 e de reconquista do Estado de Direito. O momento atual que estamos vivendo expõe e evidencia aquilo que os estudos do núcleo já apontavam e continuam a apontar, que um autoritarismo presente em nossa sociedade e no Estado continua vigente e que, por isso, não conseguimos avançar no respeito e garantia dos direitos fundamentais para toda a sociedade.

Elaborar dossiês a respeito de quaisquer pessoas por terem ou manifestarem suas opiniões é uma afronta às liberdades de opinião e expressão, pilares da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Constituição Federal e do Estado Democrático de Direito brasileiro, e configura crime de responsabilidade quando feito aos auspícios de um ministro de Estado (art. 4o, II, da Lei 1.079/50). Outra ilegalidade presente neste ato é a classificação do documento como de “acesso restrito”, uma vez que a Lei de Acesso à Informação impede a restrição de documentos sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos a mando de autoridades públicas (art. 21, p. único da Lei 12.572/11). Ou seja, a lei não permite a restrição de acesso a um ato que é ele mesmo uma violação de direitos fundamentais. Trata-se de mais um exemplo do retorno aos tempos de ditadura promovido pela atual administração, em que a repressão e o autoritarismo constituíam-se como forma de governo. É inaceitável, e passível de impedimento, que o posto de ministro da Justiça seja utilizado para perseguir politicamente pessoas que não coadunam com as opiniões do governo.

Causa-nos grande preocupação que, em um momento extremamente desafiador da história brasileira – somos o segundo país do mundo com maior número de vítimas fatais do novo coronavírus -, tenhamos que testemunhar órgãos do Estado operando com condutas ilegais e sem acompanhamento judicial, claramente ao arrepio da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

O Núcleo de Estudos da Violência da USP tem demonstrado ao longo de mais de trinta anos de atuação, com a liderança exemplar do professor Paulo Sérgio Pinheiro, que segurança pública só atinge seus objetivos de proteger as pessoas, o patrimônio e as instituições quando atua com base em evidências científicas, com transparência e com respeito aos direitos e garantias fundamentais. Assim, é urgente que a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal, investidos dos poderes que lhes foram conferidos pelo legislador constituinte democrata, tomem todas as providências cabíveis para investigar o trabalho efetuado nos porões do Ministério da Justiça, realizando as devidas responsabilizações.

São Paulo, 25 de julho de 2020.


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