Jumbo universitário leva itens de higiene a mulheres encarceradas

Entidade ligada à Faculdade de Direito da USP organiza vaquinha virtual na campanha “Entre Isolamento, Laços”

16/06/2020

Tabita Said

Alunos da Faculdade de Direito da USP participam da campanha "Entre Isolamento, Laços", que levou produtos de higiene pessoal para reeducandas da Penitenciária Feminina da Capital. Foto: Enactus São Francisco.

Desde o dia 22 de março, estão suspensas as visitas às 176 unidades prisionais de São Paulo por tempo indeterminado como medida de combate ao novo coronavírus. Sem visitas, cárceres masculinos e femininos seguem privados de contato com familiares e sem acesso ao “jumbo”, conjunto de suprimentos básicos – entre alimentos e itens de higiene – que familiares de presos levam nos dias de visita para complementar aqueles entregues pelo Estado. De acordo com as novas regras da Secretaria de Administração Penitenciária, o jumbo só será aceito via correios, em caixas com 12 kg no máximo e sem produtos perecíveis.

“A falta de acesso a produtos de higiene é um grande desafio dentro do cárcere”, relata Leticia Morais Nadal, vice-presidente da Enactus São Francisco e uma das organizadoras da campanha ”Entre Isolamento, Laços”, que levou 500 kits de higiene a mulheres encarceradas na Penitenciária Feminina da Capital em meio à pandemia por coronavírus.

A dificuldade, segundo a estudante, ocorre “seja pela escassez da disponibilização pelo governo, seja pelas dificuldades de as famílias levarem produtos para elas, ainda mais agravadas com a suspensão do jumbo presencial”. Para ela, o caro envio dos produtos pelos correios impossibilita o acesso a itens básicos de higiene e limpeza, essenciais neste momento.

Estudante de Direito, Leticia Nadal é uma das organizadoras da ação. Foto: Enactus São Francisco.

Mas a falta de acesso a itens básicos de sobrevivência revela uma ausência ainda maior. Onde falta o Estado, também não há família. “A mulher presa não recebe visita nem da própria mãe”, lembra a professora Ana Elisa Liberatore S. Bechara, docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP e orientadora dos alunos envolvidos no projeto. Muito além da campanha pontual, a professora conta que o objetivo do projeto é dialogar com as internas e propiciar sua autonomia socioeconômica, evitando que recorram ao crime novamente. “Esse projeto representa uma aproximação da sociedade com o cárcere, mas é importante fortalecer essas mulheres, que em breve terminarão a pena e voltarão a conviver em sociedade. Quem nós queremos que volte?”, questiona.

Ana Elisa Bechara - Foto: Reprodução/Canal USP
Professora Ana Elisa Bechara. Foto: Reprodução/YouTube Canal USP

Entre isolamento, laços

A campanha “Entre Isolamento, Laços” arrecadou o equivalente a 514 kits de higiene, entregues a reeducandas da Penitenciária Feminina da Capital, no bairro de Santana, zona norte de São Paulo. O valor de R$16.407,00 foi conseguido por meio de um site de doação on-line, além do envio de produtos por voluntários parceiros da iniciativa.

Cada kit foi composto por 32 absorventes externos, 5 sabonetes em barra, 1 shampoo, 1 condicionador, 1 pasta de dente e 1 escova de dente, destinado a cada uma das 500 mulheres encarceradas.

Como ultrapassaram a meta inicial de arrecadação, a Enactus São Francisco continua com a campanha ativa até julho ou enquanto estiver movimentada. O objetivo agora é colaborar com mais produtos e talvez chegar a outra unidade prisional. Conheça a campanha aqui.

Entre celas, entre elas

A Penitenciária Feminina da Capital, junto da Penitenciária Feminina de Sant’Ana, compõe o complexo do Carandiru, onde funcionou a renomada Casa de Detenção de São Paulo, até 2002. O local ficou especialmente conhecido após o “Massacre do Carandiru”, quando uma ação policial de repressão ao início de uma rebelião no Pavilhão 9 matou 111 detentos desarmados e rendidos. Há cem anos, completos em abril de 2020, o Carandiru representa um marco do sistema punitivo brasileiro.

Há quatro anos, a Enactus USP São Francisco atua na Penitenciária Feminina da Capital promovendo rodas de conversa, oficinas de confecção de produtos artesanais e aulas de educação financeira e de incentivo ao empreendedorismo. Em 2016, mulheres da Ala Materna participaram de encontros semanais, confeccionando biojoias, ecobags e recebendo noções de gerenciamento de negócios. Com a pandemia, os projetos de reintegração foram suspensos, bem como a venda de colares e pulseiras produzidos por mulheres do Pavihão Habitacional, cuja receita era totalmente revertida às presas.

Acesso precário a produtos de higiene pessoal entre as detentas levou o grupo de voluntários a criarem a campanha de doação. Foto: Enactus São Francisco
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Biojoias e ecobag produzidas em oficinas de empreendedorismo na Penitenciária Feminina da Capital. Foto: Enactus São Francisco

Em maio deste ano, outra campanha da entidade arrecadou R$6 mil, desta vez com foco nas 48 mulheres, entre mães e gestantes, que vivem na ala materna da penitenciária. Além dos kits de higiene, foram doadas 4.458 fraldas, 70 sabonetes de glicerina, 70 caixas de lenço umedecido e 67 cremes anti-assadura para os 35 bebês de até seis meses que vivem com as detentas. De acordo com o Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, das cerca de 15 mil mulheres encarceradas em todo o estado, há 74 mulheres grávidas e 4.925 mães com filhos até 12 anos.

O projeto também atua no que chamam de Frente de Diálogo. Por iniciativa das detentas ou dos alunos, temas atuais da sociedade são discutidos. “Esses encontros dão a oportunidade de fala. Em um ambiente em que se perde autonomia e se reduz a personalidade, você se vê um ser reflexivo e humano, ainda”, conta Bechara.

Profissionais mais competentes

O envolvimento de alunos tão jovens com a realidade das prisões muda sua perspectiva para sempre. Na prática, eles compreendem o significado de garantias fundamentais à vida e à dignidade humana. “Todos os temas relacionados ao Direito Penal fascinam a gente, porque lidam com instintos muito primitivos, a começar pelo instinto de vingança. Dentro da intuição social, quanto pior for o presídio, quanto mais o preso sofrer, melhor”, analisa a docente. Ela explica que esse sentimento é irracional e que cabe ao Estado educar a sociedade para que a pena tenha um sentido racional e de ressocialização.

Como educadora, ela acredita que a experiência crucial é o ganho de sensibilidade social, uma vez que esses alunos serão juízes ou promotores de justiça, amanhã. “Há profissionais como estes que nunca entraram em um presídio. É como um médico nunca ter entrado em um hospital”, conclui.

A Enactus é uma organização internacional que fomenta o empreendedorismo social nas universidades e busca engajar estudantes por meio de projetos de desenvolvimento comunitário. Na USP, a Enactus São Francisco é uma extensão da Faculdade de Direito. Criada inteiramente por mulheres, é desde 2016 atividade oficial de cultura e extensão. No vídeo, o grupo agradece pela participação na campanha e convida o público a continuar ajudando.

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