Cursinhos populares da USP se reinventam para ajudar alunos na quarentena

A necessidade de isolamento social para combater a covid-19 impediu a realização de aulas presenciais e novos desafios surgiram para atender os estudantes em situação vulnerável

Conseguir uma vaga numa universidade pública como a USP exige estudo e preparação. Mesmo com maior oferta de vagas em cursos noturnos e com políticas de ações afirmativas, o ensino superior público ainda é um desafio para os estudantes, que, devido ao seu contexto socioeconômico e falta de acesso a uma educação de qualidade, precisam duplicar esforços para enfrentar as provas de vestibular e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O trabalho desenvolvido pelos cursinhos populares é essencial para atender a essa defasagem.

Muita gente não sabe, mas dentro da USP há diversos cursos pré-vestibulares organizados pelos próprios alunos e professores, que oferecem a jovens de baixa renda a oportunidade de estudar gratuitamente ou a preços reduzidos em relação a outros cursinhos. Com a quarentena e a necessidade de isolamento, novos desafios surgiram e os cursinhos populares estão se adaptando à nova realidade do ensino a distância. O Jornal da USP entrevistou pessoas de três cursinhos populares da Universidade para saber quais ações foram tomadas para manter o funcionamento das aulas.

Cursinho da FFLCH

Preocupação com os vulneráveis

Vinicius Paiola, 22, estudante do quinto ano de Filosofia, dá aula no Cursinho da FFLCH desde 2016.  “Comecei a graduação e logo tive contato com as pessoas  que tinham iniciado o projeto”, comenta. O trabalho é totalmente voluntário, e não remunerado, para todos que participam do projeto. Não existe mensalidade, apenas uma taxa de matrícula, que não é obrigatória. O valor é de R$ 50,00, mas se o aluno não tiver condições pode pagar menos ou, inclusive, nada. 

Com o alerta da covid-19 as aulas foram canceladas – antes mesmo de a USP suspender as aulas oficialmente. “Após isso, combinamos de centralizar todo o material produzido em um site que montamos. Lá os professores atualizam semanalmente, ou de acordo com a quantidade de aulas, os conteúdos para os alunos.” A produção varia de acordo com o  professor. Existem exercícios, videoaulas, slides, aulas on-line e por meio de lives, entre outros recursos.

No entanto, a adesão dos alunos está baixa. “Há poucos alunos acompanhando os materiais, menos de 25% deles nas turmas de semana – e nas de sábado esse número deve ser ainda mais baixo.” A organização também criou um grupo no Facebook para informar os alunos sobre conteúdos e outras coisas, mas nem todos estão no grupo e alguns parecem ter desativado o Facebook. O site foi enviado a todo mundo pelos e-mails cadastrados na inscrição do curso.

A preocupação é com os alunos que não têm condição de participar das aulas on-line. “Certamente há alunos sem estrutura. O grau dessa falta varia desde não ter um espaço adequado para estudo, como uma mesa para estudar silenciosamente, a não ter recursos básicos, como internet.” 

Vinicius Paiola de Oliveira, 22, professor voluntário do cursinho da FFLCH - Foto: arquivo pessoal

Ele relembra que muitos dos estudantes têm uma situação social vulnerável, informação obtida com o processo de inscrição: há pessoas com problemas familiares, doenças mentais e situação econômica desfavorável. “Então não surpreende que, infelizmente, o material on-line que fazemos não esteja sendo muito acessado. Apesar disso, estamos nos organizando para manter os conteúdos no site, pois ficar sem uma rotina pode ser ainda pior tanto para nós quanto para eles. Também estamos organizando os alunos que têm dificuldades com o estudo para instruirmos como isso pode melhorar, ou fazer com eles um cronograma de estudos. Mas isso ainda está em planejamento”, comenta Vinicius.

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Aula no Cursinho da FFLCH - Foto: Reprodução/Facebook

como iniciou

Foi criado em setembro de 2015, mas a primeira turma surgiu em abril de 2016

Número de alunos

Possui 320 alunos, dos quais 160 participam de turmas de sábado e 160 de turmas de segunda a sexta-feira

como é mantido

O projeto é mantido por professores voluntários. Não há administração ou vínculo institucional com a FFLCH. É completamente autogerido por alunos e professores

como é a seleção

Primeiro, é feita uma pré-inscrição on-line, que depois é confirmada presencialmente, de modo que as informações colocadas sejam compatíveis com o candidato. Há dois casos de aprovações automáticas: quando a pessoa é não cisgênera ou é refugiada. Para o restante, a seleção é feita de acordo com uma pontuação em que se leva em conta renda per capita, pertencer ao grupo PPI (pretos, pardos e indígenas), maternidade, ter estudado em escola pública ou na particular com bolsa de estudo, além de ser familiar de funcionários terceirizados da USP.

Cursinho feausp

Mobilização pela qualidade

Soraia Santos Gomes, 18, e Vitória Morais, 21, são alunas da TSE, a Turma de Semana Extensivo. Para iniciar os estudos, elas pagaram uma taxa de inscrição para realizar o simulado e para fazer a matrícula. Não há mensalidade e os alunos têm acesso ao material do sistema Anglo e sua plataforma, o Plurall, além do Descomplica.

Com a suspensão das aulas presenciais, os encontros on-line são feitos a partir do Google meet, plataforma para videoconferências, seguindo a grade horária que existia antes do isolamento. “Os coordenadores se mobilizaram para que as aulas continuassem acontecendo on-line, e os professores estão dando o máximo para que continuem com a mesma qualidade, sempre se preocupando com o aprendizado dos alunos”, diz Vitória.

Soraia soube do cursinho por uma professora de inglês do ensino médio, e começou a frequentá-lo em 2019. Pretende prestar o Enem, o vestibular da Fuvest para a USP e também o da Unicamp para o curso de Medicina. Embora sinta diferença no aprendizado, consegue ter acesso às aulas a distância. “Tenho um cronograma de estudos que tento seguir à risca. Naturalmente, uma vez ou outra não o sigo, mas está funcionando. As aulas a distância são boas, porém não é o mesmo de estar presencialmente, mas já consegui me adaptar bem”, comenta.

Soraia Santos Gomes, 18, aluna do Cursinho Feausp - Foto: arquivo pessoal

Vitória Morais, 21, aluna do Cursinho FEAUSP - Foto: arquivo pessoal

Vitória ficou sabendo do cursinho a partir da recomendação de amigos que o conheciam, e passou a frequentá-lo em 2017. No mesmo ano, passou em Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mas desistiu do curso e voltou para o cursinho em 2019. Ainda está em dúvida quanto ao curso  Biomedicina ou Farmácia , mas já sabe qual vestibular pretende prestar: “O meu foco sempre foi USP, então estou mais um ano correndo atrás desse sonho”. Por isso, ela está estudando para a Fuvest e o Enem. Apesar de não ter um computador, consegue acompanhar as aulas pelo celular. 

“Por enquanto não estou tendo dificuldades no acesso, mas nada substitui o aprendizado dentro da sala de aula, onde temos o contato direto com o professor”. Ela diz encontrar obstáculos para manter uma rotina de estudos, mas está tentando se adaptar.

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Aula no Cursinho FEAUSP - Foto: Reprodução/Facebook

como iniciou

Foi criado em 2000, mas desvinculou-se do Centro Acadêmico Visconde de Cairu (CAVC) em 2010

Número de alunos

Possui 480 alunos, divididos em quatro turmas: Turma do Extensivo de Semana, Turma Extensivo do Sábado, Turma Sábado de Maio e Turma do Ciclo Básico.

como é mantido

O projeto é independente, mantido por graduandos da faculdade que atuam como coordenadores voluntários. As aulas são ministradas por professores contratados em formação ou já formados em instituições da USP. É uma iniciativa social sem fins lucrativos

como é a seleção

Primeiro, é realizada uma entrevista socioeconômica na qual o candidato apresenta documentos sobre renda, gastos e escolaridade para se traçar seu perfil socioeconômico. Depois é realizada uma prova de conhecimentos gerais com conteúdo básico do Ensino Médio e uma redação. Todos os candidatos são classificados segundo seu perfil socioeconômico e seu desempenho na prova de conhecimentos gerais.

Cursinho POPULAR da poli-USP

Engajados no conteúdo

Para os alunos deste cursinho, as aulas são gratuitas, existem apenas taxas de inscrição para o processo seletivo e para a matrícula. Essas taxas arrecadadas servem como suporte para manter o projeto ao longo do ano. O material pedagógico utilizado nas aulas da turma regular é o do sistema Etapa, enquanto para a turma do ciclo básico é usado material de autoria do próprio cursinho.

Segundo Mariana Barbosa Tavares, 20, estudante do terceiro ano de Engenharia Química e diretora do cursinho, as atividades estão se mantendo com aulas virtuais, ministradas pela plataforma Google Meet. Além disso, os professores também estão utilizando o Google Classroom, com a produção de materiais como slides, listas de exercícios e até simulados a serem aplicados a distância.

A coordenação está ciente de que há alunos que não conseguem ter acesso às aulas a distância. Para resolver o problema, estão pensando em uma reestruturação do calendário para repor a maior quantidade possível de conteúdo após o isolamento, “mas isso vai depender muito da manutenção – ou não – dos calendários de vestibulares”. Também estão arquivando todo o conteúdo ministrado a distância. “Assim, os alunos que não têm acesso imediato a esse conteúdo poderão visualizá-lo quando tiverem acesso normal à rede e a computadores”, completa.

Mariana Barbosa Tavares, 21, diretora do Cursinho Popular da Poli-USP - Foto: arquivo pessoal

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Aula no Cursinho Popular da Poli USP - Foto: Reprodução/Facebook

como iniciou

Foi criado em 1987. No final da década de 90 houve uma cisão que gerou dois novos cursinhos: o Cursinho da Poli, um cursinho comercial e com taxas de mensalidade, e o Cursinho Popular da Poli-USP, sem fins lucrativos

Número de alunos

Possui 154 alunos, divididos em duas turmas. No segundo semestre há uma turma de ciclo básico com aproximadamente 40 alunos

como é mantido

O projeto é mantido pelo Grêmio Politécnico, a entidade jurídica e financeira que administra a iniciativa, mas a gestão é dos alunos. Existe uma coordenação com dez membros, todos participantes ativos, e a diretora. O cursinho depende do Grêmio para as deliberações mais burocráticas

como é a seleção

O processo começa com uma prova, depois é realizada uma entrevista socioeconômica junto com a conferência de documentos que comprovam a situação do candidato. Por fim, existe a chamada “quinzena base”, constituída por duas semanas de aula para que os alunos se adaptem à rotina e a coordenação possa fazer uma análise inicial de frequência e assiduidade. Mais da metade dos alunos tem renda familiar de até três salários mínimos.