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apresentação

Reginaldo Prandi Renan William dos Santos Massimo Bonato

A construção da modernidade religiosa no Brasil e na Argentina – uma introdução

Arelação entre religião e modernidade é matéria controversa e muito presente no debate sociológico. Por tratar a sociologia, antes de mais nada, da mudança social e das estruturas e instituições da sociedade aí envolvidas, desde cedo os sociólogos – e, com certa aproximação, outros cientistas sociais – se perguntam que papel joga a religião na manutenção do status quo e, no reverso, de que modo ela pode ser vista ou não como freio, contrapeso ou acelerador do processo de mudança, o que situa a religião no centro da discussão do próprio conceito de modernidade. Apesar de sua importância como fonte de valores e orientação de conduta, também a religião não escapa do processo de mudança do qual ela mesma faz parte, processo que se mostra historicamente capaz de alterar o próprio sentido da religião no mundo moderno, tanto para a sociedade como um todo quanto para os indivíduos em sua intimidade. Já estamos agora no terreno da modernidade religiosa.
Os mais variados panoramas analíticos podem ser mobilizados na descrição do que seja a modernidade religiosa. Três tópicos, contudo, tendem a balizar essa descrição: 1) a questão da autonomia dos fiéis em oposição às pretensões totalizantes das instituições ou das lideranças religiosas, ou de ambas; 2) o pluralismo religioso, que dissolve a certeza de que se está rodeado por pessoas do mesmo credo fora do âmbito privado-íntimo; 3) o ideal de igualitarismo que estende a todos, ao menos formalmente, os mesmos direitos, independentemente de quaisquer diferenças de nascimento, de classe social ou, o que importa aqui, de filiação religiosa.
Os artigos deste dossiê procuram justamente dar conta dessas diferentes dimensões a partir da formação ou da dinâmica atual dos dois segmentos religiosos atualmente majoritários no Brasil e na Argentina, para não dizer na América Latina: o dos católicos e o dos evangélicos. No artigo de abertura, “Pluralidade cristã e algumas questões do cenário religioso brasileiro”, André Ricardo de Souza mostra como a formação histórica da diversidade religiosa no Brasil, a despeito da grande expectativa de explosão de credos nas décadas passadas, acabou se restringindo à matriz cristã. Em seu diagnóstico isso não impediu, contudo, a consolidação de um mercado da fé dinâmico e calcado na liberdade de culto.
Juan Cruz Esquivel, em “Os imaginários religiosos na cultura política argentina”, adentra no âmbito das relações entre religião e política na Argentina descrevendo os imaginários que fundamentam as sobreposições entre esses dois campos. Esquivel vale-se tanto de reconstruções históricas como de entrevistas recentes com deputados federais para argumentar que, a despeito do avanço do processo de secularização, ainda há na Argentina uma cultura que legitima o papel da religião na política – não por meio de políticos que estariam ligados organicamente à instituição católica, mas funcionando como um estoque de valores.
Ainda na interface entre religião e política, o papel eleitoral do segmento evangélico é analisado nos textos “O voto evangélico: a religião como máquina eleitoral”, escrito por nós, organizadores deste dossiê, e “Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores”, de autoria de Ricardo Mariano e Dirceu André Gerardi. No primeiro caso, procuramos defender a tese de que o trunfo eleitoral das religiões evangélicas no Brasil, sobretudo as do ramo pentecostal, reside não nas mensagens ou no simbolismo religioso exposto nas pregações, mas no subterrâneo do poder organizacional e financeiro mobilizado pelas instituições da fé em favor dos candidatos que lhes interessa promover. No segundo, Mariano e Gerrardi apontam para o fato de que o simbolismo e o repertório evangélico conservador foram mobilizados em diversos pleitos presidenciais neste ano de 2018, focando pautas como o combate à chamada “ideologia de gênero” e retomando ímpeto na esfera pública.
Já Diego Mauro e José Zanca, em “Relações perigosas: os intelectuais católicos e a igreja argentina”, recorrem à história para mostrar que os intelectuais católicos não foram alheios aos processos de modernização que começavam a ganhar força na Argentina no início do século XX. A despeito das várias interpretações que davam esses intelectuais às mudanças da sociedade que os rodeava, tinha-se em comum a pretensão de catolicizar o debate em curso e contribuir para a conformação de uma elite católica à altura dos “novos tempos”.
Guilherme Borges, em seu “A cruz da questão: o uso de argumentos laicos na permanência de símbolos católicos em locais públicos”, também direciona a análise aos discursos católicos para evidenciar a mudança à qual eles foram obrigados a se submeter a partir do momento em que não se podia mais assumir como ponto pacífico o caráter essencialmente católico da nação brasileira. Nos debates atuais, aponta Borges, em vez de procurar se impor como religião dominante que teria o direito de ser ostentada, a estratégia católica passa pela aplicação de um “verniz neutralizador” nos símbolos religiosos, afirmando que os mesmos não representariam uma confissão específica, mas sim a cultura nacional, e por isso poderiam conviver harmoniosamente com o Estado laico.
Por fim, em “A formação do Estado e da Igreja no Rio da Prata: uma combinação de escalas de análise”, Ignacio Martínez defende uma proposta metodológica de alternância entre diferentes escalas de análise para dar conta das tendências contraditórias dos processos de secularização. Tomando o caso argentino como modelo, Martínez defende que a própria formação do Estado não foi (ao contrário das explicações tradicionais) uma imposição centralizadora, mas um processo de negociação que teve papel ativo das elites locais, as quais contavam com a jurisdição diocesana para consolidar seu poder supraprovincial.
Em suma, esperamos que os textos aqui reunidos, sejam eles mais teóricos ou empíricos, em perspectiva comparativa ou focando especificidades de cada um desses contextos nacionais, ajudem a compreender melhor as múltiplas conformações da modernidade religiosa nos dois países em questão. Afinal de contas, profundas transformações estão em curso. Se até poucas décadas atrás era “natural” dizer que “ser brasileiro” ou “ser argentino” era quase um sinônimo de “ser católico”, hoje já não é mais assim. Nos dois países a identidade religiosa já não é mais um sucedâneo da nacionalidade, ou da cidadania. Aliás, em razão desse intenso processo de desnaturalização e flexibilização das crenças, a identidade religiosa já não é ligada a mais nenhum tipo de imperativo. Em nossa modernidade – que, ao menos nesse sentido, não se distingue por nos localizarmos no Sul global –, a religião, como tantas outras coisas da vida de cada um, é, sim, um objeto de escolha pessoal, que pode ser revista e substituída a qualquer momento.