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Suicídio: do desalojamento do ser ao desertor de si mesmo

Karina Okajima Fukumitsu

O manejo do comportamento suicida depende da definição que se atribui ao fenômeno multifatorial. Concebo o suicídio como “a confirmação concreta da descontinuidade do sentido de vida” (Fukumitsu, 2013, p. 19). Nesse contexto, a autoaniquilação pode ser compreendida tanto como um ato humano que escancara o desamparo, o desespero e a desesperança quanto como um processo acumulativo e intenso de sofrimento existencial.

O sofrimento existencial é um fenômeno individual e coletivo. Há de se refletir, portanto, que a evasão da própria existência pode ter sido desencadeada pela sobrecarga, estresse, sofrimento e falta de crença em si mesmo. Por esse ângulo, levantam-se as questões: qual é o lugar ocupado pelo sofrimento existencial e pela fragilidade humana nas vidas dos indivíduos?; qual seria o lugar para aquele cuja morte não foi consumada e que, por um ato de desesperança, tenta se matar por acreditar que seria essa uma maneira de se libertar do sofrimento?

Existem condições humanas que debilitam a existência e tornam a morte mais interessante do que a vida. Este ensaio teve sua origem pelo fato de eu ser administradora do grupo e das páginas do Facebook “Suicídio: prevenção e posvenção no Brasil” e “Enlutamento pelo suicídio no Brasil”, nos quais recebo mensagens de pessoas do país inteiro que compartilham suas preocupações em relação aos comportamentos suicidas de seus entes queridos ou sua própria vontade de se autoaniquilar. As páginas e o grupo também são procurados por pessoas que compartilham seu sofrimento por serem sobreviventes do suicídio, tendo suas vidas avassaladas pela morte autoinfligida de uma pessoa amada.

Apesar de se identificar a ampliação das discussões sobre o suicídio e sua prevenção, bem como a ampliação da atenção ao problema de saúde pública no mundo, ainda se percebe que a oferta de cursos sobre a temática é escassa, principalmente no Brasil. Consequentemente, estabeleço, no presente artigo, relação entre o suicídio e a bioética a ser direcionada por uma questão fundamental: como acolher a pessoa que vê no suicídio o alívio de seu sofrimento? São contemplados os fatores de risco desesperança, desespero e desamparo, apontados pela cartilha da Associação Brasileira de Psiquiatria (2014) e as três características principais do comportamento suicida apresentadas pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2014): ambivalência, impulsividade e constrição de pensamento.

Desde a graduação em Psicologia (1989 a 1993), nunca tive alguma aula na qual pudesse aprender a lidar com um cliente com potencial suicida ou uma orientação que oferecesse subsídios para a instrumentalização quando pessoas tentavam suicídio. Motivada pelas vivências infantis de ter uma mãe que tentou várias vezes se matar, direcionei meu desenvolvimento profissional em busca da compreensão desta situação-limite, que confronta o senso de preservação da vida humana. Dessa maneira, em estudos anteriores (Fukumitsu, 2005; 2012), foi incentivado para que faculdades, universidades e centros de formação de profissionais de saúde ofertassem aulas e/ou informações sobre o manejo do comportamento suicida, utilizando o argumento de que “nunca recebi treinamento para lidar com um cliente que pensa na morte como possibilidade que oferecesse subsídios para instrumentalização, quando clientes tentam efetivamente o suicídio”. O profissional da saúde recebe orientações para lidar com os assuntos da vida, porém, dificilmente recebe orientações sobre o manejo do comportamento suicida, bem como sobre como acolher o luto por suicídio. A comunicação interdita é manifestada, portanto, tanto na prevenção do suicídio quanto na posvenção, conjunto de atividades que se realizam após o suicídio acontecer (Shneidman, 1996; 2001).

As definições do suicídio foram construídas, ao longo do tempo, histórica, cultural, econômica, social e cientificamente (Puentes, 2008; Bertolote, 2012; Botega, 2015). Nós, profissionais da saúde, não devemos nos colocar a serviço para salvar vidas, pois não somos salvadores nem onipotentes. Sobre esse quesito, utilizo como uma das principais intervenções psicoterapêuticas o argumento de que não ajudo quem não deseja ser ajudado e digo aos meus clientes em sofrimento que devem “me ajudar a ajudá-los”. Ciente das minhas limitações como profissional e ser humano, sei que posso ser educadora para que meu cliente compreenda que nenhum ser humano pode dar conta de tudo. Assim, a exigência de sermos onipotentes cai por terra, evidenciando apenas um ser humano que se disponibiliza a acompanhar e a não deixar sozinho aquele que já se sente em solidão.

Como psicoterapeuta, habilitei-me a acolher o sofrimento humano. Dentre os vários tipos de sofrimentos, percebo que as dores se relacionam a uma multiplicidade de fatores que deixam as pessoas exauridas, desamparadas e, por vezes, descrentes de que viverão harmonicamente suas existências. Alguns não se sentem pertencentes aos grupos que gostariam de pertencer ou se sentem oprimidos pela pressão para se tornarem bem-sucedidos. Tentam se encaixar ao que o outro considera como “bom” e perdem a noção do que lhes faz sentido. Outras pessoas não encontram significado do para que vivem ou do que fazem ou não vislumbram sentido para suas vidas.

A necessidade de se sentir pertencente passa a ser uma experiência pela qual a pessoa se desaloja de quem é. Por não conseguir cumprir as exigências fantasiosas de ser um exímio profissional e uma pessoa perfeita, entra em “processo de morrência”, termo que criei para designar o definhar existencial “[…] que acontece gradualmente. A palavra ‘gradualmente’ foi realçada em itálico porque meu intuito é o de elucidar que o processo de morrência exibe uma complexidade de comportamentos autodestrutivos que, de maneira gradativa, provocam o esvaziamento de quem somos” (Fukumitsu, 2016, p. 166).

Assim, inicia-se um processo de cobranças, culpa e autoacusações por não conquistar os sucessos almejados. Quanto maior a expectativa, maior será sua frustração, que acarretará a percepção errônea de que é um ser inútil, fracassado e que não pertence ao mundo “dos fortes” (como se fortaleza e fraqueza se vinculassem à produção!). Nessa perspectiva, viver em um contexto cujas alterações sociais e culturais são velozes pode desencadear um sentimento de estar perdido dentro de si e de desalojamento do ser.

O ser desalojado de si mesmo, em processo de morrência, já se sente morto em vida, triste e cético dele mesmo. Não encontra mais sentido na vida e não acredita na perspectiva que outrora vislumbrou para si: uma vida potente, repleta de felicidade e de prazer que pudesse completá-lo suficientemente para continuar, apesar dos obstáculos. Mas ninguém contou para esse ser, que é humano, que a vida potente, feliz e prazerosa se tratava apenas de uma expectativa fantasiosa. Ou, se contaram, talvez esta pessoa não quis acordar de seu sono bom e da fantasia utópica de que a vida não incluiria sofrimento.

Seja por ausência de aprendizagem ou por negação da realidade, o ser humano busca na vida mundana, promíscua e sem sentido o preenchimento da ausência de si e do desalojamento de seu ser. Vive o tédio existencial, justamente pela necessidade suprema que não é saciada com o que ele tem. Esforça-se freneticamente para atingir metas extenuantes de beleza, produtividade e perfeição. Com isso, deixa-se invadir por más energias, acredita que é um fracassado e seu pensamento enrijece, antecipando que a experiência não passará e que suas forças sucumbirão antes do desfecho da situação complicada. Perde a esperança para continuar.

Ao se desalojar de si, a existência passa a assumir um papel mercadológico e consumista, sendo que o indivíduo confunde existir com ter e passa a acreditar que deve conquistar títulos. Assim, os bens essenciais passam a ser somente validados quando conquistados os bens materiais. A pessoa se exige e é exigida para que tenha uma atuação produtiva, engana-se e se permite ser enganada, e a vida passa a ser uma incógnita a ser desvendada de forma caótica. A inospitalidade passa a habitar regularmente seu dia a dia e os fragmentos entre seu nascimento e sua morte formam um grande quebra-cabeça cujas peças se perderam.

Se não explode, implode. O caos se instala, podendo piorar quando se depara com a constatação de que, nos tempos atuais, somos compelidos a viver na competição e na comparação. A vaidade, o consumismo, o individualismo e o avanço tecnológico podem ser elementos que sufocarão ainda mais o indivíduo. Além disso, aprendemos que devemos nos responsabilizar por nosso bem-estar, felicidade e pela maneira como nos apresentamos como seres civilizados, conscientes e dotados de discernimento para assumir várias responsabilidades que nos conduzem a uma roda-viva desenfreada. Em outras palavras, a exigência de que devemos ser bem-sucedidos, funcionais e sãos pode massacrar a serenidade existencial e atordoar a alma humana.

O desalojamento do ser acontece quando a pessoa se percebe sem forças para continuar e apresenta o pensamento rígido, uma das características do comportamento suicida (WHO, 2014), pelo qual o tunnel vision (Shneidman, 1993) se torna sua principal linha de pensamento: a morte se torna mais interessante que a vida. Sendo assim, pela constrição de seu pensamento, a pessoa não acredita em si e, no mesmo compasso, desacredita que o outro possa auxiliá-lo em sua trajetória de resgatar luz em sua total escuridão.

A pessoa deseja eliminar uma parte de e em si ainda em vida. A parte vira o todo e não consegue compreender que é a responsável por satisfazer suas necessidades. Em contrapartida, assume a responsabilidade por todos os infortúnios, desavenças, conflitos e fracassos. Não compreende que seria o único que poderia assumir sua própria vida, como afirma Beauvoir (2005, p. 88):“[…] apenas um sujeito pode justificar sua própria existência; nenhum sujeito estrangeiro, nenhum objeto saberia lhe trazer de fora a salvação”. Apresenta, portanto, a ambivalência, outra característica do comportamento suicida (OMS, 2014), entre querer matar uma parte que lhe causa sofrimento e se manter vivo, sem o sofrimento que o aflige.

Mata a parte que o faz sofrer porque estava faminto e desejoso de amor, acolhimento e, sobretudo, de respeito legitimado e de confirmação de que pode sentir e pensar. Nesse quesito, cabe uma compreensão a respeito dos sentimentos e pensamentos: ninguém pode se culpar pelo que sente ou pensa. Apenas podemos ser responsabilizados pelo que fazemos com nossos sentimentos e pensamentos. Em outras palavras, se tivermos raiva e matarmos a pessoa que provocou a raiva, seremos evidentemente punidos pela ação de matar.

Ao se sentir impossibilitada de transmitir sua raiva para o outro que a feriu, a pessoa direciona-a para si mesma e se autoaniquila. Nessa acepção, há de se afirmar que a comunicação interdita e não legitimada fere quem já está machucado e, às vezes, pode transformar a vítima no próprio algoz de sua ação autodestrutiva. Morta concreta ou existencialmente, há a denúncia de sofrimento.

A pessoa busca nas adições (drogas e álcool) recursos para lidar com as reduções de sua vida; abusa das dependências químicas talvez para contrabalancear as carências das dependências emocionais; procura em momentos prazerosos o preenchimento daquilo que nunca pôde sentir como próprio. Por consequência, inicia, como dito, seu processo de morrência cujo ápice será o suicídio. Ao tentar o suicídio, sairá da condição do desalojamento do ser para assumir o papel de ser o desertor de si mesmo.

O desertor de si mesmo é invadido pela anedonia. A ausência de prazer desvela os fragmentos que fazem com que a pessoa abrevie sua morte. Mesmo sabendo que a morte é a única certeza que temos, deseja antecipá-la para matar o que a está matando.

O desertor de si mesmo é o transgressor social, biológico e espiritual, pois afronta os conceitos de preservação da vida e do viver. “Gostaria de estar morto”; “sou um fardo para todos”; “logo você não precisará mais se preocupar comigo”; “estou cansado da vida, não quero continuar” – são alguns dos sinais verbais diretos e indiretos apresentados por Popenhagen e Roxanne (1998). Contudo, quando a pessoa não sinaliza verbalmente que se matará, faz-se necessária a observação dos sinais comportamentais diretos e indiretos, tais como desfazer-se de objetos importantes; despedir-se de parentes e amigos; mudar abruptamente seu comportamento, etc. (Popenhagen & Roxanne, 1998; SPRC, 2016). Em outras palavras, caso haja algum indício, verbal ou comportamental, será preciso investigar o que, supostamente, a morte resolveria. Além disso, acolher a dor do outro significa oferecer abertura para a proposição de um diálogo, para que a pessoa que apresenta comportamento suicida possa compartilhar seus sentimentos e pensamentos a respeito do que deseja desertar ao pensar em sua morte.

Exatamente pela concordância da compreensão supramencionada, todas as vezes que leio uma notícia de que uma pessoa se matou, meu coração se aperta e minha impotência grita para que as forças divinas e terrestres possam acolher cada vez mais o sofrimento humano.

A pessoa se matou por escolha, adoecimento, impulsividade ou desespero? Nunca saberemos a resposta correta, pois a verdade se foi juntamente com a pessoa que se matou, mas talvez a resposta seja a composição de todas as alternativas anteriores e mais tantas outras elucubrações a respeito dos fatores que motivaram a aniquilação alheia. O fato é, como apontado por Fukumitsu & Kovács (2015, p. 42), que “os suicídios representam as várias histórias de pessoas que se mataram e talvez tenham aniquilado suas vidas para finalizar um sofrimento ou para comunicar algo”. Sejam quais forem os argumentos que provocaram o suicídio, o ponto a ser destacado é que as pessoas sofrem. Diante do sofrimento humano, nada pode ser explicado, mensurado, comparado, tampouco compreendido por apenas um viés. Cada qual com sua idiossincrasia traz uma história, uma carga genética e uma tarefa existencial de ser quem é. Cada ser humano tem a incumbência de tornar sua história o hábitat mais acolhedor de sua morada existencial.

Respaldados pela crença de que é por meio do contato “horizontal” que devemos lidar com pessoas com comportamento suicida, o acolhimento, a presença, a escuta e a manifestação genuína de compaixão para com o outro são as tarefas primordiais e serão os objetivos principais para quem assume a tarefa da prevenção ao suicídio, lembrando que “a prevenção não oferece garantias de que a pessoa não tentará novamente se matar” (Fukumitsu, 2013, p. 59).

Destarte, o ideal para a prevenção seria se a pessoa pudesse comunicar e receber acolhimento das pessoas a quem deseja comunicar seus sentimentos inóspitos e desagradáveis em vida.

Por ser o suicídio um fenômeno multifatorial no qual há a exigência de se trabalhar em conjunto, demandando a atenção interdisciplinar de vários profissionais da saúde, devemos manter a interlocução entre eles para que formemos redes de apoio para lidar com a sensação de impotência. Quando assumimos o papel de cuidadores, aqueles que cuidam da dor, adotamos a perspectiva de que cuidar é um ato de desvelo que deve ser simétrico, pois, ao mesmo tempo em que cuidamos do outro, devemos cuidar de nós mesmos. Cuidar na ação de prevenir o suicídio significa compreender que o suicídio é uma comunicação pela qual a pessoa direciona sua capacidade de escolha e autonomia para destruir o que sente estar lhe destruindo. A rede de apoio, portanto, serve para partilhar com, para sorrir e chorar junto e para se criar compaixão e descobrir o melhor remédio para curar as feridas existenciais. Nesse sentido, o outro não seria o salvador, mas sim aquele que poderia encontrar maneiras para, juntamente com a pessoa em sofrimento, procurar uma saída do seu limbo existencial. Dessa maneira, o que se pretende neste estudo é promover reflexões acerca do suicídio, pelo qual matador e vítima são a mesma pessoa.

No contexto da palavra “matador”, o suicídio que se pretende compreender é aquele cuja pessoa deseja “matar a dor” e, por isso, em uma tentativa de eliminar o que lhe provocava dor, elimina sua totalidade. Trata-se da autoaniquilação provocada pelo sofrimento psíquico intenso, conforme ensinamento de Shneidman (1993), que aponta que o suicídio revela o psychache, o que, para mim, é compreendido como a expressão e o ponto culminante do sofrimento existencial. Nessa perspectiva, a correlação entre suicídio, escolhas relacionadas ao sofrimento humano, ética e bioética devem surgir como aspectos relevantes para as discussões sobre a temática, pois o artigo se propõe a incentivar a reflexão sobre as possíveis maneiras de se conquistar a dignidade em vida.

Como instilar a esperança naquele que sente que nada vale a pena? Segundo Cortella (2014), a esperança deve vir do verbo “esperançar” e não do verbo “esperar”. Então, como possibilitar que a vida se torne mais importante que a morte? Devo assumir o papel de ser a salvadora, aquela que “salva a dor dos outros”? Ou sou, também, além de uma profissional da saúde, um ser humano que sofre e que por vocação escolheu adotar uma postura de facilitadora da dor humana? Essas são questões que não tenho a pretensão de responder neste artigo, mas são as questões que servem como escopo para que ampliemos a compreensão do significado da prevenção ao suicídio.

Segundo Safra (2004, p. 26),

“A etimologia da palavra ethos remete a dois sentidos: […] Práxis, costume, e como […] morada e pátria. […]. Decorre que a fragmentação do ethos morada leva a um tipo de sofrimento que, apesar de alcançar registro psíquico, não tem sua origem no psíquico. São os sofrimentos que acontecem em registro ontológico!”.

Kovács (2015, p. 75) afirma: “[…] a pessoa é juiz de sua vida. É seu olhar e não o dos outros que define o que é sua dignidade. Será que uma pessoa pode ser obrigada a viver?”. Lembro-me de um cliente que ficou cinco anos com meu cartão de visitas antes de marcar a primeira sessão, pois leu em meu livro Suicídio e Gestalt-terapia (Fukumitsu, 2012) a informação de que eu “sou amante da vida”. Disse que titubeou pois tinha receio de que eu tentasse convencê-lo a continuar vivo quando optasse pelo suicídio. O impasse acontecia quando dizia que, caso não saísse do trabalho, que por sinal odiava e o fazia sentir-se enclausurado pela boa condição financeira que lhe promovia, matar-se-ia. Apercebia-se extremamente infeliz e insatisfeito, pois alegava sentir-se todos os dias vendido e vivendo uma vida promíscua somente pela questão financeira.

Talvez a partir da ideia suicida, procurava por aquilo que ainda não fora capaz de encontrar: respeito, autonomia e dignidade em sua vida. Disse isso para ele, ao que concordou, e quando investiguei aquilo que ele faria caso pudesse escolher e se libertasse do trabalho, afirmou que seu sonho seria o de percorrer a Europa “mochilando”. O cliente trazia um pensamento maniqueísta segundo o qual ou ele sairia do emprego ou se mataria. Como trabalho com a premissa de que tudo o que um cliente coloca como ação no futuro do pretérito pode ser efetuado no aqui e agora, tivemos sessões nas quais dizia para ele: “Por que fala como se não houvesse a possibilidade de você viver o que tem vontade de viver no aqui e agora?”. Em outras palavras: “Por que está deixando para depois o que pode fazer hoje?”.

Após algum tempo de processo, o cliente disse: “Está na hora de eu parar o processo”. Uma vez que ele não tinha pedido demissão, lembrei do nosso combinado inicial e experimentei-me com minhas mãos atadas, extremamente impotente e emocionada. Explanei: “Como sou mulher de palavra, terei de honrar um combinado que realizei com você inicialmente, mas confesso que não está sendo nada fácil. Nosso acordo foi o de que não tentaria convencê-lo a continuar vivo, e uma vez que você não saiu do seu trabalho, meu sentimento é de extrema impotência e tristeza ao saber que sua opção seria a de se matar. Respeitá-lo-ei acima de tudo”. Ao que replicou: “Seu respeito é crucial para minha escolha. Você saberá de mim. Confie em mim, eu ficarei bem”. Eu (aflita ainda): “Mas você vai se matar? Eu gostaria de saber se eu posso fazer algo por você. Posso falar com alguém da sua família?”. Ele: “Confie em mim. Farei valer tudo o que falamos e o que aprendi aqui no processo com você. Lembra do nosso acordo?”.

Ele foi embora e eu fiquei com a sensação amarga de querer, ao mesmo tempo, fazer jus à minha combinação com ele e, por outro lado, colocá-lo em uma redoma de vidro para que eu pudesse protegê-lo e me assegurar de que não o perderia pelo suicídio. Aguentei firme. Recorri a várias sessões de psicoterapia pessoal para lidar com o angustiante sentimento de que deveria respeitá-lo em sua decisão e em sua autonomia.

Como o dito popular reza que notícia ruim normalmente chega rápido, durante uma semana vivi o luto antecipatório de um possível suicídio de meu cliente. Um luto gerado pelo desconhecimento do que aconteceria com essa pessoa que um dia me procurou para ajudá-lo em seu sofrimento.

Um mês depois, ele deixou um recado na secretária eletrônica dizendo que estava no aeroporto, “partindo para a Europa para mochilar”. Imediatamente, após ouvir seu recado, emocionada, liguei para ele e, como ele não me atendeu, deixei um recado em sua caixa postal: “Que bom que está vivo! Que alívio saber que você optou por realizar o seu sonho. Boa Europa!”.

O que mais aprendi com esse cliente foi o exercício da tolerância com a falta de sentido de vida do outro. Nessa direção, há de se considerar outra característica do comportamento suicida, a impulsividade (WHO, 2014), sobre a qual discorrerei a seguir.

Algumas pessoas cujas mortes foram consumadas não deram o devido tempo para que encontrassem outra solução para seu sufoco, nem deram ao outro a chance de serem auxiliadas. O ato suicida é impulsivo e, por esse motivo, precisamos “ganhar tempo” e estimular que a pessoa “dê tempo” até que seu desespero passe. Sua impulsividade e pressa de se livrar do enorme incômodo andam na contramão das sensações que exigiriam maior tempo para reconquistar mais sabor, cor e prazer.

O desamparo abala o indivíduo, por estar machucado demais para crer. Além disso, ele não acredita mais que o outro poderia lhe fornecer o bálsamo necessário. Como supramencionado, a morte autoinfligida pode ser percebida como uma via de comunicação que a pessoa encontrou para dar conta daquilo que deveria ser comunicado ao outro ainda em vida. Os outros passam a ter somente a função de cumplicidade nula ou parcial de seus sonhos. Da mesma maneira que sente que o outro não fez parte de seus anseios e respectiva satisfação, a pessoa se perde em suas partes. Seus comportamentos por vezes agressivos atordoam os outros, pois está atordoado. Grita com o outro, pois grita por socorro. Manda o outro embora e provoca abandonos porque já se abandonou. Não se sente amado, tampouco respeitado e, por fim, entrega-se por não confiar que tudo é passageiro, inclusive seu sofrimento.

Quem se aniquila, transmite sua mensagem, mas não permite mais, em virtude de sua morte, conhecer sua transcendência, ou seja, sua capacidade de ir além daquilo que conhecia sobre si mesmo. Morto, não conseguirá fazer mais nada. Não conseguirá sequer perceber que seria capaz de se superar e de conquistar novas formas de se perceber e de se comunicar. Talvez pudesse descobrir que poderia rir de si e da situação caótica que o avassalava momentaneamente. Vivo, poderia comprovar que seria capaz de se sobrepor àquilo a que outrora acreditou ser impossível sobreviver. Vivo, teria condições de se superar, mas, morto, perdeu a chance de sorrir mais uma vez e de descobrir que sua vida valeria a pena ser vivida.

Desse modo, o que se pretende trazer à tona nesta reflexão é o fato de que, se quisermos preservar a vida, devemos ampliar recursos para o enfrentamento dos embates diários, assim como as maneiras de acolhimento das feridas que levam um ser a acreditar que a morte seja a solução para qualquer dissabor a que foi acometido. Nessa lógica, seria necessária a revisão das formas de a pessoa responder ao que o mundo lhe apresenta a fim de ressignificar a dor que se torna pungente e dilacera sua alma. É também recomendável ofertar educação que inclua a morte e os aspectos necessários para lidar com a vulnerabilidade e fragilidade humanas. Dessa maneira, a preocupação com as mortes autoinfligidas percorre uma trajetória pela qual as questões sobre a vulnerabilidade existencial se tornam destaque na compreensão do bem-estar humano.

O antídoto do processo de morrência é extrair flores de pedras, processo no qual, a partir de um solo árido é possível se surpreender com as belezas que a vida oferta, tal como Rilke (2007, p. 64) apontou: “[…] a vida foi verdadeiramente feita para nos surpreender (e isso não nos espanta de jeito nenhum)”. Ao extrair flores de pedras, apercebemo-nos das toxicidades e discriminamos o que é nutritivo e tóxico, e aprendemos o que realmente é essencial para nossas vidas sem a exigência de sermos absolutamente perfeitos e bem-sucedidos. À vista disso, no processo de extrair flores, a compreensão sobre a efemeridade da vida assume a dianteira de nossas ações, bem como a flexibilidade de nossos sentimentos e pensamentos surge como proposta principal para a conquista da tolerância existencial. Cabe ressaltar o fato de que o desespero surge pela falta de reflexão de que tudo é passageiro na vida. Assim, a impotência é expressa pela falta de ação e os fragmentos se acentuam. Mas, em se tratando de vida, tudo ainda é possível.

Quem disse que todos os quebra-cabeças das histórias cujas peças foram perdidas serão montados e que, somente quando montados, servirão? Quem disse que todos os fragmentos devem ser preenchidos? Não, a vida não acontece na completude absoluta de todas as coisas. É preciso o vazio. No vazio é que há a possibilidade vindoura de preenchimento. Constatação que aprendi desde pequena, quando assimilava o pensamento oriental: “em uma sala cheia de móveis não cabe mais nada”. Completude absoluta é impossível para o humano.Somente no mundo da fantasia podemos ser quem quisermos, mas no mundo real a liberdade é limitada e nossas escolhas, restritas.

É necessário descobrir maneiras para não mais nos preocuparmos com nossa reputação e com a exigência de perfeição que prejudica a alma. Somos imperfeitos demais para uma vida perfeita. É preciso ampliar a awareness de si mesmo, de nossos comportamentos disfuncionais e do que faz com que nos acostumemos com o que não deveríamos nos acostumar. A vida é valiosa demais para perder a oportunidade de assumirmos quem somos. Sendo assim, o confortável não é o que não vivemos, mas sim o como encaramos e enfrentamos o que vivemos. O essencial se torna aquilo que se vive na simplicidade e no dia a dia. O essencial é o que torna nossa realidade o nosso próprio sonho.

É preciso chegar ao seu próprio lugar. Trazer-se de volta para seu lar existencial. O peregrino de si deve recuperar aquele que se esqueceu e aquele que um dia confiou e que teve esperança.

Como recomeçar? Como continuar a viver apesar das adversidades? Buscando o que é essencial e construindo a tolerância, que implica lançar mão do desativar-se temporariamente em vez de se desativar e de se desertar completamente. Perdoando-se e perdoando aos outros para que se possa continuar. Fechando etapas que impedem de ir para frente. Aparando as arestas, buscando luz onde sentirmos que ela nos invade, fazendo aquilo que nos faz bem. Observando aquilo que temos.

Se estamos aqui e nossa hora não chegou, por que não viver de maneira melhor, tornando nossa casa uma morada existencial? Todos têm direito de ser quem são, mas cada um deve descobrir seu melhor estilo até que a morte o separe de sua vida.

O acolhimento é uma conquista da relação entre os seres humanos para que se possa auxiliar a pessoa na construção da tríade respeito, autonomia e dignidade. Há sempre a chance de integração das partes que estão fragmentadas a fim de se construir alternativas para que a reforma e a construção existencial aconteçam em partilha.

Pessini (2010, p. 459) afirma que “as pessoas desejam ser tratadas com dignidade e como gente e não simplesmente identificadas como doenças ou partes do corpo doente. Acredita-se que ambientes humanizados são fatores de saúde e cura”. Sendo assim, acredito que dignidade não significa ausência de ordem, mas sim presença de respeito às escolhas pessoais e de outrem. Dignidade significa afastamento de opressão e tormenta na conquista de sentido de vida.

A tarefa existencial de um suicidologista precisa fornecer atenção ao sofrimento alheio, disponibilizando-se afetiva e teoricamente para encontrar expansão e ampliação das maneiras de enfrentamento dos infortúnios e para acolher cada vez mais a fragilidade humana, bem como para promover respeito pela condição existencial independentemente de suas escolhas. Porém, cabe salientar que acredito não ser fácil viver. No entanto, é possível sobrepujar as dificuldades e adversidades por meio da generosidade e amor, oferta de esperança, acolhimento e presença. Isto posto, é preciso resgatar a esperança e os sonhos mais significativos; recuperar os projetos existenciais para que a pessoa não antecipe sua morte, ou seja, a fase final do desenvolvimento humano. Apesar da restrição existencial daquele que não consegue vislumbrar horizontes, as possibilidades não se extinguiram. Não é porque a pessoa não vislumbra ainda seu sentido de vida, que ele, o sentido de vida, não existe. As possibilidades ainda continuam…

KARINA OKAJIMA FUKUMITSU é psicóloga e psicoterapeuta, pós-doutoranda peloPrograma de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP e bolsista PNPD/Capes.

 

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