Em 1952, Graciliano Ramos, na condição de presidente da Associação Brasileira de Escritores, viajou à União Soviética e democracias populares como membro da comitiva pecebista que acompanharia os festejos de Primeiro de Maio em Moscou. Na sede da União dos Escritores Georgianos, ao deparar com romances de Tolstói, perguntou pelas obras de Dostoiévski, provocando uma saia justa entre a delegação e os representantes do governo soviético, que não digeriam bem a instabilidade da prosa dostoievskiana e personagens proféticos como o Piotr Stiépanovitch de Os possessos1. O episódio dá a medida do “problema-Dostoiévski” durante o stalinismo, mas assinala igualmente a proximidade entre a obra do russo e a de um de nossos maiores escritores: caso emblemático de diálogo que permitiu a Graciliano praticar um tipo de romance introspectivo que lhe valeu a alcunha de “Dostoiévski brasileiro”2. As afinidades entre escritores brasileiros e russos não são casuais e remontam ao século XIX: os ideais burgueses infirmados pela evidência do atraso local obrigava-os a repensar o paradigmático romance realista de matriz europeia. O esforço implicava, por sua vez, a desmistificação da ideologia do progresso, sem prejuízo de sua adoção compulsória, e criava uma dicção romanesca muito própria, mais afinada com as circunstâncias periféricas3.
A presença decisiva da literatura russa na vida intelectual brasileira durante o Estado Novo é o eixo do monumental Dostoiévski na Rua do Ouvidor: a literatura russa e o Estado Novo, de Bruno Barretto Gomide. O livro dá continuidade ao estudo da recepção do romance russo no Brasil, iniciado com Da estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), cujo mote era a compreensão, por parte da crítica e dos escritores brasileiros, de um romance distinto daquele produzido pelo alto realismo francês. Como passo adiante dessa empreitada, o novo livro se detém na recepção da literatura russa durante a Era Vargas, mais precisamente nos momentos em que se consolidam as “duas febres” de russofilia no Brasil: a primeira, de 1930, que caminhava pari passu com a centralização de poder, a substituição de importações e a proliferação de ensaios interpretativos sobre o país; e a segunda, entre 1943 e 1945, período de polarização ideológica pautada pelo realinhamento do Brasil na geopolítica internacional e pelos estertores da ditadura estadonovista. Entre uma e outra onda, um período de hibernação, justificado pela atuação do aparato repressivo do Estado.
A tese proposta por Gomide é a de que a recepção da literatura russa no Brasil dos anos 1930 e 1940 pode ser compreendida como um sismógrafo das flutuações políticas da Era Vargas. Para dar suporte ao argumento, o livro apresenta, em caráter inédito, documentos de arquivos russos até então inexplorados por pesquisadores latino-americanos; minuciosa pesquisa de matérias publicadas em periódicos nacionais, que jaziam no habitual esquecimento; e estabelece, ainda, um diálogo efetivo e muito consistente com a crítica e o mercado editorial brasileiro. O resultado, na contramão das teorias da moda e do culto fetichista ao documento, mas que se vale cuidadosamente das fontes primárias como modo de apreensão de um arco temporal extenso, é uma obra que já nasce como referência obrigatória tanto para os eslavófilos quanto para os estudiosos interessados na literatura e cultura brasileiras do século XX.
O resgate, no livro, de matérias de periódicos permite redimensionar a atuação importante de Brito Broca, misto de crítico e tradutor russófilo, tanto numa como noutra febre, e sua participação no ponto editorial máximo de cada uma delas: o pioneiro lançamento da Biblioteca de Autores Russos, coleção idealizada nos anos 1930 pelo editor Georges Selzoff, e a coleção, em 20 volumes, da obra de Dostoiévski pela José Olympio, já ao final do Estado Novo. Outra figura que avulta nesse quadro é a de Valdemar Cavalcanti, importante e esquecido crítico literário, que escrevia sobre literatura russa e tinha como interlocutores Graciliano Ramos e José Lins do Rego. É sugestiva a imagem do jovem crítico das longínquas Alagoas comentando avidamente, no início da década de 1930, a coleção lançada por Selzoff e articulando a sua leitura dessas obras às plataformas progressistas do círculo de Maceió. Por meio da atuação de Cavalcanti, Gomide conclui que, durante a primeira febre, a literatura russa foi apropriada como uma arma contra o positivismo da República Velha e, portanto, alinhada ao grande projeto de construção nacional empreendido pelo primeiro Vargas. Àquela altura, o “demônio” Dostoiévski, com sua desconcertante complexidade, servia para iluminar o atraso brasileiro e o nosso precário sistema intelectual e editorial.
Já a segunda febre de russofilia, a partir de 1943, simultânea ao desmonte do aparato repressivo varguista, caracterizou-se pela apropriação política de autores e obras, tanto por críticos da esquerda quanto da direita católica. O realinhamento do Brasil com os Aliados e a Batalha de Stalingrado, momento-chave do conflito mundial, propulsionaram o surgimento de textos que, em tons épicos, louvavam nos jornais o humanismo soviético contra a barbárie nazista. Por esses tempos, proliferavam lançamentos de prosa de ficção russa. Essa fase da crítica brasileira, que teve em Tolstói o seu símbolo, tornado quase um soldado do front em razão do caráter grandioso e deliberadamente histórico de suas narrativas, ficou marcada também pelo reaparecimento da literatura soviética, pós-revolucionária, anunciando a empreitada que mobilizaria o trabalho incontornável de Boris Schnaiderman. Antonio Candido, nesse período, é autor do único exemplar de estudo da poesia russa feito no rodapé brasileiro. Além de assinalar a precariedade das traduções para o português, Candido reivindicava uma melhor compreensão do lirismo conflituoso de Maiakóvski, diante do qual a leitura “stalingrádica” parecia-lhe insuficiente. Atento às pressões e respostas do momento, Gomide demonstra como o terreno pró-russo de meados dos anos 1940 fez com que essa literatura, valendo-se das brechas do aparato repressivo ditatorial, se tornasse também um instrumento de luta contra o regime varguista, tomando parte na arena política e permitindo aos críticos brasileiros repensarem, a partir da ficção russa, o seu próprio país.
O livro também traz à tona, do outro lado da linha, a atuação de David Vygódski, poeta, editor e tradutor russo que, embora nunca tenha saído de seu país de origem, estabeleceu pontes decisivas com a América Latina. Vygódski criou verbetes para a Grande Enciclopédia Soviética em 1928 e 1935, organizou antologias de autores latino-americanos e traduziu para o russo obras de Mário de Andrade e José Lins do Rego. Suas correpondências com Jorge Amado, Tarsila do Amaral e Osório César atestam o intercâmbio cultural entre a América Latina e a Rússia. Tal intercâmbio revelava um sistema de trocas simbólicas desiguais: se cabia aos textos brasileiros publicados na Rússia fornecerem informações sobre o “lado de cá”, à pátria de Stalin se impunha a tarefa de “educar” e “transformar” a atrasada realidade sul-americana.
O destaque dado por Gomide à Literatura Internacional, estratégica revista de difusão da literatura russa na América Latina, justifica-se na medida em que a revista consolida, nos anos 1940, um viés político de leitura das obras russas entre nós. No entanto, a defesa da “cultura universal” contra o nazifascismo pregada pela revista, justamente pela amplitude de seu posicionamento, permitiu a publicação de textos variados, que desfaziam o lugar-comum da “camisa de força” stalinista e do caráter puramente doutrinário de tudo o que fosse produzido pela diplomacia cultural russa. Desse modo, conclui Gomide, as “disputas, negociações e tensões internas” no interior da revista acabaram se contrapondo a uma visão simplista sobre a cultura soviética do período, que não servia apenas para trombetear as conquistas políticas de Stalin e garantir a defesa do regime.
Em uma de suas seções mais instigantes, “O pandemônio”, o estudo mostra como os órgãos repressivos, respaldados pelo anticomunismo de parcelas consideráveis da população, atuaram na apreensão de “livros vermelhos”, uma baixa editorial sentida por Carlos Drummond de Andrade (“São textos frios, em línguas incompreensíveis e trazendo nomes arrevesados; como alguns desses nomes terminam em ov, em ovski e em inski, levemo-los ao delegado, e o cidadão vai também, por via das dúvidas”), Valdemar Cavalcanti (que denunciava o fato de vários livros terem sido sido “presos, torurados, incinerados”) e um já feroz Carlos Lacerda (que realçava o retardamento da renovação literária entre nós como consequência da perseguição aos textos russos). Mais uma vez a inteligência nacional se via às voltas com a polícia, cujo poder recrudescia juntamente com a histeria antibolchevique provocada pelos levantes de 1935. Gomide mostra que, enquanto na primeira febre houve certa margem de manobra em relação à censura, a partir de 1935 a escalada anticomunista incitou à apreensão de “tudo o que tivesse a ver com a terra de Stalin”. Compunha o quadro nada singelo a disputa, entre a direita e a esquerda locais, por autores e obras do século XIX. Tal disputa poderia ser matizada em três grupos de críticos: um primeiro, de fundo nacionalista, que separava drasticamente a literatura russa oitocentista do comunismo; um segundo, o qual via essa produção como precursora do bolchevismo, anulando, a rigor, qualquer distância entre Gorki e Lenin; e um terceiro, mais ambivalente, que se não recusava veementemente o comunismo soviético, tampouco nutria entusiasmo por ele.
Em meio às contendas, a carta escrita pelo operário João Cunha de Pedra ao Dops, descoberta e reproduzida na íntegra, é um dos inúmeros achados do livro e um documento-síntese das contradições do fascismo à brasileira. Nela, o autointitulado “patriota” denuncia os “diabos que vêm de Moscou”, como o editor Selzoff, com o propósito de “escangalhar o país”. O paradoxo é muito revelador de nossos descompassos: enquanto a polícia absolvia, ao menos temporariamente, o editor responsável pela Biblioteca de Autores Russos, o trabalhador alcaguete clamava às autoridades pela prisão de Selzoff. Um curto-circuito dessa ordem dava a medida de como a difusão da literatura russa no Brasil passava por negociações complexas quanto ao seu significado, nada redutíveis à dicotomia “povo” versus “polícia”.
Por essa época, a ânsia por um debate literário qualificado fez sobressair a figura austro-brasileira de Otto Maria Carpeaux, para quem urgia rever as interpretações católicas e essencialistas sobre Dostoiévski, o que implicava investigar mais a fundo a relação entre a literatura produzida pelo escritor e a política. Mas os limites de Carpeaux também são revelados, ao demonstrar que o crítico, em ensaio sobre a obra de Nikolai Leskov, plagiou aquele que, para sua má sorte, se tornaria um dos ensaios mais conhecidos e fundamentais de Walter Benjamin: “O narrador”. Evitando a polêmica gratuita e sem desmerecer o legado de Carpeaux, a argumentação de Gomide caminha no sentido de mostrar como a apropriação indébita por parte do crítico de certo modo sinaliza a incipiência cultural do país, em um momento do livro em que se patenteia a posição subalterna do Brasil no âmbito das trocas simbólicas.
No periodismo russófilo estudado por Gomide, Dostoiévski ocupa um lugar central. Não apenas porque o autor de Recordações da casa dos mortos era objeto preferencial da disputa política, mas também porque vinha sendo estudado sistematicamente desde fins do século XIX pelos críticos nacionais. No capítulo em que discorre sobre os autores e temas de eleição dessa crítica, Gomide aventa a hipótese de que a complexidade do signo-Dostoiévski teria ajudado, por tabela, a crítica local a repensar as fronteiras supostamente estanques entre os “romances sociais” e os “romances introspectivos” dos anos 1930, divisão simplista que as obras de Graciliano Ramos ou de Dyonélio Machado, por exemplo, não hesitaram em solapar.
Por essa centralidade, Dostoiévski na Rua do Ouvidor traz também um alentado capítulo sobre a coleção dedicada ao escritor lançada pela José Olympio nos anos 1940. Entendida por Gomide como o ponto alto do diálogo com a literatura russa e das tensões culturais do Estado Novo, ela representou, segundo o crítico, “a verdadeira fundação editorial da literatura russa no Brasil”. Como contraponto à Coleção Balzac, lançada pela Livraria do Globo e coordenada por Paulo Rónai, reuniu tradutores como Raquel de Queirós, Rosário Fusco, José Geraldo Vieira e Lêdo Ivo, e, se o resultado não superou o problema crônico das traduções indiretas, foi capaz de projetar na arena internacional, pela primeira vez, uma edição russo-brasileira de monta. A coleção tornava-se, então, emblema da vitória sobre a ditadura estadonovista, ao mesmo tempo em que criava um espaço de conciliação muito característico de seu editor, que, segundo Drummond, publicava “com o mesmo espírito autores da direita, do centro, da esquerda e do planeta Sírio”4.
Embora trate da literatura russa durante a Era Vargas, o estudo de Gomide parece ter como ponto de fuga a figura de Boris Schnaiderman, cujas atividades ensaísticas e tradutórias iniciam-se em 1956. O livro mostra o projeto de Schnaiderman como tributário de seus predecessores, mas com avanços efetivos em relação a eles. Atenta à linguagem, às vozes literárias e promovendo traduções diretamente do original, essa produção assinala, segundo Gomide, um contraponto aos exageros retóricos e aos equívocos interpretativos da segunda febre. A nova fase de estudos e traduções, Schnaiderman à frente, corresponde a um momento de especialização, abrindo caminho para os indispensáveis trabalhos produzidos pela russística acadêmica nos anos 1960 e 1970. No entanto, o crítico nunca abandonou o jornalismo cultural, fincando pé em cada um desses mundos5. Ao longo dos capítulos, é possível acompanhar o percurso de Schnaiderman, como um rio subterrâneo que, tendo nascido nos rodapés, seguiria curso caudaloso nas décadas posteriores. Essa presença quase “em surdina” emoldura o trabalho de Gomide e garante ao estudo uma camada ainda maior de significação. Portanto, além da imensa contribuição para a nossa historiografia literária e para os estudos russófilos, Dostoiévski na Rua do Ouvidor é também a mais consistente homenagem que o professor poderia receber.
FABIO CESAR ALVES é professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo.
1 Cf. Dênis de Moraes, O Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos, São Paulo, Boitempo, p. 274.
2 Em enquete para a Revista Acadêmica, Graciliano apontava Crime e castigo como “um dos dez maiores romances do mundo” (Dênis de Moraes, op. cit., p. 166). Em carta a Heloísa Ramos datada de 30 de março de 1935, mostra-se orgulhoso e ao mesmo tempo prudente quando a crítica o compara a Dostoiévski: “O paraense ataca a minha linguagem, que acha obscena, mas diz que eu serei o Dostoiévski dos Trópicos. Levante-se e cumprimente. Uma espécie de Dostoiévski cambembe, está ouvindo?” (in Cartas, Rio de Janeiro, Record, 1980, p. 141).
3 Cf. Roberto Schwarz, “As ideias fora do lugar”, in Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000, pp. 28-9.
4 Carlos Drummond de Andrade, “A casa”, in Fala, amendoeira, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 36.
5 “Ao contrário de outros imigrantes que vieram da Europa para o Brasil já formados em humanidades ou de outros eslavistas profissionais do Hemisfério Norte, Boris Schnaiderman se constitui como crítico no diálogo com a imprensa brasileira e seus gêneros quintessenciais do rodapé e da crônica. Ele prezava os estilos diretos e informativos, a escrita solta (mas não cediça) e a dimensão pública do periodismo, carregada de um elemento missionário caro à intelligentsia russa. Embora ele reconhecesse que a universidade lhe havia dado aportes teóricos e oportunidades de desenvolvimento profissional, manifestava desconforto com a estrutura acadêmica e suas burocracias” (Bruno Barretto Gomide, “Pormenores violentos: Boris Schnaiderman, o crítico”, in Revista Literatura e Sociedade, n. 26, 2018, pp. 35-36).