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Políticas dos direitos humanos: compliance , dissenso, estética da existência

Andrei Koerner Marrielle Maia

resumo

O artigo apresenta trabalhos acadêmicos sobre compliance dos Estados com normas internacionais de direitos humanos e critica os modos de objetivação e de subjetivação produzidos por eles. São abordados o seu modelo de análise, os seus pressupostos sobre o direito internacional e suas implicações práticas, contrapondo-os com outras perspectivas teóricas. O objetivo é explorar as bases de um pensamento crítico que ultrapasse os termos do debate atual sobre as políticas de direitos humanos.

Palavras-chave: direitos humanos; direito internacional; compliance; ontologia do presente; pensamento crítico.

abstract

This article presents academic papers on state compliance with international human rights standards; and criticizes the modes of objectification and subjectivation produced by them. Their analysis model, their assumptions on international law and its practical implications are addressed and opposed to other theoretical perspectives. The aim is to explore the basis for critical thinking that goes beyond the terms of the current debate on human rights policies.

Keywords: human rights; international law; compliance; present ontology; critical thinking.

 

Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que “todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”.

Neste ano de 2018, quando se comemoram 70 anos da criação da Declaração Universal de Direitos Humanos pela Assembleia Geral da ONU, as tensões internacionais são particularmente fortes. O governo de Donald Trump tornou oficial a política dos Estados Unidos de confrontar as bases da ordem internacional, com ataques diretos aos direitos humanos. A potência hegemônica parece dar o coup de grâce às ilusões universalistas que ela própria estimulou e a situação atual poderia ser colocada como a crise ou colapso da ordem existente. Uma produção intelectual de relações internacionais e política comparada aponta os “tempos finais” dos direitos humanos, a ineficácia ou os efeitos perversos dos tratados, a sua captura pela política externa norte-americana ou sua colusão com o neoliberalismo. Outros defendem as instituições internacionais e organizações não governamentais, mas tendem a adotar o ponto de vista dessas, confundindo os direitos humanos com as políticas que elas promovem (Sikkink, 2017).

Neste artigo busca-se uma perspectiva crítica para a pesquisa e a reflexão sobre os direitos humanos capaz de ultrapassar os termos do debate atual. Analisa-se a produção intelectual sobre políticas internacionais de direitos humanos, com foco no tema da compliance dos Estados. Discute-se a problemática da efetivação dos direitos humanos nas tensas relações entre a produção das normas e a criação de nós mesmos e de nossas relações com os outros. O objetivo é explorar um enfoque dos direitos humanos em que a tensão, o conflito, o dissenso não sejam pensados como obstáculos mas como suporte para a (auto)produção normativa de agentes e coletividades. Este trabalho, de caráter preliminar, orienta discussões de pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados (GPDH/IEA) da USP sobre políticas de direitos humanos, que trabalham num projeto coletivo denominado provisoriamente “Direitos humanos sob tensão”.

O artigo apresenta inicialmente trabalhos sobre a compliance dos Estados em direitos humanos. Em seguida, discute essa forma de abordagem e explora algumas alternativas teóricas. A terceira seção sintetiza a discussão e indica alternativas para o pensamento crítico sobre o tema. A conclusão retoma a reflexão sobre os direitos humanos na atualidade.

SABERES ACADÊMICOS SOBRE OS DIREITOS HUMANOS

Apresentam-se trabalhos acadêmicos nas áreas de relações internacionais, ciência política e direito internacional sobre a compliance dos Estados com as normas internacionais de direitos humanos. Não se trata de fazer uma revisão sistemática da extensa produção sobre o tema, mas de tomar alguns trabalhos como base para a análise e discussão.

Os estudos sobre compliance em direitos humanos constituíram um campo particular nas últimas décadas. Eles colocam uma questão central para o direito internacional e as relações internacionais: por que os Estados obedecem às normas internacionais?

As teorias das relações internacionais respondem à questão de maneiras distintas. As realistas consideram que as regras jurídicas não produzem efeito autônomo para a ação dos Estados em relação aos objetivos definidos por eles. O direito internacional seria um epifenômeno, os direitos humanos seriam como um cheap talk. Para as utilitárias, as regras produzem efeitos de informação e coordenação, e os Estados definem suas ações segundo seu cálculo de custos e benefícios; as teorias liberais defendem que os Estados definem suas condutas por questões de legitimidade e que as características domésticas influenciam no cumprimento de compromissos internacionais. Enfim, para as construtivistas, os Estados definem sua conduta segundo questões como a identidade e a propriedade da ação em relação à regra.

Os trabalhos em direito internacional e relações internacionais sobre a compliancem discussões elaboradas sobre as relações entre teorias, conceitos e técnicas de pesquisa1. O termo “compliance”, entendido como conformidade da conduta de um agente com o mandato estabelecido por uma norma jurídica, é especificado para distinguir a mera coincidência entre norma e conduta, a conformidade apenas externa da conduta à norma e a socialização ou internalização, em que o ator tornou o mandato da norma o princípio da sua própria conduta. Ele se diferencia de termos correlatos, como a aplicação (enforcement) de uma decisão tomada num litígio; a implementação, que compreende medidas para adequar a conduta à norma; a eficácia, que é o grau em que a regra ou padrão induz à mudança de comportamento; a efetividade, que se refere ao estado de coisas (outcome) produzido pela norma; e, ainda, o impacto da norma, ou a mudança por ela provocada, mesmo que indiretamente, nas condutas e relações sociais. Há debates metodológicos sobre a forma de medir a compliance e a efetividade do direito internacional (Hafner-Burton & Ron, 2009; Simmons, 2013), rejeita-se a compliance como questão, por ser um termo jurídico e inadequado para medir os efeitos das instituições (Martin, 2011) ou se propõe adotar teorias e metodologias ad hoc, em função dos problemas de pesquisa (Engstrom, 2017).

Apesar de sua variedade, os trabalhos sobre compliance adotam, basicamente, questões referentes à influência comportamental das regras jurídicas (Raustiala & Slaughter, 2002; Kinsbury, 1998). A unidade de análise (o ator cujo comportamento é influenciado) pode ser o Estado, o governo e outros sítios institucionais dotados de poderes decisórios, grupos ou indivíduos. Sua finalidade prescritiva é, a partir dos achados empíricos sobre os mecanismos causais, sugerir políticas para aumentar a efetividade do direito internacional dos direitos humanos. Sua ênfase é no papel ativo das instituições multilaterais e redes transnacionais, cabendo aos agentes públicos ou privados “locais” o papel de receptores ou coadjuvantes.

Apresentam-se a seguir duas ilustrações de trabalhos acadêmicos sobre a compliance. Eles foram escolhidos não por seu caráter inaugural, ineditismo ou singularidade, mas porque são exemplos bem elaborados da maneira pela qual a questão vem sendo pensada.

The power of human rights, organizado por Risse, Ropp e Sikkink (1999), resulta de pesquisa internacional e comparada sobre a efetivação das normas internacionais de direitos humanos pelos Estados. Para eles, é crucial o papel das redes de ativismo transnacional para despertar a consciência moral internacional, apoiar os grupos de oposição doméstica e ativar a pressão internacional e doméstica contra as violações. Eles adotam uma perspectiva construtivista, segundo a qual os atores formam suas identidades pela “batalha” de ideias em processos comunicativos. A identidade define o campo de interesses possíveis e apropriados, e proporciona uma medida de inclusão e de exclusão dos atores. Define-se uma comunidade, um “nós” social com suas normas e fronteiras contra os “outros” (Risse & Sikkink, 1999).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos teria estabelecido os princípios básicos constitutivos de uma estatalidade moderna e civilizada, e haveria uma comunidade de Estados “liberal-democráticos” cujas identidades se sustentam e apoiam os direitos humanos (Risse & Ropp, 1999, p. 234). As instituições multilaterais de direitos humanos seriamtios de informação e decisão comuns, com o papel de difundir as normas para os “outros” Estados, autoritários ou violadores, com baixa ou nenhuma socialização.

Os autores propõem um esquema teórico multinível para entender a difusão e o processo de socialização. Este seria a passagem de ideias sobre princípios sustentadas por indivíduos para normas, no sentido de entendimentos coletivos sobre o comportamento apropriado. Ele induz não só a mudanças nos comportamentos dos atores, mas à internalização de normas, de modo a tornar desnecessária a pressão externa para assegurar a conformidade. A socialização produz um self político, que molda a relação do ator consigo, com os outros atores e conforma a sua relação com a comunidade política. Distinguem três mecanismos causais e tendencialmente sucessivos: a interação instrumental-estratégica; a emergência da consciência moral pela argumentação; e a criação de normas. O esquema se traduz no “modelo espiral”, uma teoria dos estágios e mecanismos pelos quais as normas internacionais podem levar a mudanças no comportamento dos Estados. Ele tem cinco fases, que compreendem a repressão, a negação das violações e as concessões táticas, seguidas da institucionalização e da habitualização. A última fase significa a socialização dos direitos humanos no âmbito doméstico, quando os governos nacionais fazem mudanças legislativas e se engajam na implementação das normas, incorporando-as nas práticas correntes. No final, o respeito aos direitos humanos tornar-se-ia “a coisa normal a fazer”, e a compliance seria rotinizada e despersonalizada, independentemente da consciência moral dos atores. As normas são “tomadas como dadas”, o que é o estágio final do processo de socialização (Risse & Ropp, 1999, p. 17).

Em The persistent power of human rights – from commitment to compliance (2013), os autores mantêm o esquema, com algumas alterações. A principal fraqueza do modelo estaria na explicação da mudança nas últimas fases. Por isso, centram a atenção na passagem do compromisso à compliance, ou das concessões táticas, de Estados e de atores não estatais, ao comportamento consistente (Risse & Ropp, 2013, p. 10).

Uma modificação importante é sobre a capacidade estatal. Eles não mais assumem que as violações ocorrem devido à falta de vontade dos Estados de obedecerem, pois admitem que a conduta pode ser involuntária, em virtude da falta de capacidade. Sobre a vulnerabilidade social a pressões internacionais, a identidade do Estado seria decisiva, pois a compliance é menor se os direitos humanos encontrarem contranarrativas eficientes. Consideravam que a direção da persuasão e do discurso dos direitos humanos era unilateral, dos atores transnacionais para os Estados violadores, mas reconhecem que “estavam errados, infelizmente”, pois há contradiscursos poderosos, como a defesa do Estado e de valores particulares (Risse & Sikkink, 2013, pp. 285-6).

Outros trabalhos consideram que a política interna dos Estados é determinante para o seu comportamento em relação às normas internacionais de direitos humanos. Eles desagregam os Estados em instâncias institucionais e atores que estabelecem alianças a favor ou contra a compliance. Esta seria função dos seus efeitos eleitorais e, portanto, dos interesses das coalizões políticas (Dai, 2006), dos interesses que constituem as alianças internas pró ou contra a norma (Trachtman, 2010) ou do jogo de sinalização do governo para sua audiência interna e externa (Hillebrecht, 2014).

Em Conflict and compliance, Sonia Cardenas (2007) defende que a mudança de comportamento do Estado não é resposta direta às pressões, mas envolve um processo multifacetado de dinâmicas internacionais e internas. Para explicar as variações de comportamento de Estados violadores, ela desagrega a compliance em duas dimensões: as violações e os compromissos. Seu modelo teórico combina os três principais fatores explicativos das teorias de relações internacionais: o poder, o autointeresse e as normas. Esses fatores atuam de forma conjunta e contraditória em três planos: o internacional/regional, o doméstico e o das interações entre eles.

A mudança do comportamento do Estado seria o resultado contingente da interação, nos três planos, dos fatores de compromisso e de apoio às violações. As pressões internacionais dependem de dinâmicas internas para provocarem, indiretamente, a compliance dos Estados. Se a pressão pode coagir, induzir ou persuadir Estados, a conformidade depende do que está em jogo: a segurança nacional, a existência de apoiadores às violações ou de regras de exceção. Assim, nem sempre os líderes estatais podem ser convencidos, coagidos ou influenciados a não violarem normas. Quanto maiores as ameaças à segurança nacional, mais fortes os apoiadores das violações e mais enraizadas as regras de exceção, é menos provável que qualquer ator possa transformar o interesse estatal pela violação das normas internacionais. Um esboço de mudança positiva é a diminuição da ameaça à segurança nacional, a perda de influência dos apoiadores de violações e a maior presença dos defensores de direitos humanos. Mas a mudança normativa depende de aceitação societal ampla e os direitos humanos devem ser apoiados por grande conjunto de grupos na sociedade civil, e não só pelos ativistas. Estes podem ajudar a definir alternativas viáveis, a difundir normas, a definir opções políticas e, por meio de suas alianças transnacionais, aumentar os custos da não compliance.

Em trabalho mais recente (Cardenas, 2014), a autora elabora uma teoria sobre as Instituições Nacionais de Direitos Humanos (INDH)2 de escala histórica e global. Ela adota um olhar institucionalista, que enfoca questões de sua criação, design e dependência de trajetória. As INDH aprofundariam a tendência do pós-Guerra Fria de internalização do direito internacional dos direitos humanos. Elas ligam agências estatais com atores nacionais e internacionais, levam normas internacionais ao plano local e inserem no âmbito doméstico novo padrão de avaliação do governo. Elas seriam como cadeias da justiça que levam à accountability dos governantes e ao seu controle pela população. Para avaliar a atuação e potencial das INDH, a autora adota um modelo de democracia deliberativa. As INDH fortalecem o Estado de direito, ajudam a prevenir abusos, expandem a governança democrática, podem melhorar as condições de grupos marginalizados, dando espaço às suas narrativas, ao mesmo tempo em que difundem normas de direitos humanos e socializam os funcionários estatais e outros agentes sociais. Elas contribuem para dar visibilidade e apoiar protestos em nome dos direitos humanos e devem ser sítios de contestação, em que desafiam as violações e as condições que as perpetuam.

 

ANÁLISE E CRÍTICA

Nesta seção discute-se essa produção intelectual e se exploram alternativas para o pensamento crítico sobre os direitos humanos.

Os trabalhos adotam procedimentos de objetivação, modelos analíticos e mecanismos causais para a explicação de comportamentos. Como os procedimentos de objetivação homogeneizam acontecimentos históricos singulares, de modo a se tornarem eventos seriados e normalizados em processos comparáveis. Os eventos são produzidos para serem analisados como exemplares de uma população, sendo indiferente neste ponto se eles são tratados por métodos quantitativos ou qualitativos.

Os modelos “econômicos” de análise institucional em ciência política são particularmente aptos para reduzir problemas normativos a dinâmicas de comportamento. Supõe-se que as normas, jurídicas ou morais, têm funções determinadas – estabelecer os cursos de ação válidos, facilitar a coordenação, definir identidades, etc. Elas são postas como regras simples, em função das quais os atores fixam seus interesses e ideias, e escolhem seus cursos de ação por meio de cálculos estratégicos e outras condições. A partir daí, são definidos mecanismos causais capazes de explicar processos políticos, explorar o papel das instituições, os efeitos de condições sociais e de fatores conjunturais, etc. O resultado é um modelo dinâmico que analisa interações entre atores segundo determinadas condições, e pretende ser capaz de explicar processos empíricos e de prever seus resultados em situações similares. A discussão torna-se o embate sobre modelos analíticos e o uso das bases de informação, deixando em segundo plano o significado de eventos, das narrativas que os sustentam e a sua inserção no processo histórico (Nash, 2015, p. 158).

Os trabalhos colocam a questão dos efeitos dos direitos humanos em termos da alternativa da conformidade ou violação do Estado/ator à norma dada. Mas devem ser discutidos os seus pressupostos sobre a norma e a relação do agente com ela.

A norma de direitos humanos faz parte do ordenamento jurídico positivo internacional. Os trabalhos partem da premissa de que, uma vez que o Estado assinou e ratificou uma convenção de direitos humanos, suas normas têm, por força do próprio direito internacional, caráter vinculante. Mas direitos humanos são limitações ao princípio da soberania e não seus substitutos (Lindgren Alves, 1997, p. 18). No ordenamento jurídico positivo internacional cabe ao próprio Estado definir a maneira pela qual aplicará as normas internacionais às quais se vinculou. A efetivação dos direitos humanos envolve necessariamente um conjunto amplo de normas positivas e um processo complexo de implementação. Cardenas (2007) destacou o caráter multifacetado da compliance estatal, mas limitou as implicações do princípio da soberania ao colocá-lo em termos de segurança nacional.

Um segundo ponto é o das relações das normas de direitos humanos com os discursos e relações de poder que estruturam a ordem internacional. Seria impossível traçar um quadro de conjunto dessa ordem, mas indicamos alguns pontos: a estruturação hierarquizada do sistema internacional, formado por uma potência hegemônica, os Estados Unidos, e outras potências regionais, que organizam suas relações políticas com os demais Estados; aspecto central é a estrutura econômica do capitalismo financeirizado global; um terceiro é a racionalidade neoliberal que permeia relações de governo e subjetividades e organiza o consenso nas sociedades.

Em termos mais amplos, as normas de direitos humanos e a normatividade internacional hegemônica convivem, são concorrenciadas e contestadas por outras normatividades, formas de organização da vida e sistemas de normas e “valores”, elas próprias divididas. Porém, os trabalhos sobre compliance reduzem essas normatividades a contradiscursos usados taticamente por governantes. É mais interessante pensá-las como outros sistemas normativos, presentes de forma tensa e entrelaçada na estruturação das sociedades contemporâneas e nas suas relações (Santos, 2013; Goodale, 2007). Desse modo, a não efetivação de uma norma internacional dos direitos humanos pode ter significados e implicações bastante distintos e bem mais complexos do que supõem os observadores internacionais ao considerá-la em termos de compliance.

Central a essa análise é o tema da prática pela qual se dá a produção coletiva de normas, cuja consequência são o pluralismo jurídico e a interlegalidade. Isso significa que o direito e os direitos humanos vão muito além daqueles reconhecidos pelos tratados ou pela legislação e que a sua efetivação não se dá apenas ou principalmente por meio do Estado. As normas internacionais de direitos humanos coexistem e competem com outras estruturas normativas, configurando um pluralismo normativo transnacional. A prática dos direitos humanos refere-se às múltiplas maneiras pelas quais os atores buscam realizá-los, com seus próprios princípios, técnicas e objetivos (Goodale, 2007, pp. 3-4, 24).

Os direitos humanos emergiriam das interações dos agentes em contexto. Eles se realizam de forma forçosamente conflituosa com as relações de poder e as normatividades dominantes. Pode-se definir os direitos humanos como pretensões morais por justiça, com base na convicção de que se é titular pela condição de ser humano, cujo significado é aberto, com variedade de interpretações em um campo de interações estratégicas marcadas por disputas e cooperação (Nash, 2015, pp. 5, 162). Ou que os direitos humanos se constituem por uma prática necessariamente conflituosa, cujo exercício só é assegurado de forma duradoura por meio de lutas e pressões dos dominados que forem capazes de quebrar as estruturas cotidianas de dominação (Armaline et al., 2015, pp. 14, 77, 89).

O Estado permanece o elo central nessa trama, mas é inserido num novo conjunto de relações, o transnacional. Este é um campo de objetos de conhecimento que teria como referente uma realidade produzida pela crescente complexidade, interconexão e interdependência entre Estados e sociedades desde o pós-Segunda Guerra Mundial. As formas políticas e jurídicas da sociedade internacional teriam sido superadas em prol da governança, dotada de instrumentos souples de gestão coordenada e consensual. O transnacional aparece como uma superfície definida pelas linhas de contato, de confluência e entrelaçamento entre a sociedade internacional e a nacional, a cena global e a local, as normas jurídicas formais e as diretivas informais, entre atores públicos e privados, etc. Ele seria formado por uma trama de relações, interações e redes nas quais se dão as dinâmicas normativas de produção, condensação e efetivação das normas. Ele aparece como um espaço aberto de relações horizontais e trocas, mas nele estão implícitas hierarquias, como a oposição entre global e local, enquanto a imagem horizontal suprime os espaços e relações de dominação (Goodale, 2007, p. 14). De um ponto de vista crítico, é uma realidade de transação, com a qual se criam objetos de conhecimento para problemas que se dão nos pontos de atrito das relações de governo da multiplicidade (Foucault, 2004).

O Estado aparece como ator e sujeito jurídico do sistema internacional, dotado de atributos análogos aos dos indivíduos, que são unificados, detêm vontade, entendimento, senso moral, capacidade de ação. Se o Estado é desmembrado para se pensar as relações políticas internas, a função “ator” é deslocada para o governo, o centro de decisão de um complexo institucional composto, aberto e descentrado, correlacionado a outros entes da sociedade civil e integrado em relações internacionais e redes transnacionais.

O Estado violador de direitos humanos seria uma espécie de indivíduo desviante, cujas reações insatisfatórias aos estímulos externos revelariam a distância entre seus ideais e a realidade, sua divisão entre pulsões contraditórias, sua socialização deficiente. Ele se torna o destinatário, ou alvo, de represálias ou políticas de normalização promovidas por outros Estados e redes transnacionais, que se apresentam como capazes de conduzi-lo, ou reconduzi-lo, à condição de sujeito da comunidade das democracias.

Mas isso supõe que o Estado seja a única instituição de poder que afeta o exercício dos direitos humanos e que seus representantes políticos sejam capazes de governar a sociedade. Coloca-se o problema da maneira pela qual as relações e estruturas de poder entre Estado e sociedade facilitam ou bloqueiam a promoção dos direitos humanos, e das suas relações com outras normatividades (Nash, 2015, pp. 44-5). Questões referentes aos direitos econômicos e sociais envolvem o poder das corporações transnacionais e daí se tem a incapacidade ou a “falta de vontade” do Estado para tornar efetivos direitos que conflitem com os interesses do capital ou com a percepção de estabilidade do sistema capitalista (Armaline et al., 2015, pp. 24, 138). É preciso considerar as diferenças de forma de organização, capacidade e divisões internas dos Estados, produzidas por sua trajetória histórica, sua posição no sistema internacional, sua estrutura de classe e diversidade cultural. Isso tem implicações para se pensar a estatalidade e os direitos humanos, tanto em relação às normas e pressões internacionais quanto em função das dinâmicas internas de mobilização e reivindicação por direitos.

As teorias sobre a compliance associam diretamente o seu enfoque explicativo com o objetivo de produzir avaliação de condutas, estratégias de promoção e repertórios de boas práticas. Estados e sociedades aparecem como alvos ou destinatários de seus discursos e ações. Os movimentos e organizações sociais locais tornam-se coadjuvantes de campanhas transnacionais e sustentáculos para a ação internacional contra autoridades estatais pela efetivação das normas. As normatividades sociais são traduzidas, ressignificadas e neutralizadas no que pareçam incompatíveis com as normas internacionais.

Os efeitos de subjetivação visados são evidentes. Os direitos humanos tornam-se técnicas para controlar governantes, formar funcionários, educar cidadãos, reformar a sociedade. Difunde-se por todo o mundo um certo ideal de sociedade governamentalizada realizada pela forma institucional do Estado democrático de direito numa sociedade capitalista.

Por sua vez, as sociologias críticas deslocam o foco para as relações entre práticas estatais e sociais, colocam em relevo outras fontes de violação de direitos, as maneiras diversas como eles são pensados e, assim, consideram outras formas de promovê-los. Nash define uma política cultural dos direitos humanos cujo locus mais efetivo de realização se dá pela articulação de várias estratégias de mobilização pelos direitos em vários níveis, e não no “paraíso de papéis” e disputas verbais na ONU e outras organizações internacionais, governamentais ou não (Nash, 2015, pp. 74, 24). A Human rights enterprise conceitua os direitos humanos como um terreno de luta social, para evidenciar que eles se realizam em lutas por poder e recursos, levadas por organizações de base contra ou a despeito dos Estados e interesses poderosos, e não por ações estatais compassivas para cumprir acordos internacionais (Armaline et al., 2015, pp. 11-5). Boaventura de Sousa Santos propõe reapropriar os direitos humanos para terem uma destinação contra-hegemônica, intercultural e emancipadora. As suas bases seriam o trabalho político de movimentos e organizações sociais que lutam por uma sociedade mais digna e justa, e a construção teórica alternativa, para questionar o consenso e formular o seu compromisso com os oprimidos (Santos, 2013, pp. 42-4, 53).

 

GOVERNO E CONTRACONDUTAS DOS DIREITOS HUMANOS

O saber acadêmico analisado neste artigo adota o direito internacional dos direitos humanos para limitar o poder soberano estatal e dirigi-lo no sentido da proteção e promoção dos direitos dos indivíduos contra todo tipo de violação. Como parte do ativismo dos direitos humanos, assume uma atitude de “coragem da verdade” que se distancia do ponto de vista do soberano ao trazer sua fala à cena pública para denunciar abusos, solidarizar-se com os dominados, mostrar os erros e quebrar o consenso, mesmo que coloque em risco a sua própria existência (Foucault, 1984, pp. 707-8).

O seu ponto de vista não é o da contestação política, do dissenso, da insurgência, mas o de atores responsáveis pela difusão das normas internacionais de direitos humanos. O seu discurso não é mais da ordem do formalismo jurídico abstrato, pois ele não se concentra na fundamentação filosófica da validade moral ou jurídica dos direitos humanos e não visa mais apenas a justificar a condenação dos Estados em caso de violação. Formula doutrinas que defendem a preeminência dos direitos humanos sobre a soberania e cuja prioridade é estabelecer princípios, regras substantivas e procedimentos a serem aplicados continuamente pelos Estados. Ele não pretende superar os bloqueios do sistema internacional por projetos de grande alcance, tais como o cosmopolitismo, uma constituição ou Estado mundial. Sua estratégia é contornar as limitações das instituições internacionais por meio do fortalecimento de instituições multilaterais e redes de ativismo de direitos humanos. Os conflitos e lutas sociais são legítimos apenas na medida em que convergem com as normas internacionais dos direitos humanos e servem de apoio para atingir os objetivos da gestão.

Esse saber é uma espécie de análise econômica das instituições que visa sobretudo a maximizar a eficácia das normas internacionais de direitos humanos para o governo das sociedades e dos indivíduos. Ele está certamente em disputa com os velhos saberes jurídicos estatais e os da economia neoliberal. Mas, se difere destes do ponto de vista do conteúdo, é-lhes homogêneo no que diz respeito ao modo de objetivação e, por isso, pode se combinar com eles. Assim, ele faz parte de uma ciência da governança transnacional, e sua especificidade está em pôr os direitos humanos como parâmetro normativo para observar, dirigir e avaliar os governos dos Estados na gestão da sociedade e dos indivíduos.

Os autores críticos atribuem sentido distinto aos direitos humanos, ao destacar a pluralidade de normatividades sociais, o direito como prática, as relações estruturais do Estado e a economia capitalista. Os direitos humanos se afirmam no distanciamento dos dominados em relação às hierarquias e exclusões das normatividades dominantes. Isso supõe a organização, a constituição de redes e solidariedades, a elaboração de outros frames e estratégias. Mas implica necessariamente a irrupção do conflito na cena pública, em que a expressão do dissenso político é indissociável da sua autoconstituição como sujeitos políticos. A ação para a produção conflituosa de normatividades tem como correlata a estética da existência, que se coloca como distanciamento crítico em relação às formas de subjetivação e significa a criação de outras maneiras de condução de si mesmo e de relação com os outros, por meio de outras relações com a lei e a verdade.

Ao invés de pensar a “era dos direitos” como positividade, garantida pelos direitos humanos como norma jurídica (Bobbio, 1990), intuição moral comum (Henkin, 1990) ou comunidade política de democracias (Risse, Ropp & Sikkink, 1999), coloca-se o problema de uma reflexão histórico-crítica sobre o potencial, os limites e os perigos dos direitos. Pensamos que o caminho para realizar esta pesquisa será explorar em trabalhos futuros elementos do pensamento de Foucault e Rancière, a saber: a ontologia crítica de nós mesmos e a estética da existência, a racionalidade governamental neoliberal, a ambivalência e o uso estratégico dos direitos, as contracondutas, o dissenso e a construção de subjetividades políticas, a distância entre o nome jurídico e a ação (Foucault, 2004; Golder, 2015; Rancière, 2004).

 

CONCLUSÃO: DIREITOS HUMANOS SOB TENSÃO

O ponto central dos direitos humanos na atualidade talvez não esteja na celebração da criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, na repetição dos ideais que propôs ou na textualidade dos direitos enumerados nela e noutros documentos jurídicos internacionais. Talvez ele se evidencie na relação entre o movimento que a promoveu, o gesto que a instaurou e a falha que ela introduziu. Os promotores da Declaração rejeitaram o modo de subjetivação de cidadãos de Estados soberanos, de modo a promoverem sua condição de agentes na cena mundial. A enunciação da Declaração é um gesto que evidencia a contingência da ordem instaurada pelas grandes potências e virtuais reversibilidades nas relações de governo. Enunciada sob a forma “direitos humanos”, a Declaração põe em cena a distância entre o nome dos direitos e seus agentes efetivos. Ela introduz a “falha” entre poder e verdade, face à qual os saberes da ordem procuram conformar o direito por meio da produção da verdade, enquanto a ação política e o pensamento crítico recolocam os direitos na distância entre a objetividade da ordem e a potência das contracondutas.

Na atualidade, o discurso de discriminação e ódio se difunde e é apoiado publicamente pelo governo dos Estados Unidos e de outros países. Esvai-se qualquer perspectiva otimista a curto prazo e parecem inócuas as esperanças na garantia histórica de uma “era dos direitos humanos” positiva em vias de efetivação. Mas os direitos humanos estão também, ou sobretudo, na resistência e na rejeição públicas contra o avanço de um neoliberalismo de combate.

Enfim, o sentido da ordem do Artigo 28 da Declaração Universal dos Direitos Humanos poderia ser não tanto o reforço de Estados e organizações governamentais internacionais para a proteção e promoção de direitos, mas o espaço no qual todo ser humano, individual e coletivamente, emerge na cena pública e instala o dissenso, para afirmar sua distância em relação à ordem existente, em vista de outras formas de vida e possibilidades que permitam criar e exercer direitos, considerados como outras modalidades de relação com as normas de vida postas pelas relações de governo existentes.

 

ANDREI KOERNER é professor associado do Departamento de Ciência Política do IFCH/Unicamp, presidente do Cedec, pesquisador do INCT-Ineu e integrante do GPDH/IEA da USP.

>MARRIELLE MAIA é professora de Relações Internacionais no Ieri/UFU, coordenadora do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Direitos Humanos, associada ao Cedec e pesquisadora do INCT-Ineu.

 

1 Para balanços bibliográficos sobre o tema, ver: Simmons (1998), Hathaway (2002), Raustiala (2000), Garbin (2013).

2 São o ombudsman e comissões especiais instituídos segundo os princípios aprovados pela Assembleia Geral da ONU em 1993.

 

Bibliografia

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