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Uma interpretação programática do direito à educação

José Sérgio Fonseca de Carvalho

resumo

O direito à educação ocupa um lugar ímpar entre os direitos sociais. Diferentemente de alguns de seus congêneres, seu reconhecimento como um direito fundamental e sua aspiração à universalidade não parecem ser objetos de grandes controvérsias no que concerne à legitimidade de sua enunciação e os mecanismos jurídicos para sua garantia são bastante claros. Contudo, a despeito da universalização da oferta de vagas no ensino fundamental, há muito a caminhar em relação à sua efetivação. A hipótese que guia o presente artigo é a de que sua plena realização requer uma elucidação acerca do próprio bem jurídico assegurado: o direito à educação como um direito subjetivo público.

Palavras-chave: filosofia da educação; direito à educação; conceito de educação; Hannah Arendt.

 

abstract

The right to education occupies a unique place among social rights. Unlike some of its counterparts, its recognition as a fundamental right and its aspiration to universality apparently do not lead to great controversy regarding the legitimacy of its statement; and the legal mechanisms for their enforcement are quite clear. However, despite the universal offer of places in primary schooling, there is still a lot to be done as regards its accomplishment. The hypothesis guiding this article is that its fulfillment requires an elucidation about the legal good itself, the right to education as a public subjective right.

Keywords: philosophy of education; right to education; education concept; Hannah Arendt.

 

Artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita,
pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar
será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos,
bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento
da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser
humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão,
a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do
gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.

O direito à educação parece ocupar um lugar ímpar no rol dos chamados direitos sociais. Diferentemente de alguns de seus congêneres, como o direito à moradia ou à previdência social, seu reconhecimento como um direito humano fundamental e sua aspiração à universalidade não parecem ser objetos de grandes controvérsias no que concerne à legitimidade de sua enunciação ou à necessidade de sua observância. Mesmo em ordenamentos jurídicos refratários ao reconhecimento dos direitos sociais, como o norte-americano, o direito à educação costuma figurar como exceção, já que o acesso universal à escolarização básica tem sido objeto de medidas legais e políticas públicas que visam a assegurá-lo e universalizá-lo desde meados do século XX. Por essa razão, a maior parte da literatura a respeito do direito à educação tem se voltado predominantemente para os problemas de sua efetivação em um contexto específico, seja procurando elucidar a natureza das garantias jurídicas que preveem sua efetivação (Duarte, 2004), seja analisando as dificuldades concretas no que concerne à sua efetividade e universalização (Arelaro, 2011).

As reflexões que aqui pretendo propor fogem, contudo, a essa tendência predominante a fim de focalizar um problema logicamente anterior; um problema que se coloca, ao mesmo tempo, para além e para aquém das discussões jurídicas, das investigações empíricas e das proposições políticas inspiradas pela enunciação e pelo reconhecimento do direito à educação. Trata-se de interrogar aquilo que permanece obscuro – ou ao menos tácito – nas investigações acerca de seus meios de efetivação. O que aqui se pretende levar a cabo é, pois, uma interrogação acerca da própria natureza desse bem jurídico – o direito à educação – cujos meios de viabilização e efetividade têm sido objeto de inúmeras investigações, análises e proposições de políticas públicas. A pergunta que nos move – ao que alguém tem direito quando reconhecemos seu direito à educação? – pode parecer, à primeira vista, ociosa e sem propósito. Afinal, os mecanismos previstos para sua efetivação parecem ser bastante claros no que concerne ao objeto desse direito e à obrigação que ele implica: o acesso e a permanência no ensino fundamental, considerado no ordenamento jurídico brasileiro um direito público subjetivo, cuja ausência ou irregularidade de oferta importa a responsabilização das autoridades competentes.

Seria, de fato, uma irresponsabilidade não reconhecer que, nas atuais condições históricas, que erigiram a forma escolar (Lahire, 2008) como o mecanismo por excelência da formação educacional, o direito à educação não fosse vinculado à garantia de acesso e permanência em instituições escolares. Não obstante, é igualmente forçoso reconhecer que, embora necessárias, as garantias de matrícula e permanência em instituições escolares parecem ser insuficientes para a plena efetivação desse direito. Nesse sentido, o pertencimento a uma instituição escolar se configura como um meio de efetivar um direito – a educação – cujo significado transcende a mera relação formal e, por essa razão, requer um esforço elucidativo acerca de seu campo semântico. O que é, pois, necessário para que a garantia da matrícula se efetive como direito à educação? Ora, é evidente que a mera proposição da questão, longe de ser ociosa, nos compele a enfrentar uma polêmica prática e conceitual de primeira grandeza, pois tratamos aqui de um campo no qual as disputas teóricas são inseparáveis de pressupostos de natureza ética, política e social e, por essa razão, não admitem uma resposta única. Por outro lado, na educação – como em outras práticas sociais – os significados que os agentes atribuem às atividades que realizam são indissociáveis de suas escolhas, seus procedimentos e objetivos. Trata-se de uma peculiaridade de certas atividades humanas e o reconhecimento de sua especificidade em relação a outros tipos de atividade, embora não deva criar hierarquias de qualquer sorte, pode ser de suma importância. Um breve contraste entre dois tipos distintos de atividades humanas pode ilustrar essa postulada vinculação entre o significado atribuído a uma prática social, suas formas de realização e os efeitos por ela almejados.

Os resultados da atividade de diferentes operários da indústria automobilística, por exemplo, pouco ou nada espelham ou nos informam acerca de suas diferentes concepções acerca do que é um automóvel ou de seu significado na sociedade em que se inserem. Desde que procedam conforme o estabelecido, o produto de seu trabalho se torna indiferenciado em função do padrão imposto pela automatização. Trata-se, pois, de uma atividade cujos procedimentos e resultados esperados independem – em um sentido bastante amplo – das concepções de seus agentes sobre o significado de sua atividade produtiva. Mas o mesmo não pode ser dito de um artista plástico. A concepção que ele nutre acerca do significado da arte – mesmo que tácita e não enunciada – se faz presente na idealização e na realização de cada uma de suas obras. Atribuir à criação artística um vínculo com o belo e o sublime gera produções artísticas que diferem substancialmente daquelas que a vinculam com o louvor a Deus, com a produção de uma consciência política ou com o despertar de um incômodo existencial. Por isso, embora cada uma dessas concepções possa engendrar um número infinito de obras, estas jamais se dissociarão do significado público e social que os artistas atribuem a seu lugar social e aos objetos de arte que produzem. Por essa razão, a contemplação, análise e comparação de obras como Os girassóis, de Van Gogh, e A fonte, de Duchamp, não nos revelam somente uma diferença entre os estilos pessoais de cada um desses artistas. Elas desvelam a existência de concepções alternativas acerca dos critérios pelos quais atribuímos a um objeto o qualificativo de “arte”, bem como do significado público da produção artística. Essas concepções podem diferir tanto entre si que, em face da exposição de uma obra como A fonte – um urinol de porcelana branco – em um museu, não é raro que uma parcela do público se pergunte se aquilo pode ser, de fato, concebido e tratado como um objeto de arte. E a resposta, claro, depende de uma concepção mais ou menos compartilhada do que pode ser considerado um objeto de arte e a partir de quais critérios.

Embora de forma menos radical, o mesmo se passa com a noção de “educação”. As expectativas, por exemplo, no que diz respeito ao que se considera como um resultado desejável de seu processo – uma pessoa educada – variam enormemente, embora sempre se manifestem sob a égide de uma expressão que aspira conferir unidade à diversidade: a luta por uma “educação de qualidade”. Basta, contudo, se perguntar como identificar a presença da “qualidade” no processo ou nos resultados da atividade educativa para que o aparente consenso comece a se esvair. Mesmo que ignoremos as variações históricas e as idiossincrasias pessoais e nos atenhamos a apenas alguns agentes e instituições contemporâneas, as divergências e visões alternativas saltam aos olhos. Teriam, por exemplo, a Fiesp e a CUT, o Estado e a família, os professores e os responsáveis por políticas públicas as mesmas concepções quanto aos procedimentos e resultados capazes de mensurar a qualidade dos processos educativos ou os resultados que eles deveriam produzir?

Ora, se enquanto para alguns desses agentes ou segmentos sociais a educação de qualidade deveria resultar na aquisição de diferentes informações e competências que capacitarão os alunos a se tornarem trabalhadores diligentes, para outros ela deveria resultar em cidadãos críticos da ordem social vigente; enquanto há os que esperam que ela resulte na promoção de empreendedores, há os que pretendem formar pessoas letradas ou consumidores conscientes. Ora, é evidente que, embora algumas dessas expectativas sejam compatíveis entre si, outras são alternativas ou conflitantes, pois a prioridade dada a um aspecto pode dificultar ou inviabilizar outro. Uma escola que tenha como objetivo maior – e, portanto, como critério máximo de qualidade – a aprovação no vestibular pode buscar a criação de classes homogêneas e alunos competitivos, o que dificulta a oportunidade de convivência com a diferença e reduz a possibilidade de se cultivar o espírito de solidariedade. Assim, as “competências” que definiriam a “qualidade” em uma proposta educacional significariam um fracasso – ou ausência de qualidade – em outra (Carvalho, 2004).

Por outro lado, para certas correntes de pensamento, a própria ideia de que uma escola de “qualidade” deva ater-se a desenvolver “competências” ou “capacidades” pode comprometer o ideal educativo, já que os termos “competência” e “capacidade” não revelam, em seu uso comum, um necessário compromisso ético para além da eficácia. Platão, por exemplo, argumenta nesse sentido em seu diálogo Górgias (Platão, 1997): um orador “competente” pode usar sua capacidade tanto para persuadir uma comunidade a aceitar uma “lei justa” como uma “lei injusta”. A competência se mede, portanto, pela eficácia dos resultados. Mas o mesmo não vale para o cultivo de um princípio ético. Pode-se dizer que alguém é um “orador competente”, mas usa sua competência para o “mal”, embora não tenha sentido afirmar que alguém é “justo” para o mal, pois seria injusto. Assim, a ação educativa de “qualidade” é, nessa perspectiva, essencialmente de natureza política e ética, e sua plena efetivação não resulta apenas do desenvolvimento de “competências” ou “capacidades”, mas do lento cultivo de um modo de vida ao qual se atribui valor absoluto e não relativo.

Ainda que bastante sumária, essa breve análise ilustra o tipo de dificuldade e a variedade de perspectivas que se apresentam quando o foco de nossas reflexões se volta para um campo marcado por disputas teóricas e conceituais, como é a educação, cujo próprio conceito enseja visões não só distintas, mas muitas vezes alternativas. Não se trata, pois, de diferenças oriundas de uma variedade de aspectos complementares de mesmo núcleo essencial, mas de opções que engendram disputas e controvérsias teóricas e práticas. Em sua obra A linguagem da educação, Scheffler (1968) recorre à expressão “definições programáticas” para caracterizar essa modalidade de produção teórica marcada pela produção de um discurso cujo conteúdo apresenta um forte teor persuasivo. Ao se recorrer a uma definição programática – ou a uma conceituação persuasiva – o que se almeja, segundo o autor, não é a mera elucidação do uso corrente de um termo ou conceito, a exemplo de quando explicamos a alguém o sentido ou o uso de um conceito como “vírus”. O que se busca é, antes, propor uma acepção que, mesmo não violentando abertamente o uso corrente do termo em questão, sugira um significado fundamental impregnado de valores, em geral comprometidos com a transformação ou com a justificação de práticas sociais, daí seu caráter programático ou persuasivo. Assim, qualquer interpretação do significado da “educação” como um direito implicará um esforço persuasivo no sentido de se estabelecer um conceito que, ao elucidar o significado da prática educativa, seja capaz de veicular princípios norteadores que devem guiar a proposição de ideais formativos, procedimentos pedagógicos e políticas públicas supostamente coerentes com os valores veiculados.

 

DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO À EDUCAÇÃO: A NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO PROGRAMÁTICA

Ao comentar a escolha, na Constituição Federal de 1988, dessa peculiar figura do discurso jurídico – o direito público subjetivo – Duarte (2004) ressalta que “o grande problema, hoje, [já] não é mais a fundamentação e o reconhecimento da exigibilidade individual do direito à educação, mas sim a interpretação do atual sentido de uma figura jurídica, que, embora tenha surgido para proteger valores marcadamente individualistas […] está inserida num novo contexto”. De fato, em que pesem os eventuais problemas de efetivação de certos casos particulares, o reconhecimento da garantia individual de oferta de uma vaga a toda e qualquer criança em idade escolar não parece ser objeto de controvérsias jurídicas nem de questionamentos que coloquem em causa sua legitimidade. Não obstante, poucos dentre nós ousariam afirmar que os jovens e crianças de nossa sociedade, aos quais têm sido garantidas as matrículas em instituições de ensino fundamental, fruem satisfatoriamente do direito que lhes foi reconhecido como fundamental e legítimo. E se, como argumenta Duarte, faz-se necessária uma interpretação jurídica do caráter público e subjetivo do direito à educação a fim de dele derivar políticas públicas que visem a sua plena efetivação, é igualmente capital que a noção da educação como um direito subjetivo público tenha um claro sentido programático para o exercício cotidiano dos profissionais da educação.

Às razões expostas anteriormente para a atribuição de um sentido ao seu exercício profissional, acrescentaria ainda uma convicção derivada de uma longa experiência no campo: se os profissionais da educação não vislumbram o sentido programático de uma política pública, eles se desoneram da luta pelo seu êxito. Assim ocorreu, por exemplo, por ocasião da implantação da “progressão continuada”1 nas escolas públicas paulistas. A ausência de debates acerca de seu potencial significado público acabou por transformá-la em uma medida burocrática despojada de qualquer significado educacional. Já à época de sua implantação, ela acabou por ser renomeada – e ressignificada – por esses mesmos profissionais como “aprovação automática” e concebida como uma renúncia oficial ao ensino e um descaso em relação à aprendizagem. Por outro lado, é notório que a firme crença positiva dos educadores na excelência de uma perspectiva educacional ou mesmo de uma inovação pedagógica costuma ser acompanhada de um êxito não desprezível. Êxito frequentemente mais vinculado ao sentido programático compartilhado que adquire junto aos educadores do que a seus supostos méritos intrínsecos. Daí porque a generalização de uma determinada iniciativa, eventualmente exitosa em um contexto em que goza de ampla adesão em relação aos princípios que enuncia, quase nunca produz resultados promissores na ausência dessa mesma adesão quanto ao seu sentido programático.

É preciso, contudo, distinguir a atribuição de um sentido programático a uma noção de educação do mero consenso em relação às alegadas finalidades do processo educativo. O estabelecimento de finalidades – explicitado como resposta à pergunta: a que serve? – expressa uma relação instrumental que estabelecemos com uma prática ou objeto. Fabricamos ou compramos uma mesa, por exemplo, não em função de qualquer sentido – ou valor intrínseco – que possamos atribuir ao seu processo de produção ou ao objeto final dele decorrente, mas em função de uma finalidade prática que lhe é exterior. Noutras palavras, fabricamos ou compramos uma mesa por ela ser um meio conveniente ou necessário para um fim que lhe é exterior: ter um lugar para comer, apoiar um computador, etc. Por outro lado, esse fim para o qual ela é um meio se transformará, também ele, em um novo meio para outro fim. Assim, fabricamos a mesa com a finalidade de apoiar um computador, que, por sua vez, transforma-se em um meio cujo fim é escrever um artigo ou obter informações, o que, por sua vez, torna-se um novo meio para outro fim. Cria-se, pois, uma cadeia infinita de meios que se transformam em novos fins, que são, contudo, carentes de qualquer significado, já que destinados a se transformarem novamente em meros meios. A finalidade indica, pois, uma relação instrumental que estabelecemos com um objeto ou uma prática social.

Trata-se, é evidente, de um aspecto crucial da experiência humana, que não se limita ao metabolismo imediato com a matéria que o circunda. Foi a importância dessa dimensão da existência humana – a capacidade de fabricação de bens e instrumentos como meios para atingir um fim – que levou tantos pensadores a caracterizar o ser humano como Homo faber. Ocorre, contudo, que a fabricação é apenas uma das dimensões da experiência e da condição humana. O transporte de sua lógica finalista e instrumental para outros âmbitos da existência social pode se tornar espúrio ou mesmo impedir a compreensão da especificidade de certas experiências ou práticas sociais. Que sentido haveria, por exemplo, em se buscar a(s) finalidade(s) de uma relação de amizade? A pergunta “para que serve um amigo?” não destruiria o próprio significado que atribuímos a esse tipo de relação? E embora um amigo possa nos ser útil em um momento de dor, em um apuro financeiro, etc., dificilmente poderíamos fundar algo digno de ser classificado como “amizade” cultivando uma relação instrumental na qual o outro é concebido como um meio para fins preestabelecidos. E, não obstante, é evidente que podemos atribuir um sentido pessoal, existencial ou mesmo político à amizade. E o mesmo vale para diversas outras experiências (como a paternidade) ou práticas sociais (como a poesia) às quais podemos atribuir sentidos que ultrapassam qualquer valor instrumental que elas ocasionalmente possam ter.

Por outro lado, enquanto na perspectiva instrumental os meios são julgados primordialmente em função de sua adequação aos fins aos quais se subordinam, quando buscamos o sentido de uma experiência humana essa distinção frequentemente torna-se inoperante. Isso porque o sentido de uma experiência não se desencarna da forma escolhida para sua realização. O recurso à censura, por exemplo, torna-se uma arma paradoxal na luta pela liberdade de imprensa. O mesmo se passa no âmbito da formação educacional: as formas de atuação de um educador devem necessariamente ser coerentes com os objetivos educacionais para os quais se dirige sua ação. Não se ensina o valor mediador da palavra recorrendo à violência emudecedora, nem se transmite o significado histórico da investigação filosófica sem um contínuo esforço crítico e reflexivo. Tampouco se pode fomentar uma cultura literária quando não se cultiva apreço pelos livros. Em todos esses casos particulares fica evidente a vinculação entre o objetivo almejado e os caminhos escolhidos, bem como sua inseparabilidade no campo da formação educacional.

Essas observações não implicam, contudo, uma recusa ao estabelecimento de qualquer finalidade extrínseca à educação. É evidente que uma sociedade pode estabelecer diversas finalidades para o processo educativo, como o desenvolvimento econômico e a ascensão social, a veiculação de normas comuns ou o desenvolvimento de certas capacidades e competências. Mas os limites de qualquer concepção meramente instrumental de educação tornam-se patentes em face da peculiaridade de seu propósito fundamental: a formação de sujeitos. Ora, a própria noção de “formação” (Bildung) extrapola qualquer tentativa de submissão do educando a metas preestabelecidas. Formar alguém implica a noção da constituição de uma pessoa cujos contornos futuros sempre serão da ordem do imprevisível (como poderemos, por exemplo, controlar o impacto formativo de uma obra literária ou cinematográfica em alguém?). Daí a importância de adicionarmos à questão “para que educar?” uma interrogação que ultrapasse o âmbito de suas finalidades extrínsecas em favor de seu sentido intrínseco. Não se trata, neste caso, de se interrogar “para que educar?” (vislumbrando, assim, resultados exteriores ao próprio processo de formação de um sujeito), mas antes de propor a questão em novos termos: em nome de quê reiteramos, a cada nova geração, esse processo incessante de transmissão de experiências simbólicas às quais atribuímos não apenas um valor instrumental, mas um sentido existencial? Por que sua importância ultrapassa os interesses do indivíduo a quem se dirige e se torna uma questão pública ou um bem comum, como o definia Aristóteles (1987)? Noutras palavras, por que o direito à educação não se limita a uma prestação individual, mas é considerado também um direito público?

Embora as possíveis respostas a essas questões sejam sempre diversas e muitas vezes conflitantes, gostaríamos de esboçar uma interpretação que pudesse, a um só tempo, tornar patente um possível sentido programático para o processo educacional que respeitasse tanto seu vínculo com a constituição de um sujeito singular como seu vínculo com o mundo público, aqui concebido como um espaço e um tempo comuns, que nos vinculam não só com aqueles com quem compartilhamos o presente, mas com os que nos precederam e os que nos sucederão nesse mundo comum (Arendt, 2010). Para isso recorreremos sobretudo às reflexões de Hannah Arendt, cuja obra tem inspirado uma série de investigações e reflexões acerca dos temas que aqui nos interessam: educação, domínio público e direito.

 

ACOLHER E INICIAR OS NOVOS EM UM MUNDO COMUM

Em seu texto sobre o impacto da crise do mundo moderno na educação, Arendt (2006) ressalta o caráter duplo do nascer de cada ser humano, que é sempre e simultaneamente o aparecer de um ser novo na vida e de um novo ser no mundo. Em sua dimensão biofísica, o nascimento vincula-se ao esforço de renovação da espécie, na medida em que reproduz suas formas em um novo indivíduo que vem à vida. Mas o nascer de um ser humano é também natalidade: o aparecer de um novo ser que vem ao mundo, de um alguém que se revelará como um ser distinto de todos aqueles que o precederam e que o sucederão neste mundo dos homens. Assim, ao fato físico bruto do nascimento de um novo indivíduo da espécie, vem se somar a natalidade como revelação de um alguém; essa capacidade especificamente humana de desvelar não só aquilo que ele é (traços de identidade que compartilha com inúmeros outros: ser “brasileiro”, “negro”, “alto”, “santista”…), mas quem ele é:

“No homem, a alteridade, que ele partilha com tudo o que existe, e a distinção, que ele partilha com tudo o que vive, torna-se unicidade, e a pluralidade humana é a paradoxal pluralidade de seres únicos. […] É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano, e essa inserção é como um segundo nascimento no qual confirmamos e assumimos o fato simples do nosso aparecimento físico original” (Arendt, 2010, pp. 220-1 – grifos nossos).

Ora, a natalidade – o fato de que ao agir podemos iniciar algo novo e, assim, tornarmo-nos um novo alguém – só é possível por habitarmos um mundo, por sermos nele acolhidos por aqueles que dele já fazem parte. E, embora nunca deixemos de ser em alguma medida “estrangeiros” nesse mundo, ele é nossa herança comum; é um legado que recebemos do passado e transmitiremos ao futuro (Carvalho, 2017). Em ambos os casos, sem um testamento que nos oriente definitivamente acerca de seu sentido e de seu porvir. Mas a posse dessa herança – simbólica e material – de que se constitui o mundo exige um processo de iniciação, de familiarização e de progressiva assunção de responsabilidade: a educação.

Assim compreendida, a formação educacional implica acolher e iniciar os que são novos num mundo, tornando-os aptos a dominar, apreciar e transformar as tradições culturais que formam sua herança simbólica comum e pública. Por se tratar de uma herança cuja significação interpessoal e caráter simbólico são compartilhados, a única forma de termos acesso a ela e dela nos apropriarmos é a aprendizagem. Se, para nos integrarmos ao ciclo vital basta um treinamento em capacidades e competências necessárias à sobrevivência e à reprodução, para tomar parte no mundo é necessária uma formação educacional:

“Todo homem nasce herdeiro de um legado de realizações humanas; uma herança de sentimentos, emoções, imagens, visões, pensamentos, crenças, ideias, compreensões, empresas intelectuais e práticas, linguagens, relações, organizações, cânones e normas de conduta, procedimentos, rituais, habilidades, obras de arte, livros, composições musicais, ferramentas, artefatos e utensílios, em resumo, o que Dilthey chamou geistige Welt. […] É um mundo de fatos, não de ‘coisas’; de ‘expressões’ que têm significado e exigem compreensão, porque são ‘expressões’ de mentes humanas. […] E é um mundo não porque tenha em si mesmo qualquer significado (não tem nenhum), mas porque é um todo de significações interconectadas que se estabelecem e interpretam-se mutuamente. E este mundo só pode ser penetrado, possuído e desfrutado por meio de um processo de aprendizagem. Pode-se comprar um quadro, mas não a compreensão que dele se possa ter. E chamo a este mundo nossa herança comum porque penetrá-lo constitui a única forma de tornar-se um ser humano, e viver nele é ser um ser humano” (Oakeshott, 1968, p. 243).

O acolhimento dos novos num mundo preexistente pressupõe, então, um duplo e paradoxal compromisso por parte do educador. Por um lado, é preciso zelar pela durabilidade desse mundo comum de heranças simbólicas no qual ele os acolhe e inicia. Por outro, cabe-lhe cuidar para que os que são novos no mundo possam vir a se inteirar dessa herança pública, apreciá-la, fruí-la e renová-la. É essa iniciação numa herança comum – de saberes, práticas, conhecimentos, costumes, princípios, enfim, de obras às quais um povo atribui grandeza, valor, mérito ou significado público – que constitui o objeto precípuo da ação educativa. Por isso, é só ao fazer dessa herança comum sua própria herança que cada novo alguém se constitui simultaneamente como um ser pertencente a um mundo comum e um sujeito que, ao nele se hospedar, é capaz de, a partir de seus atos e palavras, lhe imprimir uma nova configuração. Como bem resume Arendt (1978, p. 247):

“A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fossem a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é também onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as, em vez disso, com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum”.

Assim concebido, o direito à educação implica o direito a participar de uma herança de realizações materiais e simbólicas que empresta a cada existência humana individual uma dimensão histórica que se estende tanto em relação ao passado – da qual ela é herdeira – como ao futuro, ao qual ela transmite essa herança reconfigurada e ressignificada pelas suas experiências e as da geração à qual pertence. É por meio da familiarização com esse complexo legado de experiências simbólicas comuns, da fruição dessa herança e do domínio de suas linguagens que cada novo habitante do mundo humano se constrói como alguém singular e único. E, uma vez iniciado nesse mundo comum, assume a responsabilidade pela sua renovação e durabilidade.

UMA BREVE PALAVRA FINAL

A proposição de um sentido programático para o direito à educação não nos exime da difícil tarefa de buscar os meios de efetivá-lo, nem nos indica caminhos inequívocos para fazê-lo. Na melhor das hipóteses, esse esforço interpretativo propõe alguns princípios potencialmente capazes de orientar ações. Mas princípios não carregam em si as regras de sua aplicação. Eles podem inspirar práticas, mas jamais as ditar de forma compulsória e inequívoca, pois há sempre um número infinito de formas por meio das quais um mesmo princípio pode vir a se atualizar (tal como uma mesma concepção de arte pode gerar um número infinito de obras). Talvez seu principal papel seja, antes, o de fornecer uma medida a partir da qual podemos estimar o quão longe ou perto estamos de um ideal cuja plenitude jamais alcançaremos.

É conhecida a afirmação de Freud segundo a qual a educação – ao lado da política e da psicanálise – figura como uma das profissões impossíveis. Impossível não porque não possa ser objeto de nossas ações e práticas (ela evidentemente o é!), mas porque seus resultados sempre serão incertos e insatisfatórios, dada a própria mutabilidade das condições em que a exercemos e os limites pessoais e institucionais daqueles que o fazem. Importa, contudo, que tenhamos a coragem de propor, debater e escolher sentidos programáticos e princípios de ação que, a um só tempo, facultem aos educadores a identificação com ideais e valores públicos que os transcendem e guardem a necessária abertura para que cada um, inspirado por eles, possa oferecer uma resposta educativa singular aos desafios concretos que enfrenta.

Em meio às incertezas no que concerne ao que pode ser caracterizado como um legado comum em uma sociedade fragmentada como a que vivemos, os princípios fundantes da noção de direitos humanos – como a irredutível dignidade da pessoa, a igualdade de direitos – podem se apresentar como uma bússola capaz de orientar os vínculos que a educação cria entre as gerações que se sucedem, na tensa dialética entre a durabilidade e a renovação de um mundo que recebemos dos antepassados e que legaremos às gerações que nele nos sucederão. Ao mesmo tempo, conceber a educação como um direito – e não como um investimento, uma conformação às demandas econômicas e sociais do presente – nos interroga acerca da natureza dessa herança que pretendemos legar aos mais novos. Trata-se, é evidente, de uma decisão política que exige a concordância de muitos e não a reflexão isolada que preside a elaboração de um texto teórico. Se alguma valia há para este último, ela não será a de dispensar cada educador da reflexão e da decisão acerca dos sentidos que atribui a seu ofício, mas antes a de convidá-lo a um diálogo. Um diálogo que se estabelece entre os próximos e os distantes; os vivos e os mortos; os céticos e os dotados de uma inabalável fé em suas ações. Um diálogo que, em muitos aspectos, se assemelha ao sentido de seu trabalho cotidiano: tornar presente aqui e agora a pluralidade de vozes humanas que conformam um mundo comum marcado pela diversidade.

O direito à educação configura-se, nessa perspectiva, como o direito a falar e a ser ouvido interagindo com interlocutores que podem habitar outros tempos e espaços; interlocutores que nos legaram suas formas de compreender e agir no mundo através de suas obras, feitos e palavras. Educar implica acolher as novas gerações em um mundo que, como nos lembra Arendt, “não é humano simplesmente por ter sido feito por seres humanos, e nem se torna humano porque a voz humana nele ressoa”, mas um mundo que se torna humano porque pode ser um objeto comum de discursos entre gerações, afinal, “humanizamos o que ocorre no mundo e em nós mesmos apenas ao falar, e no curso da fala aprendemos a ser humanos” (Arendt, 1987, pp. 24-5).

 

JOSÉ SÉRGIO FONSECA DE CARVALHO é professor titular de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo e coordenador do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do IEA-USP.

 

1 Trata-se de uma política pública de regularização do fluxo e diminuição da repetência dos alunos a partir do estabelecimento de ciclos que impede a reprovação ao final de cada série.

 

Bibliografia

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