resumo
Este artigo apresenta um quadro comparativo entre as recomendações do relatório de Nigel Rodley sobre a tortura em sua visita ao Brasil no ano 2000 e, mais de 15 anos depois, o que foi relatado pelos membros do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em visita a locais de detenção pelo país. Tal comparação deixa evidente que as práticas de tortura no Brasil não apenas não cederam, como, de diversas maneiras, se aprofundaram e se enraizaram como prática corriqueira cometida pelas instituições e agentes do Estado brasileiro.
Palavras-chave: tortura; direitos humanos; violência de Estado; corpo.
abstract
This article presents a comparative table contrasting the recommendations from the report on torture by the Special Rapporteur Nigel Rodley during his visit to Brazil in 2000 and what was reported — over 15 years later — by members of the National Mechanism for Preventing and Combating Torture upon their visit to places of detention throughout the country. Such comparison makes it clear torture in Brazil not only has not subsided, but it has also deepened and taken roots in everyday practices perpetrated by institutions and agents of the Brazilian state.
Keywords: torture; human rights; state violence; body.
A tortura é uma totalidade. É a presença assumida, deliberada, explícita da imposição da dor, da morte, do fim de tudo numa cena em que uns podem tudo e alguém pode nada. O fato puro e simples de a tortura existir, ser permitida, ser tolerada – ou não poder deixar de existir – denuncia todos os dias o fracasso da ideia de humanidade do homem. Evidencia que o homem é essa imponderável incerteza que cria e destrói, que faz nascer e extermina, que mata para viver e vive para matar. O próprio homem ante a possibilidade concreta da tortura refaz, num átimo, o caminho que levanta todas as suspeitas sobre sua humanidade, ao mesmo tempo em que, radicalmente falando, obriga-nos a considerar se não seria esse traço de monstruosidade o que revelaria a intrínseca característica do que, ingenuamente ou não, chamamos de humanidade.
O Artigo 3o da Declaração Universal dos Direitos Humanos é, e tem de ser, inteiramente dependente de todos os outros. O desrespeito ao Artigo 5o o anula completamente. No conjunto, os artigos montam uma colcha da qual muitos farão um uso em retalhos, porém nela cada quadrante desfaz o outro ou permite que os demais se conectem, vigorem e existam e a inoperância de qualquer um deles coloca em risco todos os outros.
O dilema da Declaração hoje e sempre é reunir as condições para se tornar consensual, não se converter em pilhéria e não desmontar como promessa litúrgica que jamais se realiza e, a cada vez que é proclamada, se autoimpossibilita.
Neste artigo examinarei um único aspecto que, sozinho, é capaz de pôr abaixo todo o ideário dos direitos humanos, o que nos leva a ter de considerar se e como é possível preservar a Declaração Universal dos Direitos Humanos como um caminho ainda a ser seguido em seus próprios termos.
Discutirei aqui a autorização à intrusão do corpo alheio como prática presente e, em muitos casos, absoluta e hegemônica, que define uma maneira eliminacionista de terminar conflitos erradicando sujeitos que representam um dos polos antinômicos.
Ainda em pormenor discutirei a prática da tortura, empregando como exemplo o caso brasileiro. Utilizarei aqui algumas correspondências entre dois relatórios separados por cerca de 15 anos: o Relatório sobre a Tortura no Brasil, produzido pelo relator especial sobre a tortura da Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 2001, e o Relatório Anual do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) de 2015-2016. Procurarei me ater às recomendações cujas repercussões podem ser evidenciadas no relatório do MNPCT. Trata-se de uma demonstração breve, limitada pelas possibilidades e tamanho deste artigo para o presente dossiê, mas capaz de demonstrar a letargia dos governos e do Estado brasileiro em combater de forma explícita e duradoura uma das mais evidentes atrocidades conhecidas, criadas e cometidas pelo homem contra o homem: a tortura.
Essa aproximação servirá de esteio para revelar que, após uma década e meia da visita do relator sobre a tortura da ONU, nada de importante, substancial e inflexivo foi feito pelas autoridades brasileiras em relação ao combate e à prevenção à tortura no país, o que indica uma evidente e propositada negligência e, em muitos casos, o apoio, a conivência e a radicalização das práticas de tortura no Brasil.
Apresento a seguir algumas correspondências entre os dois relatórios. Elegi 12 das 30 recomendações do relatório da ONU sobre a tortura no Brasil, de 2001. Seguindo as recomendações, apresentarei os parágrafos do relatório 2015-2016 do MNPCT que, a meu ver, atualizam vários aspectos abordados levantados pelo relatório da ONU, 15 anos depois, indicando com clareza a situação em que se encontra a prática de tortura no país. Algumas recomendações ou parágrafos serão agrupados a fim de estabelecer um diálogo mais abrangente e menos fragmentado entre as recomendações e o relatório.
Recomendação 1
Em primeiro lugar, as mais altas lideranças políticas federais e estaduais precisam declarar inequivocamente que não tolerarão a tortura ou outras formas de maus-tratos por parte de funcionários públicos, principalmente as polícias militar e civil, pessoal penitenciário e pessoal de instituições destinadas a menores infratores. É preciso que os líderes políticos tomem medidas vigorosas para agregar credibilidade a tais declarações e deixar claro que a cultura da impunidade precisa acabar. Além de efetivar as recomendações que se apresentam a seguir, essas medidas deveriam incluir visitas sem aviso prévio por parte dos líderes políticos a delegacias de polícia, centros de detenção pré-julgamento e penitenciárias conhecidas pela prevalência desse tipo de tratamento. Em particular, deveriam ser pessoalmente responsabilizados os encarregados dos estabelecimentos de detenção quando forem perpetrados maus-tratos. Tal responsabilidade deveria incluir – porém sem limitação – a prática prevalecente em algumas localidades segundo a qual a ocorrência de maus-tratos durante o período de responsabilidade da autoridade encarregada afeta adversamente suas perspectivas de promoção e, com efeito, deveria implicar afastamento do cargo, sem que tal afastamento consista meramente em transferência para outra instituição.
Parágrafo 42
Cerca de um mês antes da visita, o MNPCT oficia as instituições do poder público e da sociedade civil local, indicando suas prerrogativas e o período de sua ida à unidade federativa, sem especificar quais os espaços de privação de liberdade a serem visitados. Preserva-se, desse modo, o caráter sigiloso das visitas aos locais de privação de liberdade. Em suma, os atores locais ficam cientes apenas do período da ida do Mecanismo Nacional ao Estado, mas não dos locais que serão visitados.
Recomendações 2, 3, 6 e 7
Recomendação 2
O abuso, por parte da polícia, do poder de prisão de qualquer suspeito sem ordem judicial em caso de flagrante delito deveria ser cessado imediatamente.
Recomendação 3
As pessoas legitimamente presas em flagrante delito não deveriam ser mantidas em delegacias de polícia por um período além das 24 horas necessárias para a obtenção de um mandado judicial de prisão provisória. A superlotação das cadeias de prisão provisória não pode servir de justificativa para se deixar os detentos nas mãos da polícia (onde, de qualquer modo, a condição de superlotação parece ser substancialmente mais grave do que até mesmo em algumas das unidades prisionais mais superlotadas).
Recomendação 6
Um registro de custódia separado deveria ser aberto para cada pessoa presa, indicando-se a hora e as razões da prisão, a identidade dos policiais que efetuaram a prisão, a hora e as razões de quaisquer transferências subsequentes, particularmente transferências para um tribunal ou para um Instituto Médico-Legal, bem como informação sobre quando a pessoa foi solta ou transferida para um estabelecimento de prisão provisória. O registro ou uma cópia do registro deveria acompanhar a pessoa detida se ela fosse transferida para outra delegacia de polícia ou para um estabelecimento de prisão provisória.
Recomendação 7
A ordem judicial de prisão provisória nunca deveria ser executada em uma delegacia de polícia.
Parágrafo 63
• Diversos presos relataram que já haviam recebido uma condenação ou, mais grave, já poderiam cumprir pena em regime semiaberto, mas eram mantidos em centros de detenção provisória, cadeias públicas ou centros de triagem;
• Presos provisórios eram mantidos privados de liberdade junto com presos já sentenciados, dividindo, inclusive, as mesmas celas;
• Muitos presos mencionaram que não tinham assistido às audiências com o juiz, mesmo estando privados de liberdade há vários meses. A maioria desconhecia o andamento de seus processos;
• Vários presos provisórios informaram estar privados de liberdade há diversos meses e, em alguns casos, há anos, sem ter tido contato com sua defesa ou sem ter participado de qualquer audiência com o juiz;
• Muitas pessoas foram presas em flagrante por furto ou por crimes de menor potencial ofensivo, de modo que, dependendo do seu perfil e de acordo com normativas nacionais, poderiam responder a seus processos em liberdade.
Recomendação 4
Os familiares próximos das pessoas detidas deveriam ser imediatamente informados da detenção de seus parentes e poder ter acesso a eles. Deveriam ser adotadas medidas no sentido de assegurar que os visitantes a carceragens policiais, centros de prisão provisória e penitenciárias sejam sujeitos a vistorias de segurança que respeitem sua dignidade.
Parágrafo 102
Por conseguinte, com exceção do Presídio Central de Porto Alegre, das unidades visitadas no Amazonas e do Presídio Militar Romão Gomes, em São Paulo, familiares e amigos de presos precisavam se despir diante de agentes penitenciários nos demais cárceres visitados. Geralmente, profissionais do sexo feminino revistavam mulheres, ao passo que profissionais do sexo masculino revistavam homens, em um ambiente reservado da unidade prisional. Além de tirarem suas roupas, os visitantes precisavam agachar-se diversas vezes, soprar dentro de garrafas plásticas, colocar espelhos diante de seus genitais, etc. Tais revistas costumavam ser mais rigorosas em mulheres, as quais compõem a grande maioria dos visitantes do sistema penitenciário, acentuando as clivagens de gênero que marcam os locais de privação de liberdade e, também, a sociedade. Portanto, a dimensão punitiva da pena abarca, para além dos presos, seus familiares e amigos, especialmente as mulheres.
Recomendação 10
As queixas de maus-tratos, quer feitas à polícia ou a outro serviço, à corregedoria do serviço policial ou a seu ouvidor, ou a um promotor, deveriam ser investigadas com celeridade e diligência. Em particular, importa que o resultado não dependa unicamente de provas referentes ao caso individual; deveriam ser igualmente investigados os padrões de maus-tratos. A menos que a denúncia seja manifestamente improcedente, as pessoas envolvidas deveriam ser suspensas de suas atribuições até que se estabeleça o resultado da investigação e de quaisquer processos judiciais ou disciplinares subsequentes. Nos casos em que ficar demonstrada uma denúncia específica ou um padrão de atos de tortura ou de maus-tratos semelhantes, o pessoal envolvido deveria ser peremptoriamente demitido, inclusive os encarregados da instituição. Essa medida envolverá uma purgação radical de alguns serviços. Um primeiro passo nesse sentido poderia ser a purgação de torturadores conhecidos, remanescentes do período do governo militar.
Parágrafos 57 e 58
Parágrafo 57
Em todos os estados visitados foram relatados casos de tortura policial durante a prisão em flagrante, sobretudo em São Paulo e no Amazonas. Tais práticas eram cometidas tanto por policiais militares durante o ato da detenção quanto por policiais civis nas delegacias. Assim, não foram raras as situações em que os membros do MNPCT se depararam com pessoas recém-detidas com diversas marcas de espancamento ou outros machucados pelo corpo, algumas com bandagens na cabeça e outras que mal conseguiam andar sem ajuda. Muitas sequer recebiam tratamento de saúde ou qualquer outro tipo de encaminhamento adequado.
Parágrafo 58
Nesse sentido, foram narradas ao MNPCT as seguintes práticas de tortura cometidas por policiais nos estados: espancamentos; queimaduras; choques elétricos nos genitais; afogamento; sufocamento com saco plástico; perfuração abaixo das unhas; “telefone” (bater nas duas orelhas simultaneamente); remoção de unhas; humilhações verbais; ameaças.
Recomendação 11
Todos os estados deveriam implementar programas de proteção a testemunhas nos moldes estabelecidos pelo programa Provita para testemunhas de incidentes de violência por parte de funcionários públicos; tais programas deveriam ser plenamente ampliados de modo a incluir pessoas que têm antecedentes criminais. Nos casos em que os atuais presos se encontram em risco, eles deveriam ser transferidos para outro centro de detenção, onde deveriam ser tomadas medidas especiais com vistas à sua segurança.
Parágrafos 73, 74, 93, 95, 96 e 97
Parágrafo 73
A maioria das unidades prisionais visitadas, sobretudo aquelas voltadas ao público masculino, estava marcada pela atuação de organizações criminosas – denominadas também como “facções”. No Complexo de Pedrinhas, no Maranhão, o critério central escolhido pelo estado para a separação dos presos era o pertencimento a determinado grupo criminoso. Do mesmo modo, as distintas galerias do Presídio Central estavam divididas conforme a facção que a pessoa informava fazer parte. Em São Paulo, boa parte dos presos pertencia a um grupo, enquanto os demais ficavam dispersos em celas separadas, conhecidas como “seguros”. De maneira semelhante, no Amazonas, os presos que não eram vinculados à facção hegemônica também ficavam alojados em uma área específica ou em “seguros”.
Parágrafo 74
Todos esses grupos criminosos criavam regras de conduta muito rigorosas e, caso não fossem respeitadas, evidenciou-se grande risco de represálias. No Amazonas, havia “celas-cativeiros”, locais onde ocorriam “sanções disciplinares” paralelas à legislação, incluindo-se punições por morte. No Maranhão, foram amplamente noticiados nos veículos de comunicação os casos de decapitação cometidos por presos de facções rivais.
Parágrafo 93
Em praticamente todas as unidades prisionais visitadas, o Mecanismo Nacional evidenciou a existência de espaços segredados, destinados à permanência de presos com características particulares. Esses locais, por vezes, eram apenas celas pequenas e, outras vezes, eram alas ou galerias. São ordinariamente conhecidos como “contenção” ou “seguro”. Embora para cada unidade federativa visitada haja uma definição para o preso no “seguro”, em geral, nas unidades masculinas, as pessoas nessa condição eram aquelas que, entre outras situações: cometeram crimes sexuais; pertenciam a facções rivais àquelas predominantes; não tinham qualquer envolvimento com facções criminosas, eram ex-membros de alguma facção ou que, por qualquer outro motivo, não tinham convívio com a massa carcerária. Nas unidades femininas, as presas ficavam no “seguro” normalmente por terem cometido algum crime contra pessoas de sua família; por terem agredido outras mulheres privadas de liberdade; ou por estarem em sofrimento psíquico, como se observou no Maranhão. Por tais características, caso ficassem em contato com a massa carcerária, as pessoas no “seguro” poderiam ser alvos de fortes represálias, inclusive de morte.
Parágrafo 95
Durante o primeiro ano de visitas do Mecanismo Nacional, foi possível observar que muitas garantias fundamentais dos presos no “seguro” eram sistematicamente desrespeitadas. Em primeiro lugar, essas pessoas privadas de liberdade estavam alocadas em espaços com péssimas condições infraestruturais. Isto é, locais insalubres, mal ventilados, com escassa iluminação, etc. Em algumas unidades, os presos no “seguro” ficavam em lugares completamente improvisados, como, por exemplo, entre duas grades anteriores à galeria de triagem, no Centro de Detenção Provisória de Manaus, no Amazonas.
Parágrafo 96
Em segundo lugar, as pessoas nos “seguros” tinham constantemente suas vidas ameaçadas pelos demais presos, geralmente pertencentes a algum grupo adversário. No Amazonas e em São Paulo, muitos presos no “seguro” disseram ter receio de morrer, pois, dependendo das circunstâncias, poderia ocorrer uma rebelião na unidade e, com isso, ficarem à mercê dos presos da facção rival. De fato, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas, 13 pessoas foram mortas em uma rebelião ocorrida em 2002. Assim, nota-se que o direito à vida das pessoas nesses locais encontra-se fortemente fragilizado.
Parágrafo 97
Em terceiro lugar, os presos no “seguro” costumavam não ter uma mesma rotina diária dos demais presos. Apenas de vez em quando tomavam banho de sol e, se o faziam, não permaneciam mais do que uma hora no pátio externo da unidade, ficando durante todo o tempo algemados. Raramente, realizavam atividades de trabalho e estudo. Em suma, ainda que todas as pessoas privadas de liberdade recebam uma punição adicional do Estado, pelas péssimas condições das unidades prisionais, aquelas nos “seguros”, por sua condição peculiar no sistema prisional, são ainda mais prejudicadas. Os presos em tais locais estariam sujeitos a precárias condições de privação de liberdade; raramente realizavam atividades de estudo, trabalho e lazer, ficando confinados durante todo o tempo. Mais grave ainda, tinham suas vidas fortemente ameaçadas. As condições de insalubridade, alto risco e segregação podem equiparar-se à prática de tortura dentro da realidade observada nas unidades visitadas.
Recomendação 13
As investigações de crimes cometidos por policiais não deveriam estar sob a autoridade da própria polícia. Em princípio, um órgão independente, dotado de seus próprios recursos de investigação e de um mínimo de pessoal – o Ministério Público –, deveria ter autoridade de controlar e dirigir a investigação, bem como acesso irrestrito às delegacias de polícia.
Parágrafos 105, 108 e 109
Parágrafo 105
Dentre as visitas realizadas no primeiro ano de atuação do MNPCT, quatro unidades prisionais do Amazonas eram administradas em cogestão com empresas privadas. No Maranhão, embora as empresas não fossem responsáveis pela gestão das unidades, a maior parte dos agentes de segurança era contratada por empresas privadas. Da mesma forma, em Santa Catarina, uma das unidades também apresentava agentes de segurança vinculados a empresa privada.
Parágrafo 108
Conforme já mencionado, havia uma alta rotatividade de funcionários pelas precárias condições de trabalho. Por isso, ao ser praticada uma violação, o agente responsável era demitido e outro logo assumia o seu lugar, o que dificultava a identificação dos agressores. Além disso, especialmente no Maranhão, foram observadas diversas violações praticadas por agentes de segurança contratados por empresas privadas, sem que houvesse qualquer tipo de controle sobre sua atuação.
Parágrafo 109
Uma vez que os agentes contratados pelas empresas gestoras exerciam, parcialmente, poder de disciplina e controle, haveria transferência do exercício de polícia a terceiros. O Estado estaria, pois, delegando parte de seu monopólio da força legítima para instituições privadas, o que contraria princípios básicos do Estado democrático de direito.
Recomendação 15
Se não por qualquer outra razão que não a de pôr fim à superlotação crônica dos centros de detenção (um problema que a construção de mais estabelecimentos de detenção provavelmente não poderá resolver), faz-se imperativo um programa de conscientização no âmbito do Judiciário a fim de garantir que essa profissão, que se encontra no coração do Estado de direito e da garantia dos direitos humanos, torne-se tão sensível à necessidade de proteger os direitos dos suspeitos e, com efeito, de presos condenados, quanto evidentemente o é a respeito da necessidade de reprimir a criminalidade. Em particular, o Judiciário deveria assumir alguma responsabilidade pelas condições e pelo tratamento a que ficam sujeitas as pessoas que tal Poder ordenou permanecerem sob detenção pré-julgamento ou sentenciadas ao cárcere. Em se tratando de crimes ordinários, o Judiciário, nos casos em que existirem acusações alternativas, também deveria ser relutante em: proceder a acusações que impeçam a concessão de fiança, excluir a possibilidade de sentenças alternativas, exigir custódia sob regime fechado, bem como em limitar a progressão de sentenças.
Parágrafos 70, 72, 75, 76, 81, 85
Parágrafo 70
O funcionamento das unidades prisionais visitadas era marcado por uma ambiguidade em relação à ingerência estatal: por um lado, o Estado era omisso e não exercia sua função de acompanhamento da execução penal, de monopólio da força legítima e de garantia dos direitos das pessoas privadas de liberdade; por outro, buscava estar presente através da ação de agentes de segurança quase sempre marcada pela violência e da entrada de forças especiais.
Parágrafo 72
Nesse sentido, a ação do Estado pareceu limitada a algumas atividades e rotinas institucionais, não passando, em determinadas circunstâncias, das grades das galerias. Portanto, o Estado se omitia de parte de sua responsabilidade de supervisão diária da execução penal sobre a população prisional, deixando isso a cargo dos próprios presos.
Parágrafo 75
Dentro desse contexto, pelo fato de o Estado ser omisso em suas funções, os presos não tinham segurança jurídica e, mais grave ainda, seu direito à vida restava fortemente fragilizado. Assim, os presos podiam ser extorquidos, ameaçados ou sofrer qualquer tipo de violência sem que o Estado ficasse a par dos acontecimentos. É importante ressaltar, nesse sentido, que, por ter atribuição legal de custodiar os presos, qualquer ocorrência em um cárcere é de responsabilidade direta dos órgãos do Estado.
Parágrafo 76
Essa baixa ingerência do Estado nos cárceres estaduais se agravava pelas condições de trabalho dos agentes de segurança. No Maranhão, no Amazonas e em Santa Catarina os profissionais na função de agentes penitenciários eram contratados por empresas privadas. Dessa forma, havia grande rotatividade de tais profissionais, assim como a presença de baixa qualificação técnica. Essa alta rotatividade e as precárias condições de trabalho favoreciam a prática de tortura e maus-tratos contra as pessoas presas. Isso porque, ao ser realizada uma violação, outro agente assumiria o lugar daquele que a praticou. Com isso, dificultava-se a identificação de agentes agressores e a apuração adequada dos fatos.
Parágrafo 81
Na Penitenciária Feminina de Sant’ana, em São Paulo, o Grupo de Intervenção Rápida (GIR) realizou uma grande operação em agosto de 2015, pouco antes da visita do MNPCT. Os agentes desse grupo especial desferiram diversos socos, pontapés, bem como realizaram várias ofensas verbais e ameaças de morte contra as mulheres. Foram lançadas bombas de gás lacrimogênio nas galerias e algumas pessoas foram arrastadas pelos cabelos. Ainda, as mulheres foram obrigadas a levantar suas blusas para expor os seios e, caso desobedecessem, eram espancadas. No dia da visita do MNPCT, foi possível observar que muitas ainda estavam com marcas das agressões físicas cometidas pelos agentes do GIR.
Parágrafo 85
Em suma, ao mesmo tempo em que apresentava baixa ingerência no cotidiano das unidades, abrindo margem para a ação de facções criminosas, o Estado periodicamente se inseria nos cárceres através da utilização abusiva da força pelos agentes de segurança e de forças especiais de segurança, gerando práticas de tortura e maus-tratos. Havia, pois, uma oscilação entre presença e ausência estatal nas unidades prisionais, sendo que ambas as situações possibilitavam a violação de direitos dos presos.
Recomendação 21
Um profissional médico qualificado (um médico escolhido, quando possível) deveria estar disponível para examinar cada pessoa, quando de sua chegada ou saída, em um lugar de detenção. Os profissionais médicos também deveriam dispor dos medicamentos necessários para atender às necessidades médicas dos detentos e, caso não possam atender a suas necessidades, deveriam ter autoridade para determinar que os detentos sejam transferidos para um hospital, independentemente da autoridade que efetuou a detenção. O acesso ao profissional médico não deveria depender do pessoal da autoridade que efetua a detenção. Tais profissionais que trabalham em instituições de privação de liberdade não deveriam estar sob autoridade da instituição, nem da autoridade política por ela responsável. Os serviços médico-forenses deveriam estar sob a autoridade judicial ou outra autoridade independente, e não sob a mesma autoridade governamental que a polícia; nem deveriam exercer monopólio sobre as provas forenses especializadas para fins judiciais.
Parágrafos 78 e 80
Parágrafo 78
Por outro lado, o Estado, apesar de ter baixa ingerência no dia a dia local, buscava exercer seu “controle” através da ação permanente de agentes de segurança que submetiam as pessoas privadas de liberdade a situações de extrema violência e ilegalidade. A atuação dos agentes de segurança nas unidades do Maranhão, por exemplo, era marcada pelo uso sistemático e rotineiro de spray de pimenta, de armamento com balas de borracha e bombas de gás, inclusive dentro das celas. Alguns agentes chegavam a portar, até mesmo, armas de fogo. Em outros locais, como São Paulo, os agentes frequentemente espancavam os presos e os agrediam verbalmente. Em Santa Catarina, por sua vez, as pessoas privadas de liberdade apontaram a realização da prática conhecida como “pau de arara”, em que o preso era mantido pendurado de ponta-cabeça, tendo braços e pernas amarrados. Nesses locais, as pessoas privadas de liberdade apresentavam sinais visíveis de tais práticas violadoras.
Parágrafo 80
Tais operações geralmente eram marcadas por graves violações de direitos, ocasionando práticas de tortura e maus-tratos contra as pessoas privadas de liberdade. Fica evidente, pois, que essas ações estavam muito distantes do apregoado em normativas nacionais e internacionais sobre o assunto. Os agentes de segurança lançavam bombas de gás e sprays de pimenta dentro das galerias cheias de pessoas; utilizavam balas de borracha; faziam os presos retirarem suas roupas; em algumas circunstâncias, os privados de liberdade tinham de sentar apenas de cueca nos pátios das unidades no chão quente; e as pessoas eram agredidas física e verbalmente. Vários presos, em alguns estados, mencionaram ter ficado com sequelas físicas, tais como cegueira e queimaduras, ocasionadas pela ação dos agentes de segurança nessas operações.
Recomendação 23
A assustadora situação de superpopulação em alguns estabelecimentos de prisão provisória e instituições prisionais precisa acabar imediatamente; se necessário, mediante ação do Executivo, exercendo clemência, por exemplo, com relação a certas categorias de presos, tais como transgressores primários não violentos ou suspeitos de transgressão. A lei que exige a separação entre categorias de presos deveria ser implementada.
Parágrafo 121
Em conformidade com esse cenário, com exceção do Cope São Pedro de Alcântara, da Penitenciária Feminina de Manaus e do Presídio Romão Gomes, todas as outras unidades visitadas pelo MNPCT em seu primeiro ano de atuação se encontravam superlotadas. Como exemplos, a taxa de superlotação chegava a 256% no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Sorocaba (São Paulo), 254% no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Amazonas) e 241% no Presídio Central de Porto Alegre (Rio Grande do Sul).
Parágrafo 122
Não foi raro observar celas com muito mais pessoas do que a sua capacidade. No CDP de Sorocaba (São Paulo), por exemplo, havia celas com capacidade para nove presos, mas que abrigavam mais de 50. Na Central de Custódia de Presos de Justiça do Complexo de Pedrinhas, por exemplo, viviam 12 presos em uma cela destinada a apenas quatro. Em muitas unidades, os privados de liberdade relataram se revezar para dormir, sentar ou comer. Essas situações afrontam os artigos 85 e 88 da Lei de Execução Penal (LEP) cujos conteúdos estabelecem, respectivamente, que a lotação da unidade deve ser compatível com sua capacidade e os parâmetros mínimos para uma cela. Adicionalmente, está em desacordo com os artigos 8o e 9o da Resolução 14/94 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), com o Artigo 10 (1) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e com as Regras de Mandela.
Parágrafo 123
O quadro de superlotação nas unidades aumentava o clima de tensão, além de inviabilizar a garantia de direitos e assistências fundamentais à execução e à individualização da pena. Isto é, garantir a saúde, a educação, o acesso ao trabalho, à assistência social, etc. se tornava praticamente impossível nesse contexto. Para além desse aspecto, formava-se um cenário de forte tensão e de grande restrição de direitos, altamente propício à prática de tortura e maus-tratos.
Parágrafo124
Ainda, os efeitos da superlotação podiam ser tão diversos que, no Presídio Central de Porto Alegre, a direção mencionou a dificuldade em realizar manutenções infraestruturais na unidade. A superlotação do local impossibilitaria a transferência de presos de determinada galeria a outra. Portanto, apenas eram realizadas reformas quando os presos estavam no pátio da unidade, de forma que tais medidas eram superficiais e insuficientes frente ao quadro de grave degradação da estrutura física daquela unidade.
Recomendação 28
O governo deveria considerar séria e positivamente a aceitação do direito de petição individual ao Comitê contra a Tortura, mediante a declaração prevista nos termos do Artigo 22 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Parágrafo 86
Além disso, registrou-se a falta de canais de denúncias autônomos para a formulação e apuração das denúncias: as ouvidorias eram vinculadas a órgãos do Poder Executivo, como as secretarias de Segurança Pública e de Administração Penitenciária, o que poderia impossibilitar a abertura de procedimentos isentos. Isso contraria o Artigo 41, XIV, da LEP, bem como as Regras 54 a 57 das Regras de Mandela.
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A comparação que sugeri acima, que se aplica sobretudo às instituições de detenção, indica que em vários aspectos fundamentais as formas de tortura e impunidade não só não declinaram como em muitos aspectos se sofisticaram, se aprofundaram e se instalaram confortavelmente nos limiares entre a vida e a morte das pessoas sob a tutela do Estado.
O quadro geral indica que, salvo um ou outro detalhe das recomendações do relatório da ONU de 2001, os governos nacional e estaduais praticamente deram as costas para o problema da tortura no Brasil nos últimos 15 anos.
As violências prosperam, o Estado se ausenta das instituições que deveriam estar sob sua guarida e cria mecanismos para que a impunidade adormeça como prática negligenciada e/ou legitimada, dando então largo alcance a práticas abusivas, cruéis e degradantes. Diante disso não há horizonte promissor para o combate à tortura no Brasil.
O Poder Judiciário, que tem sido eficaz na cumplicidade do encarceramento em massa no Brasil, se ausenta para garantir os direitos fundamentais dentro dos locais de detenção de homens e mulheres, deixando os presos frequentemente fragilizados ante os agenciamentos das facções e os interesses de grupos hegemônicos no cárcere. O relatório do MNPCT evidenciou ainda estratégias que aprofundam a impunidade e geram, a partir da prática da terceirização das atividades prisionais realizadas por funcionários das prisões, a sua garantia. Barganha-se a investigação e o julgamento dos possíveis perpetradores por suas respectivas demissões.
Em alguns casos, como na recomendação 21, chega a ser risível a distância entre o que foi recomendado pela ONU e o quadro encontrado pelo MNPCT em 2015-2016. São situações que empurram os direitos humanos a resvalarem perigosamente no impossível, no impensável, a partir dos ataques frontais e continuados a eles desferidos no Brasil.
Caso observados em maior detalhe, provavelmente seria possível concluir que nenhuma das 30 recomendações da ONU, de 2001, foi levada às últimas consequências, indicando claramente que há no Brasil um sistema implantado pró-tortura que impede avanços e que trabalha para converter a defesa e o respeito aos direitos fundamentais numa ladainha que se exporia sob a forma de queixa, muito particularmente no que diz respeito às populações mais pobres e vulneráveis, que constituem a imensa maioria da massa carcerária.
Em outras ocasiões, discuti o traço que demarca a invisibilidade da tortura e seu encerramento como assunto privado do sujeito que a viveu (Endo, 2006). A intenção era compreender o caminho de volta da tortura como experiência psíquica insuportável e, ao mesmo tempo, seu registro e apagamento no debate público, tendo como consequência seu isolamento (enquistamento) como experiência psíquica cativa do sujeito que por ela foi atingido, acometido pela imposição de uma temporalidade violentamente heterônoma e alheia na situação de tortura (Endo, 2010).
Como polos temporalmente antinômicos resultam a posição imposta ao torturado, na infinita espera, e o torturador, na eternidade (“eu tenho todo o tempo do mundo”), comandando, até os dias de hoje no Brasil, o usufruto de sua impunidade e de sua autoridade em falar pública e abertamente sobre as torturas que cometeu.
Reconheço agora, após esse brevíssimo exame dos relatórios separados por 15 anos, que essa temporalidade violenta se mantém sob a forma do ensurdecimento aos apelos dos direitos humanos, que não impactam significativamente o combate à tortura no Brasil, mais de 33 anos após o fim da ditadura civil-militar de 64, 70 anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, 30 anos após a Constituição de 1988 e mesmo após a adesão do Brasil à Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 1989, e à Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1992. Torturar, matar e encarcerar continuam sendo a tônica do sistema de (in)justiça no país.
PAULO ENDO é psicanalista, professor associado da Universidade de São Paulo e coordenador do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do IEA-USP.
ENDO, P. “Tortura: aspectos psicológicos”, in revista Polêmica. Rio de Janeiro, Uerj, 2006.
“O debate sobre a memória e o corpo torturado como paradigma da impossibilidade de esquecer e do dever de lembrar”, in Carlos Ugo Santander. Memória e direitos humanos. Brasília, LGE, 2010, pp.15-24.
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