As ciências humanas, como implica a designação, são um campo do conhecimento particularmente afetado pelo modo como as pessoas pensam e, portanto, estão suzjeitas a mudanças nos valores ou principais preocupações da época específica em que emergem. A maneira pela qual as pessoas planejam suas vidas, organizam suas carreiras ou criam seus filhos é fortemente guiada pelo modo de pensar dominante e seus desdobramentos imediatos. Hoje em dia, o pensamento sistêmico está começando a permear as atividades de diversos setores; empresas investem na integração entre suas áreas, instituições educacionais planejam seus cursos para promover a interdisciplinaridade e iniciativas culturais desenvolvem cada vez mais programas para envolver o público proporcionando vários níveis de interação. Este é o resultado da maneira pela qual pensamos hoje, especialmente no mundo ocidental e em muitos lugares do Extremo Oriente. As palavras do momento são “integração”, “inclusão”, “sustentabilidade”, “ética”, “direitos iguais”, “economia solidária”, “co-working”, “co-housing”, “crowdfunding”, etc., apoiadas na consciência das interconexões entre ações em diferentes áreas. Neste cenário, é inevitável que muito do pensamento criativo comece a levar esses princípios em conta – ou pelo menos deveria fazê-lo.
É impossível separar a arte da vida real, que fornece o contexto de onde emergem as ideias e os impulsos criativos. Os aspectos da realidade que impulsionarão a criação artística variam de pessoa para pessoa, de contexto para contexto e, em última instância, de cultura para cultura. Somos afetados pelas questões mais prementes de nosso entorno imediato. Para alguns, pode ser o meio ambiente, para outros, relações interpessoais, direitos humanos, o papel da tecnologia, a política ou até muitas ou todas essas questões ao mesmo tempo. Quaisquer que sejam elas, os artistas, sendo um tipo de “antena” do mundo real, tendem a estar naturalmente atentos às mesmas. Uma dessas questões é o funcionamento da sociedade. Especialmente em países em desenvolvimento, existe um número significativo de artistas que são inspirados por e abordam questões sociais em seus trabalhos. Afinal, só se pode criar um repertório em meio a seu próprio contexto. No Brasil, por exemplo, isso quer dizer uma sociedade extremamente dividida em dois mundos: um que chegou a alcançar projeção econômica internacional, seguida de uma queda que ainda não chegou a um patamar estacionário, e outro de enormes discrepâncias sociais e históricas. A partir de 2013, ondas crescentes de protestos por todo o país escancararam a bipolarização da sociedade que tradicionalmente era disfarçada sob um véu de fraternidade e tolerância, que hoje não se sustenta mais. Quer se seja a favor ou contra “quem sobe ou desce a rampa”, os problemas históricos do país persistem – necessidades básicas como educação de qualidade, saúde pública para todos ou transporte eficiente continuam num nível medíocre. Alcançamos direitos como consumidores, muito mais que como cidadãos. Respeitando-se, obviamente, as particularidades de cada país, esse estado de coisas é mais ou menos o mesmo em toda a América Latina. Mais pessoas com acesso a bens e serviços, enquanto direitos básicos são negligenciados. Qual é o papel da arte (e da crítica de arte) em uma realidade como esta?
Minha intenção é abordar o papel do crítico de arte como mediador entre o público e o potencial da arte de suscitar pensamento crítico. Todos sabemos e vivenciamos o encolhimento do campo de atuação dos críticos de arte – o fato de haver cada vez menos espaço nos jornais e revistas regulares nos empurrou para a mídia especializada e para eventos acadêmicos, um nicho conhecido e acessado apenas por um público muito restrito. Ficamos isolados em uma torre de marfim, sem contato com o mundo real, com as pessoas reais para as quais a arte tem tanto a dizer. A fim de exercitar verdadeiramente o seu potencial de fazer as pessoas pensarem e até, com sorte, inspirá-las a agir, a mensagem da arte precisa ser compreendida. Não há como fazer isso acontecer sem mediação, especialmente em países com um sistema educacional deficitário e, consequentemente, com pouco pensamento crítico. Apenas tornando-se mediadores ao invés de juízes os críticos podem efetivamente chegar ao público geral e estabelecer um diálogo com este. Caso contrário, a mensagem chegará apenas à parca porção da sociedade que está equipada com a formação necessária para decifrar a linguagem da arte contemporânea. Cabe lembrar, neste ponto, que a arte contemporânea carrega um conteúdo teórico que, na maioria das vezes, não está ao alcance das pessoas não envolvidas diretamente no mundo da cultura – apreciar arte, hoje, exige leitura, estudo e uma predisposição para a pesquisa. Esse tipo de informação não é oferecido em larga escala, mas, ao contrário, exige uma atitude proativa por parte do espectador interessado. Ao leigo, pouco chega. Podemos especular que, apesar de ter sempre estado na pauta de todas as instituições culturais de preocupação educativa, o acesso à cultura e o fomento à formação de novos públicos permanecem como um trabalho em progresso e eternamente incipiente.
Acredito que, com uma consciência maior sobre como os universos de diferentes áreas se influenciam, novas estratégias de relacionamento com o público hão de surgir. Neste ponto, posso apenas cogitar algumas possibilidades e esperar que outros teóricos com mais recursos (ou conexões) se juntem a este esforço de aproximação. Uma das características de nosso tempo é a das iniciativas independentes, além das parcerias entre indivíduos, grupos e instituições – colaborações de diversas ordens, como apontamos no início do texto, e que podem se materializar das mais variadas formas possíveis.
Trabalhar em parceria com artistas para desenvolver modos de envolver o público geral pode ser uma maneira empolgante e frutífera de colocar nosso conhecimento crítico a serviço das pessoas. Talvez isso implique mudar um pouco o foco de nosso trabalho, como desenvolver uma análise de uma exposição ou um texto de parede com uma abordagem educativa a fim de transformá-lo em um apoio à compreensão para o espectador em potencial, fazer curadoria tendo o público em mente, ou propor projetos para envolver os visitantes em diferentes níveis. Até agora, a maioria dos projetos de curadoria apoia-se sobre uma concepção autoral. Às vezes, tem-se a impressão de que determinadas exposições têm como objetivo primordial impressionar vários atores: instituições, outros curadores, universidades, produtores culturais, empresas que investem em projetos culturais, etc. e tal. Mas não para impressionar ou encantar o público, que acaba cumprindo a função de fazer volume para a avaliação do sucesso ou não de uma exposição. Com frequência, os números de visitantes dizem mais sobre a eficácia da divulgação que sobre um real aumento de público frequentador de museus e galerias. Nesse sentido, deveríamos nos colocar na posição de facilitadores, uma interface entre a obra de arte e o público, em vez de permanecermos como especialistas que apenas podem ser realmente compreendidos por um grupo muito restrito de connoisseurs.
Cabe ressaltar que não pretendo, em momento algum, inferir que dar acesso amplo seja equivalente a rebaixar a complexidade ou sofisticação de um texto ou projeto – existe uma grande diferença entre simples e simplório ou superficial. O que defendo é que procuremos ter em mente para quem estamos falando, a quem queremos envolver na apreciação da obra de arte. Sabemos que a arte contemporânea, particularmente a produção ligada à arte conceitual, requer um conhecimento prévio, às vezes apenas da obra de determinado artista, às vezes de grande parte da história da arte. Ora, nem sempre o espectador detém tal conhecimento específico. É um exercício bastante interessante ter em mente esse apreciador leigo fictício – na tentativa de abarcá-lo, somos forçados a esgarçar as fronteiras de nossa prática e questionar nossos “dogmas” artísticos. Tal ginástica mental já é, por si só, uma atitude inclusiva, próxima do que estamos chamando de “artivismo”. Há, é claro, aqueles que levam essa preocupação além da teoria e efetivamente se empenham em projetos com resultados palpáveis em questões sociais, culturais ou ambientais e, com frequência, nos fluxos entre distintos campos. Em tempos recentes, as trocas ocorrem mesmo entre a esfera mais tradicional da arte e outras da vida cotidiana.
Neste ponto, gostaria de dar alguns exemplos de iniciativas que lidam com questões prementes e que estabelecem conexões entre diferentes áreas. O primeiro exemplo é mais antigo: o projeto de intervenções urbanas Arte/Cidade, organizado por Nelson Brissac Peixoto em São Paulo, entre os anos de 1994 e 2006. Foi algo pioneiro numa época em que essa modalidade de arte estava em seus começos. O propósito era chamar a atenção para áreas críticas diretamente relacionadas a processos de reestruturação e projetos de redesenvolvimento, a fim de identificar seus agentes e conscientizar o público a respeito da história, diversidade e contexto desses lugares. O Arte/Cidade reuniu artistas e arquitetos brasileiros e estrangeiros para desenvolverem práticas artísticas não convencionais.
A primeira edição, “Cidade sem janelas” (1994), ocupou o antigo Matadouro Municipal, que, na época, era uma construção abandonada havia 60 anos e estava iniciando o processo de conversão para um centro cultural. Quatro anos depois, reabriu como Cinemateca Brasileira, hoje passando por um período de certa instabilidade. Em 1994, parte da estrutura estava em ruínas, com muros altos que a isolavam do resto da cidade. Essa estrutura pesada recebeu artistas que criaram obras site specific que exploravam a matéria, a inércia e o peso das coisas. Carmela Gross concebeu sua instalação como se fosse uma investigação “arqueológica” das diversas camadas do piso do antigo Matadouro Municipal, chamando a atenção para a história do local no desenvolvimento da cidade.
Carmela Gross, Buracos, 1994. Intervenção no espaço do antigo Matadouro Municipal de São Paulo
Foto: Rômulo Fialdini
Guto Lacaz, Periscópio, 1995. Instalação, técnica mista
Foto: Guto Lacaz
Cildo Meirelles, Sem título, 1997.
Instalação com 7 mil seringas
Foto: Cildo Meirelles
O Arte/Cidade – Zona Leste ocorreu em 2002, em uma área de aproximadamente 10 km2 na Zona Leste de São Paulo, a primeira região a receber imigrantes e a industrialização na cidade. É a região mais populosa da megalópole, com grandes contrastes que resultam de um longo período de desinvestimento. Em grandes áreas abandonadas existem enormes favelas, comércio informal e ocupações ilegais. A proposta de Vito Acconci para essa área central famosa pelo grande contingente de pessoas sem teto não era alterá-la nem escondê-la, mas “aceitar” sua situação e criar ajustes para tornar a estadia temporária dessas pessoas um pouco mais confortável, assim como promover oportunidades de interação.
Vito Acconci, Sem título, 2002. Intervenção no Largo do Glicério
Foto: Vito Acconci
O artista Eduardo Srur faz intervenções urbanas em larga escala, frequentemente direcionadas a questões sociais ou de meio ambiente. Um exemplo é o trabalho PETS (2008), composto com garrafas PET infláveis gigantes dispostas ao longo das margens do Rio Tietê, famoso por suas águas poluidíssimas e praticamente mortas. As garrafas eram iluminadas à noite, tornando-as visíveis para motoristas na hora do rush e, após terem sido removidas, o material plástico das garrafas foi transformado em mochilas desenhadas pelo artista Jum Nakao e doadas a alunos das escolas públicas que visitaram a instalação.
Mochila reciclada, desenhada por Jum Nakao
Foto: Reprodução
Eduardo Srur, PETS, 2008. Intervenção na margem do Rio Tietê
Foto: Almeida Rocha
Monica Nador, Paredes
Foto: Monica Nador
C.H.O.L.O., 2012. Instalação
Foto: Reprodução
Karen Bernedo, Horizonte frágil, 2012
Foto: Karen Bernedo
T.A.S. Blueprint, 2012
Foto: Reprodução
Francisco Ugarte, We are not afraid of ruins, 2012
Foto: Francisco Ugarte
Ale de la Puente, Espacio (en…), 2012
Foto: Ale de la Puente
Projeto “Carne e Concreto”, ação-passeio Bicitekas, 2012
Foto: Reprodução
Marcone Moreira, Banzeiro, 2010
Foto: Marcone Moreira
SYLVIA WERNECK é doutora em Comunicação e Cultura pelo Prolam-USP, membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e autora de De dentro para fora – A memória do local no mundo global (Zouk).
WERNECK, Sylvia. De dentro para fora – A memória do local no mundo global. Editora Zouk, Porto Alegre, 2011.
“Art and art criticism in a divided society”. Artigo selecionado para o XLVII AICA International Congress, Coreia do Sul, 2014.
Sites
https://apexart.org/franchise.php
http://jamac.org.br
http://www.artecidade.org.br