A Lei nº 13.415/2017 instituiu o Novo Ensino Médio no Brasil (NEM). A nova forma de educação, visando a “modernizar” o ensino, diminuiu drasticamente a carga horária das matérias obrigatórias cobradas nos vestibulares, como história, geografia, física e química, para introduzir os “itinerários formativos”, matérias sem relação com a base curricular comum e que seriam de livre opção do aluno.
O NEM foi revisto recentemente no Legislativo Federal, de acordo com os Projetos de Lei nº 5230/2023 e nº 2601/2023, e para a ocasião foi elaborado um relatório em parceria com diversas entidades civis sobre os rumos da educação de nível médio no Brasil após a mudança. Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP, explica melhor os avanços e retrocessos educacionais trazidos pela revisão.
A retomada das horas-aula
Na reforma original, de 2016, o Ensino Médio de base comum era de apenas 1.800 horas ao longo dos três anos. As outras 1.200 horas da carga horária (totalizando 3 mil horas) deveriam ser preenchidas com os itinerários formativos ofertados pelas escolas tanto públicas quanto particulares. Já na revisão, as horas-aula de base comum passaram a ser 2.400. Daniel Cara explica melhor: “O texto aprovado pela Câmara dos Deputados e sancionado pelo presidente Lula só tem uma grande conquista, que é a retomada das 2.400 horas de formação geral básica. Formação geral básica é exatamente aquilo que cai nos vestibulares, como, por exemplo, na Fuvest e no Enem. São as disciplinas que se convencionaram chamar de disciplinas tradicionais”.
O professor elucida que as disciplinas tradicionais possuem maior aporte acadêmico, uma vez que os docentes no mundo todo realmente estudam para ministrá-las: “Os professores se formam com base nelas nas licenciaturas, é o ensino que é ofertado no mundo todo. Não podemos criar disciplinas no Ensino Médio que sejam diferentes das licenciaturas, daquilo que é promovido pelas universidades”.
O problema dos itinerários formativos
A proposta aprovada ainda mantém 600 horas para as matérias de opção do estudante. O intuito das matérias optativas era reaproximar os alunos da escola, visto que o Brasil enfrenta um problema crônico de evasão escolar no Ensino Médio. Contudo, o relatório apontou que o problema não foi resolvido, já que as causas da evasão são mais complexas do que apenas o desinteresse dos estudantes.
O modelo de matérias optativas também aumentou a desigualdade da educação. Escolas particulares, com maior orçamento e menos fiscalização, puderam contratar professores e adotar matérias com maior apelo pedagógico para a opção do aluno, enquanto nas públicas o déficit de número e capacitação dos professores, obrigados a inventar disciplinas, gerou matérias enfadonhas: “Os itinerários formativos geraram enorme caos nas redes públicas brasileiras, com disciplinas completamente descontextualizadas, como, por exemplo ‘brigadeiro gourmet’ ou ‘torne-se um milionário’, educação financeira totalmente descontextualizada do ensino de matemática. Disciplinas que incomodaram os estudantes e também os professores, que se sentem despreparados e desperdiçados com essas disciplinas que não fazem sentido,” conta Cara.
O professor explica que esses itinerários formativos também fortalecem uma lógica empresarial, de favorecimento de empresas privadas com a educação pública, bem social promovido pela Constituição de 88: “Na realidade, os itinerários formativos servem para a promoção de uma lógica empresarial. Por exemplo, no Estado do Ceará, o ministro Carlos Santana implementou a disciplina mais criticada pelos estudantes: ‘Bora de Uber’. Uma disciplina que, além de favorecer a lógica dos aplicativos, de precarização do trabalho e de baixa capacitação, ainda faz propaganda de uma das empresas. Inaceitável esse tipo de conteúdo dentro de uma escola”.
Outras problemáticas
O relatório também aponta outros fatores que contribuem para a precarização do ensino público nacional e amplificam desigualdades na educação. Um deles é a desescolarização, uma brecha da lei que permite ao aluno cumprir parte do Ensino Médio longe do ambiente pedagógico do colégio: “Para os alunos que fazem educação integral, eles podem ter horas letivas descontadas fora da escola, então afastadas do processo de ensino-aprendizado. Isso abre margem, inclusive, para trabalho infantil, e isso não foi vetado pela proposta” expõe Daniel Cara. O professor conta de outro veto que foi importante na perspectiva do ensino público: “Um veto que nós brigamos para que o presidente fizesse são as alterações do Enem. O Exame Nacional do Ensino Médio vai continuar valorizando só a formação geral básica. As fundações empresariais queriam que ele valorizasse os itinerários formativos. Imagina ter um Enem ou uma Fuvest com ‘brigadeiro gourmet’, com ‘torne-se um milionário’?”.
Essa mudança proposta do Exame Nacional exemplifica um embate travado na elaboração do relatório e na efetivação da revisão do Novo Ensino Médio: a das organizações acadêmicas de educação contra as fundações empresariais. Cara conta mais sobre as entidades que participaram do relatório: “Em relação às universidades, teve uma participação muito forte da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal do Paraná, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Universidade Federal do Ceará, principalmente. As entidades Campanha Nacional pelo Direito à Educação e o Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade também foram muito relevantes na tramitação. “Do outro lado, ficaram as fundações empresariais, com destaque para a Fundação Lemann e para a ONG empresarial Todos pela Educação. O que é triste nessa reforma é que muita gente, que não tem compromisso efetivo com a educação, que não está no cotidiano das redes públicas, acabou tendo uma influência muito forte na elaboração”, conclui o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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