Em 2023 foram mais de 46 mil homicídios no Brasil, sendo que em 2017 o País chegou a 65 mil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A taxa está caindo, mas continua alta e muito acima do desejado, e só o Brasil continua a representar cerca de 10% das mortes violentas intencionais no mundo, segundo o estudo sobre homicídios da Organização das Nações Unidas. O cenário integra o problema histórico de segurança pública do Brasil, além de contrastar com a imagem de o brasileiro ser gentil e amável. Paula Ballesteros, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, comenta alguns fatores responsáveis por isso, especificamente no caso do Brasil.
Paula levanta o fato de que uma porcentagem muito pequena dos assassinatos no Brasil é solucionada. A taxa é de meros 35%, ou seja, apenas um a cada três casos tem resolução. Para a pesquisadora, isso indica uma falta de priorização desses crimes, e que, por outro lado, há um enfoque muito grande em delitos menores, como tráfico e roubos. “O que vemos hoje é que a prioridade, principalmente das Polícias, continua sendo a lei de drogas”, afirma ela.
Paula aprofunda a análise: “As políticas públicas continuam sendo majoritariamente repressivas, e a repressão vem depois que o crime aconteceu. Não tem uma perspectiva preventiva, porque ela não traz ganhos políticos, dividendos políticos, ela é muito de longo prazo”. O certo, segundo ela, seria um estudo da violência e uma abordagem pautada na solução estrutural e de resolução, não de violência reativa: “Temos que ter uma política de prevenção de longo prazo. Porque depois que o fato está consumado, é isso, vamos manter as taxas de homicídio muito altas”.
O lado bom é que, de acordo com ela, ainda que em um ritmo lento, “hoje está mudando um pouquinho o foco, que é parar de perseguir aquelas pessoas negras, pobres, com pequenas quantidades de drogas. Começou a se ampliar o olhar da questão da droga para as facções criminosas, porque elas começaram a trazer outro tipo de problema para a sociedade e para o Estado de uma forma geral”. Ainda assim, ela diz que vê que as prioridades continuam majoritariamente pautadas em crimes contra a lei de drogas e patrimônios.
O Brasil brasileiro: da alegria à violência
E se engana quem pensa que o problema é só do Estado e das instituições. No caso do Brasil, não tem como fugir do fato de que, por baixo do carisma, o País tem uma sociedade violenta. “Não temos uma tradição cultural de solução de conflitos de forma pacífica ou política, digamos. Já temos nessa eleição notícias de candidatos assassinados ou perseguidos. [O homicídio] é uma solução considerada num repertório cultural brasileiro, você usar a violência para supostamente resolver problemas.”
Paulo Sérgio Pinheiro e Sérgio Adorno, ambos do Núcleo de Estudos da Violência, usam o termo “autoritarismo implantado dentro da sociedade”. A ideia é que não são só as organizações e o Estado que têm muitas características autoritárias, mas também a própria sociedade. Paula comenta que pesquisadores internacionais em violência vêm ao Brasil para entender justamente essa contradição da imagem de um povo feliz e companheiro, mas que lança mão da morte como solução de conflitos.
Descrença, desconfiança e desilusão
Segundo os últimos dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a taxa de homicídios do Brasil é de 19 a cada 100 mil habitantes, mais de sete vezes a média da entidade. A especialista indica que um outro fator que contribui com essa situação de atraso é a “descrença nas instituições”. Ela explica que isso acontece pela falta de resposta e de propostas efetivas de resolução por parte da Polícia, do Judiciário, do Executivo e do Ministério Público.
Essa descrença, ou falta de confiança, tem como consequência a obturação de um canal de comunicação entre sociedade e governo. Na prática, a população fica desiludida em buscar ajuda, o que dificulta também o trabalho da segurança pública. “Se eu confio, eu vou denunciar e eu vou ter mais informações para poder fazer uma análise criminal mais detalhada, para saber onde estão acontecendo os casos. Então isso é superimportante na área de segurança pública”, conta Paula Ballesteros. Via de exemplo, estima-se que menos da metade das vítimas de furtos faça um Boletim de Ocorrência, de acordo com uma pesquisa do Centro de Políticas Pública do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).
E como se resolve isso?
A solução disso deve passar por mudanças estruturais e de como pensar a sociedade, não só apelando para vigilância e punição. A pesquisadora afirma que a violência costuma acontecer muito menos se “você se vê dentro da sua comunidade, se sente valorizado, se sabe que tem espaço na sociedade. A segurança pública vai muito além das leis penais”.
“Eu acho muito importante nós olharmos para a questão da segurança desse ponto de vista. Se continuarmos fazendo as coisas do mesmo jeito, continuaremos tendo os mesmos resultados. Tanto que, mesmo nos casos em que houve uma diminuição nas taxas de crimes violentos, ainda há uma sensação de insegurança muito alta. Não é só reduzir as taxas de criminalidade, é fazer com que as pessoas se sintam seguras. As pessoas precisam confiar no Estado e também na sua comunidade, nas pessoas ao seu redor. Isso é um projeto nacional e de longo prazo. Não dá para pensar só na próxima eleição”, enfatiza ela.
Segundo a OCDE, no Brasil cerca de 45% das pessoas dizem que se sentem seguras andando sozinhas à noite, muito abaixo da média dos países da organização, que é de 74%. Paula comenta que, mesmo em áreas onde as taxas de criminalidade diminuíram no Brasil, a sensação de risco continuou alta. O problema de segurança e violência no Brasil, é uma questão que permeia a sociedade e vai além dos números.
*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira
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