Letras de músicas podem ser usadas como provas criminais nos Estados Unidos

Professores comentam que as composições do gênero rap, que têm origem negra e periférica, são as mais julgadas, dado o seu teor social e crítico

 09/02/2023 - Publicado há 1 ano
Por
O rap coloca no centro da agenda o debate sobre a situação da periferia – Foto: Flickr
Logo da Rádio USP

A música é uma arte muito relacionada com a criatividade, porém, ela também pode exprimir situações socioculturais que merecem destaque. Nos Estados Unidos, letras do gênero rap são frequentemente utilizadas para criminalizar seus cantores e compositores. Rap significa “ritmo e poesia” e está englobado no movimento cultural hip hop. As músicas desse gênero tendem a criticar aspectos sociais, econômicos e culturais, como o racismo, a periferização e a desigualdade.

Dennis de Oliveira – Foto: IEA

“Eu considero [o rap] uma crônica da periferia. Veja que interessante: por que o rap incomoda? Porque ele traz um retrato de uma realidade que é invisibilizada pelo meio de comunicação de massa, imobilizada pela cultura de massa. O rap coloca no centro da agenda, ele coloca no centro da opinião pública, o debate sobre a situação da periferia. Então, não é só violência no sentido mais físico, mas a violência social, a miserabilidade da população, as condições difíceis. Isso tudo é estrutural e sempre tem uma tendência de se esconder isso. O rap desnuda essa situação, por isso que ele incomoda tanto“, explica o professor Dennis de Oliveira, da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Julgamento

Do ponto de vista jurídico, a questão da liberdade de expressão é um fator a ser discutido. O professor Daniel Pacheco Pontes, de Direito Penal da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, explica que nem tudo pode ser dito, mas a questão seria analisar se a música incitaria algum ato ilícito: “A liberdade de expressão não é absoluta. De modo geral, quando a gente fala em liberdade de expressão, não significa que todo mundo pode falar o que bem entende em qualquer lugar, em qualquer momento. Se fosse assim, a gente não teria crime de calúnia, de difamação, nem crime de injúria. A liberdade de expressão é limitada, sempre tem que ser ponderada, olhando dentro de um contexto. Não deixa de ser uma limitação na liberdade de expressão, mas o que precisa discutir é se essa limitação é legítima ou não”.

Porém, como já dito, muitas das letras de rap tratam de temas vivenciados pelos cantores e são essas vivências que são colocadas em julgamento. Oliveira pontua: “Com certeza é racismo, porque o rap não é a única música, o único tipo de música que fala sobre violência. Você tem vários outros e vários gêneros, inclusive, gêneros até mais clássicos ou chamados eruditos que também retratam a violência das mais diversas formas. Selecionar o rap como única música que trata disso é estigmatizá-la como produto de uma prática criminosa de quem faz parte da cultura do hip hop, é uma forma de racismo. É como se o fato de negros cantarem rap e o rap relatar a violência automaticamente colocasse esses protagonistas da música do hip hop, do rap, como pessoas feitas na violência. Sem dúvida, é racismo“.

Carta aberta

A influência do uso de letras de rap nos tribunais estadunidenses é negativa para a sociedade, como o professor Dennis de Oliveira coloca: “O peso disso é a utilização dos estigmas raciais na criminalização do ser negro e do ser negra. A gente observa  o racismo estrutural em sociedades como a brasileira, a estadunidense, por essa criminalização. Quando você tem, no caso desses julgamentos nos Estados Unidos, esse ser negro, independentemente das provas, independentemente do caso, já entra num tribunal pré-condenado pela sua condição racial”.

Daniel Pacheco Pontes – Foto: Arquivo Pessoal

A situação é grave e, com a repercussão, diversas figuras públicas e empresas assinaram uma carta aberta em prol do não uso de letras de músicas do gênero rap como possíveis provas de crimes. Coldplay, Megan Thee Stallion e o TikTok são alguns exemplos das assinaturas que estão no documento. O movimento Protect Black Art possui uma petição on-line assinada por mais de 82 mil pessoas.

Pontes vê na carta algo mais simbólico do que jurídico, mas ainda muito importante para o entendimento da sociedade quanto ao assunto: “O que vai guiar o juiz vai ser a legislação e, eventualmente, alguma jurisprudência. O valor direto, jurídico, não tem, porém, vamos lembrar que o direito sempre emana do povo. Então, o que é proibido, o que é permitido,  são construções feitas a partir da vontade da população, é claro que isso pode influenciar os juízes de alguma forma ou até mesmo influenciar o legislador, de maneira que a gente tenha o acolhimento do que é pedido na carta. Tem que ver o que vai acontecer no longo prazo, mas, sim, pode ter algum valor jurídico indireto”.

Esses movimentos que mobilizam figuras e empresas importantes já deram resultados. O Rap Music on Trial é um projeto de lei, apoiado por diversas figuras, sobretudo o rapper Jay-Z, que pretende limitar o uso das letras dessas músicas e o cerceamento da liberdade de expressão dos rappers. O Estado da Califórnia foi o primeiro a aderir à legislação.


Jornal da USP no Ar 
Jornal da USP no Ar é uma parceria da Rádio USP com a Escola Politécnica e o Instituto de Estudos Avançados. No ar, pela Rede USP de Rádio, de segunda a sexta-feira: 1ª edição das 7h30 às 9h, com apresentação de Roxane Ré, e demais edições às 14h, 15h e às 16h45. Em Ribeirão Preto, a edição regional vai ao ar das 12 às 12h30, com apresentação de Mel Vieira e Ferraz Junior. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93.7, em Ribeirão Preto FM 107.9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo do Jornal da USP no celular. 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.