Médico, nutrólogo, geógrafo, sociólogo, entre outras coisas mais, o recifense Josué Apolônio de Castro faz parte de um arquipélago pernambucano de grandes pensadores. Entre seus contemporâneos, como Paulo Freire, João Cabral de Melo Neto e Nelson Rodrigues, Josué se destaca por revelar o problema da fome como um objeto político. Na contramão dos pensamentos vigentes da época, que consideravam a questão como uma fatalidade inevitável da natureza, o docente dedicou sua obra e vida ao objetivo de evidenciar que a fome é produto de uma estrutura socioeconômica.
Uma proposta inovadora
Em Geografia da Fome, o escritor identifica mazelas específicas de cada região do País e o divide de acordo com critérios relacionados aos problemas de cada região. “Das cinco diferentes áreas que formam o mosaico alimentar brasileiro, três são nitidamente áreas de fome: a Área Amazônica, a da Mata e a do Sertão Nordestino. Nelas vivem populações que em grande maioria — quase diria na sua totalidade — exibem permanente ou ciclicamente as marcas inconfundíveis da fome coletiva”, explica em trecho do livro.
Josué nega veementemente a interpretação de que os locais que sofriam com a fome eram “castigados biologicamente” e sofriam com questões naturais. Para ele, essa visão era conveniente, pois conferia aos governos o subtexto de que, sendo essas problemáticas de cunho natural, nada se poderia fazer a respeito. Quando se assume que a questão é política, significa então dizer que existem, sim, alternativas viáveis.
Renato Carvalheira do Nascimento, da coordenação da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, conta sobre o legado que conecta Josué com os dias de hoje. “A ecologia como forma de pensar e agir, a paz como princípio para se alcançar a justiça social, o combate ao subdesenvolvimento, a luta pela reforma agrária, entre outras contribuições, uma das principais, sem dúvida, diz respeito ao combate à fome, que o orientou durante toda sua vida”.
O ser político
Para além do trabalho analítico em sua atuação acadêmica, Josué se dedicou a pensar e aplicar soluções, desenvolvendo um currículo extenso também na prática política, chegando a exercer mandato de presidente da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) entre 1952 a 1956. Nas palavras de Darcy Ribeiro, “na década de 50, havia no mundo cinco personalidades de suma importância na humanidade que precisavam estar reunidas quando a ONU fosse debater algo que importasse ao gênero humano, uma delas, indispensável, era Josué”.
No cenário nacional, o médico foi eleito deputado federal pela finada sigla do PTB, da antiga tradição Jango-Varguista, representando Pernambuco em dois mandatos, de 1955 a 1959 e de 1959 até 1962, sendo o parlamentar mais votado do Nordeste nas eleições de 1958. Em 62, renunciou ao mandato de deputado federal para exercer o cargo de representante do Brasil junto aos Organismos das Nações Unidas, do qual foi destituído após o golpe dos militares em 1964, que o exilou na França até o dia de sua morte.
Ex-chefe da Casa Civil em 1963, Darcy contou em entrevista ao documentário Josué de Castro – Cidadão do Mundo, 1994 que chegou a combinar com o então presidente, João Goulart, a nomeação de Josué como ministro da Agricultura do governo. Para Darcy, Josué era “o nome mais brilhante do Brasil na área de alimentação e agricultura”. Em uma conversa com o presidente, Darcy Ribeiro argumenta em favor da nomeação do pernambucano para o cargo. “O presidente concordou comigo e eu fui diretamente a Josué contar o combinado de que ele iria ser nomeado, e então pedi a ele que não contasse a ninguém. No entanto, ele foi a Pernambuco e contou a notícia por lá”.
Diante da notícia, vários membros do próprio PTB se posicionaram contra a nomeação, alegando que havia nomes melhores para o cargo, visto que Josué passava muito tempo fora do País. “O próprio partido dele o impediu de assumir o cargo. É de se imaginar o que é que ele teria feito caso tivesse exercido a função. Tínhamos uma economia voltada para a produção de soja para engordar os porcos no Japão e frangos na Alemanha, e era necessário um sistema preocupado com arroz e feijão para a alimentação das pessoas. Era Josué quem iria pensar nessa inversão”, afirmou Darcy.
Ainda que não tenha exercido diretamente o papel de ministro, Josué guiou grande parte das políticas públicas direcionadas às questões alimentares que foram aplicadas e bem sucedidas no País. Anos após sua morte, o Brasil assume que a fome é um problema político e desenvolve um conjunto de ações públicas que auxiliam a população a acessar os alimentos produzidos. “São políticas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o Programa de Alimentação do Trabalhador, a educação alimentar e nutricional, o fortalecimento da agricultura familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos, o aumento no salário mínimo, os restaurantes populares, entre outras, que possuem fortemente a digital de Josué”, exemplifica Nascimento. Em 2014, o Brasil deixou o mapa da fome pela primeira vez.
Homens e caranguejos nos mangues de Recife
“Não foi na Sorbonne nem em qualquer outra universidade sábia que travei conhecimento com o fenômeno da fome. O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos”. O trecho, retirado do livro Homens e Caranguejos, publicado em 1967 pelo recifense, revela o início da relação do escritor com a fome no Brasil e no mundo.
Na década de 90, em um Recife ainda conturbado e fragilizado economicamente, surge do mesmo manguezal recifense um movimento que viria a reivindicar os estudos de Josué como padrinho de seus ideais. O Manguebeat, fundado por Chico Science, Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. Em seu manifesto, escrito por Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S/A, os manifestantes afirmam que foi a “esclerose econômica” e uma “cínica noção de progresso” que gerou “o quadro da miséria e caos urbano” em Recife, que, na época, era a “quarta pior cidade para se viver no mundo”. Em toda construção do movimento, seja na estética com os caranguejos e antenas enfiadas na lama dos mangues, ou nas construções das mensagens passadas nas músicas, fica evidente a influência das obras de Josué.
(Trecho da música A cidade, de Chico Science)
“O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce”
(Trecho da música Da Lama ao Caos, de Chico Science)
“Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça
Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça […]
[…] Com a barriga vazia não consigo dormir
E com o bucho mais cheio comecei a pensar
Que eu me organizando posso desorganizar
Que eu desorganizando posso me organizar”
A lama que despertou Chico e Josué no século passado ainda está no mesmo lugar, seguindo o mesmo ciclo dos caranguejos. Um estudo de cinco agências da ONU mostra que em torno de 8,4 milhões de brasileiros passaram fome no Brasil entre 2021 e 2023. Além disso, no mesmo período, 39,7 milhões de brasileiros estiveram em situação de insegurança alimentar, sendo que 14,3 milhões estavam em estado severo. A grande diferença de outrora para o hoje é, possivelmente, a convivência obscena da miséria e do luxo, com os condomínios e shopping centers se levantando ao lado dos mocambos, se pondo de bruços sobre as palafitas e observando pacientemente o que Josué descreveu décadas atrás: os “seres anfíbios”, residentes das margens do rio e da sociedade.
“Habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar dessa crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos.”
*Estagiário sob supervisão de Cinderela Caldeira e Paulo Capuzzo
Boletim Alimentação e Sustentabilidade
Parceria: Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, Rádio USP e Jornal da USP
Produção: Professor Ricardo Abramovay, Estela Sanseverino e Nadine Marques
Coprodução: Cinderela Caldeira, J. Perossi e Felipe Bueno
Edição: Rádio USP
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