Geopolítica e o esporte: “Não é uma competição entre países, mas sim entre atletas”

As entidades esportivas internacionais tentam tapar buracos geopolíticos, mas no processo acabam por abrir outros, dizem especialistas

 14/11/2024 - Publicado há 3 meses
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Os argumentos do Comitê Olímpico de permitir Israel de jogar, segundo Kai Lehmann, são consistentes com os costumes da organização – Foto: Waid1995 por Pixabay
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Na última Olimpíada, a Rússia foi impedida de participar por causa da guerra com a Ucrânia; nas competições continentais de futebol, até os times russos também foram barrados. Por outro lado, Israel invadiu Gaza e o Líbano, ocasionando a morte de inocentes e não recebeu sanções esportivas. Quando os países entram em disputa esportiva, não só o esporte está em jogo, mas também interesses, acordos e dinheiro.

Thomas Bach, presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), quer se afastar dessas questões, tendo afirmado que a Olimpíada “não é uma competição entre países, mas sim entre atletas” e que “nós não estamos no meio político, nós estamos lá para atingir nossa missão de agregar atletas”. Por outro lado, Marco Bettine, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), e Kai Lehmann, do Instituto de Relações Internacionais (IRI), concordam que essa posição é ingênua – para não dizer negligente.

Dinheiro em jogo

Imagem de um jovem lde cabelo castanho claro, olhos claros, camisa azul clara
Kai Enno Lehmann – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Kai Lehmann afirma que as razões por trás das declarações de Thomas Bach são financeiras: “O objetivo dele no final é vender ao máximo possível o evento da entidade, que são os Jogos Olímpicos”. Para tanto, o COI assume uma postura de tentar agradar a todos e deixar conflitos longe de si. Quanto menos discórdias, mais patrocinadores envolvidos e mais dinheiro entrando no caixa. “Quanto menos assuntos extra-campo que tenha, melhor para ele”, sintetiza o professor.

No caso da Rússia, sua participação teria sido grande o suficiente a ponto de ofuscar os próprios jogos, o que, de acordo com o professor, teria sido péssimo para os interesses do comitê. A ideia de banir a Rússia partiu também do interesse de “matar esse barulho em torno dos jogos” e afastar a repercussão geopolítica e midiática que a guerra da Ucrânia traria.

A exclusão da Rússia teria se dado, assim, por uma falta de alternativas. O presidente do COI chegou a afirmar que era a favor que os atletas russos competissem com a bandeira do país, mas no fim a pressão foi grande demais. Já com Israel, “enquanto não houver um consenso do ‘sistema dinheiro’ em atender aos apelos da sociedade civil, dificilmente Israel vai ser banido das competições esportivas internacionais”, concorda Marco Bettine.

Silenciando vozes

Ele complementa que até houve países que se manifestaram contra o que acontece em Gaza e no Líbano. Mas como esses países – maioria africana e pobre – dependem de verbas da Fifa e do Comitê Olímpico para sustentar o esporte nacional, eles não tiveram retaguarda para sustentar suas posições. O corte de verba, diz ele, são de recursos básicos: “É o financiamento do lazer de crianças em locais com baixo desenvolvimento, não só os atletas olímpicos ou de elite desses países, é toda uma estrutura formada e que, nesse caso, gera dependência”.

A pressão econômica dificulta a atuação de vários países, os quais “dependem desse financiamento do COI e da Fifa para que o esporte aconteça”. A conclusão dele coincide com o ponto de Lehmann, no sentido de que são os financiadores e patrocinadores da Fifa, da Uefa e das Olimpíadas que agem por trás desse abafamento.

Argumentos do COI

Os argumentos do Comitê Olímpico de permitir Israel de jogar, segundo Lehmann são consistentes com os costumes da organização. Para alguém de fora, pode parecer contraditório eles permitirem Israel e barrarem a Rússia, mas o professor explica que a política do COI é tentar permitir todos, e nesse sentido eles estão sendo congruentes – se é o certo ou não a se fazer, é outra discussão.

Ele afirma que há algumas diferenças entre a situação da Rússia e de Israel e que o comitê vai se apegar a qualquer argumento que possa usar para se afastar da política. Lehmann dá alguns pontos que pesam a favor de Israel e do COI em contornar uma exclusão. O primeiro é que “Israel pode reclamar por si mesmo que foi vítima de um ataque terrorista, então estariam respondendo, algo que não era o caso na Rússia”. O segundo ponto é, sendo o COI uma organização que pretende se afastar da política, ter um presidente alemão, Thomas Bach, interferindo contra Israel poderia ter uma repercussão negativa.

Por fim, o professor diz que os grandes e influentes países que apoiam a Palestina seria como o “sujo falando do mal lavado”: “Que legitimidade tem a Rússia de dizer que deveríamos banir Israel por causa de ações militares que está fazendo em outro país? Não dá para levar isso a sério”.

Contra-argumentos

Imagem de um jovem branco, de barba e bigode, camisa azul
Marco Bettine – Foto: Arquivo Pessoal

Já Marco Bettine é mais efusivo ao analisar a postura do Comitê Olímpico. Para ele, houve uma clara situação de “um peso, duas medidas”. Se o que fez a Rússia ser banida, segundo o discurso oficial, foi a anexação de áreas e atletas olímpicos, além de iniciar uma guerra dentro da trégua olímpica, o professor diz que o mesmo deveria valer para o que Israel fez.

Para começar, ele argumenta que Israel, apesar de não ter iniciado a guerra durante os Jogos Olímpicos, tampouco respeita a paz prevista para esse período. Além disso, de acordo com a Associação Palestina de Futebol, 410 atletas morreram desde o início da guerra, dos quais 84 eram crianças. Dos dez estádios da Palestina, nove foram destruídos pelo conflito, fora mais de 50 bases esportivas também danificadas.

Envolvimento do ativismo político

No fim, ambos os especialistas consideram que as entidades esportivas “lavam as mãos” em relação aos acontecimentos globais, se abstendo de uma responsabilidade que não pode ser dissociada das competições. Os dois concordam que esporte também é política e que se posicionar frente a crimes e infrações aos direitos humanos não pode ficar atrás de satisfazer patrocinadores.

Marco Bettine, por exemplo, vê com bons olhos o banimento da Rússia pela invasão e pelos atos violentos cometidos. Mas, para ele, seria melhor ainda se essa medida fosse a regra, não a exceção. No caso russo, o banimento se deu por argumentos burocráticos, mas Bettine “gostaria, como defensor dos direitos humanos, que não se pautasse somente na questão jurídica, mas [que a entidade] se posicionasse sobre a valorização da vida”.

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Kai Lehmann compartilha da mesma opinião, complementando que é até uma questão de credibilidade para as instituições: “Perde-se mais credibilidade em não se manifestar e fingir que essa política não existe. É um absurdo”. Segundo ele, essa postura cria problemas tanto políticos quanto práticos, pois as entidades têm que fazer um malabarismo para tentar agradar ao máximo a todos. “Você não pode fazer Olimpíadas onde se têm grandes chances de um atleta ucraniano competir com um atleta russo e dizer ‘ah, é tudo normal’. Evidentemente não é”, conclui.

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira


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