A coluna A Qualidade da Democracia está sendo retomada hoje, tratando de um tema importante: a política brasileira está marcada, neste momento, por uma forte tensão entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A tensão ocorre, sobretudo, porque um desses poderes se sente desqualificado por outro ou até que está sendo usurpado em sua competência constitucional específica. O maior conflito está ocorrendo entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Muitos parlamentares, como os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, respectivamente Rodrigo Pacheco e Arthur Lira, consideram que o STF avançou sobre temas cujo tratamento deveria ser exclusivamente de competência do Legislativo.
Exemplos do que é considerado como usurpação de competência dos parlamentares são a definição do Marco Temporal de demarcação de terras indígenas, a descriminalização da maconha para uso pessoal e a legalização do aborto. Esses temas foram tratados de fato pela Corte Suprema porque ela foi provocada a se pronunciar sobre eles. A reação de parlamentares a isso envolve a retomada de projetos que, na sua essência, limitariam a competência do STF. Esses projetos estão destinados a limitar o tempo de atuação dos ministros com adoção de mandato fixo, bloqueio de decisões monocráticas e até uma emenda constitucional que daria ao Congresso o poder de sustar decisões do Supremo que os parlamentares considerassem ter ultrapassado os limites constitucionais.
Outro exemplo se refere a um conjunto de decisões adotadas pela Câmara dos Deputados, limitando as iniciativas do Executivo no que toca ao orçamento federal. A adoção do orçamento impositivo, ao lado da introdução de emendas individuais de bancadas, modificou um aspecto importante que antes era atribuição exclusiva do Executivo, que mandava a proposta orçamentária ao Congresso, que podia aprová-la ou reprová-la. As mudanças ocorreram a partir de 2014, no contexto da crise política do governo de Dilma Rousseff, e se aprofundaram com Michel Temer e especialmente Jair Bolsonaro. Ou seja, enquanto o Congresso ampliou seu poder, o Executivo teve a sua mais importante área de atuação política reduzida. O problema se tornou evidente na fase inicial do governo Lula, que teve de formar uma discutível coalizão de governo com membros do Centrão que apoiam as mudanças mencionadas.
Algumas considerações são importantes sobre esse quadro. Em primeiro lugar, é preciso ter claro que tensões entre poderes são normais no regime democrático, contudo o limite dessas tensões é o que está estabelecido na Constituição. É essencial que as regras que garantem a harmonia, autonomia e a independência dos poderes sejam respeitadas. Por exemplo, a proposta para sustar ou modificar decisões da Corte Suprema pelo Congresso é uma clara ingerência sobre as competências do STF, sem nenhum suporte no texto da Constituição.
As instituições democráticas realmente precisam de reforma para aperfeiçoá-las, e o STF não está imune a isso. Mas, para resguardar a qualidade da democracia, as mudanças têm de preservar o que é próprio de cada esfera de atuação dos poderes republicanos. A competência para resguardar que as decisões respeitem a Constituição é exclusiva do Judiciário. Isso é fundamental para que as decisões dos poderes sejam respeitadas pelos cidadãos e, ao mesmo tempo, respondam às suas expectativas sobre o funcionamento da democracia. A qualidade da democracia fica comprometida quando essas condições são desrespeitadas.
Qualidade da Democracia
A coluna A Qualidade da Democracia, com o professor José Álvaro Moisés, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h30, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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