A recente captura do uso de uma planta medicinal por um orangotango de Sumatra para se tratar de uma ferida foi inédita, nunca antes captada entre animais selvagens, apesar de que diferentes práticas de automedicação de animais já eram conhecidas e já foram estudadas, referentes à zoofarmacognosia. Daniel Demarque, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo, explica que a farmacognosia é uma área que está relacionada ao conhecimento a respeito de drogas naturais, que podem ir desde plantas até bactérias, e são divididas em abordagens diferentes, como a zoofarmacognosia e a etnofarmacologia.
Enquanto a última estuda o uso de plantas medicinais por populações, principalmente dos indígenas — por exemplo, eles colocam um preparado com algumas ervas nas suas flechas para caçar que causa a paralisia dos animais, e o estudo dessas plantas levou ao desenvolvimento de anestésicos locais —, a outra abordagem está relacionada à análise do comportamento animal. “A etnofarmacologia é uma abordagem, assim como a zoofarmacognosia, em que os pesquisadores vão verificar que plantas que esses animais, inclusive insetos, utilizam, e para que determinado fim. Por exemplo, tem algumas formigas que vão utilizar determinadas resinas para se proteger de bactérias ou para proteger a colônia contra determinado fungo”, comenta.
Zoofarmacognosia
Sobre esses estudos, Eduardo Ottoni, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP e especialista em Cognição e Comportamento Animal, explica que vários primatas utilizam possíveis princípios ativos, como plantas e ervas, para processos de automedicação. Com práticas diversas, como a ingestão de plantas, folhas, casca de árvore ou até mesmo argila para combaterem verminoses, problemas intestinais e outros mal-estares, elas podem indicar uma tradição comportamental — em grupos muito próximos, costumam ser explorados os mesmos elementos —, introduzida principalmente pelas fêmeas.
“Os macacos-prego do Parque do Tietê foram vistos se esfregando com formigas, pegando as formigas e esmigalhando. Essas coisas aconteciam com mais frequência na temporada que tinha mais carrapato no parque. O que essas formigas têm de altamente concentrado é ácido fórmico, então fizemos experimentos com ácido fórmico e vimos que os carrapatos não chegavam nem perto e que, aparentemente, o ácido fórmico era um bom repelente de carrapatos”, exemplifica.
Apesar da análise do comportamento animal em relação às fontes naturais para novos fármacos, como a pesquisa diante do ácido fórmico como forma de repelente a carrapatos, Patrícia Izar, também professora do IP-USP e especialista em comportamento animal, explica que, normalmente, a literatura da automedicação de animais possui um caminho inverso. “Quando nós observamos os animais fazendo uso de um tipo de planta, se alimentando dela ou esfregando no pelo, vamos pesquisar o que já existe de literatura, quais são os compostos presentes naquela planta, qual é a ação possível desse composto em humanos e o próprio uso medicinal por humanos. Se nós conseguirmos avançar nessas pesquisas de automedicação, enquanto ainda conseguirmos ter animais em condições de mais preservação, em contato com a floresta, podemos ter tempo de fazer essas novas descobertas”, afirma.
Contudo, ela entende que que o mundo está enfrentando, em um alto grau e velocidade, a destruição dos habitats naturais, com desmatamento, transformação das áreas locais em grandes extensões de agricultura intensiva, entre outros fatores. A especialista conta que isso elimina a diversidade existente na natureza, destruindo não só a natureza, como também os conhecimentos tradicionais dos povos originários, referentes à etnofarmacologia, e conclui: “A destruição é muito mais rápida do que a capacidade da comunidade acadêmica, da ciência, em produzir o conhecimento”.
Outros exemplos
Além dos métodos de ação repelente, ou mesmo de hidratação e estimulante, referentes à esfregação de plantas medicinais ou outros elementos nos pelos e corpo que alguns primatas utilizam, Patrícia reforça que um método de automedicação muito analisado é o uso medicinal da alimentação entre os animais. Essa função para plantas, folhas e outros componentes está explicitamente relacionada a uma ação antiparasitária e mal-estares digestivos ou estomacais, na qual a sua ingestão, com ou sem mastigação, é feita.
Ela conta que, através de um estudo sistemático da dieta de diferentes grupos de chimpanzés, foi possível identificar a ingestão não nutricional de certas plantas, pouco palatáveis e em pequenas quantidades, e com folhas ricas em compostos secundários, o que as deixa amargas e indica o seu provável uso medicinal. Além disso, fatores como a não mastigação, em alguns casos, e o aumento de frequência desses comportamentos na estação chuvosa, época em que há maior probabilidade de infecção por esses enteroparasitas, colaboram para essa hipótese.
“Nós conhecemos, em termos de relatos anedóticos que saem dos estudos um pouco mais sistemáticos com primatas, o uso de plantas associadas a uma ação contra enteroparasitas ou com uma ação digestiva, mas há alguns relatos também de uso bastante diferente, como analgésico ou anti-inflamatório para induzir trabalho de parto”, acrescenta.
Sobre esses relatos anedóticos, a professora cita a ingestão de leguminosas com propriedades analgésicas por elefantes-asiáticos, a ingestão de outras plantas que, em humanos, induzem o trabalho de parto, por elefantes-africanos, além de bisões, javalis, porcos, tigres, cães selvagens, ursos, chacais, lobos, rinocerontes, bugios e macacos-aranha consumindo diferentes plantas que, em humanos, agem contra a disenteria, enteroparasitas, dor de estômago e mal-estar digestivo, e até mesmo que auxiliam no controle de parasitas no trato urinário. “É sempre essa ideia de relacionar, o animal se alimenta de uma espécie de planta que tem um uso medicinal em humanos”, conclui.
*Estagiário sob supervisão de Marcia Avanza e Cinderela Caldeira
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