“Série Energia”: Transição energética não substitui, apenas adiciona energia verde às fósseis

Especialistas argumentam que as fontes de energia limpa não estão eliminando as poluentes e fazem da transição uma “ilusão”

 22/11/2024 - Publicado há 2 meses
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Arte mostra em fundo verde, uma cidade com várias fontes de energia verde
Aumento da produção de energia limpa não diminuiu os níveis de produção de combustível fóssil, o que coloca em xeque a transição energética – Foto: Freepik
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No debate energético atual é comum afirmar que estamos vivenciando uma transição energética em que fontes renováveis e limpas substituiriam gradualmente os combustíveis fósseis. Jean-Baptiste Fressoz, historiador francês e autor de More and More and More, desafia essa visão simplista. Ele propõe que, em vez de substituição, estamos testemunhando uma adição de novas fontes ao mix energético existente, criando uma simbiose entre tecnologias antigas e novas. Assim, o conceito de transição energética esconde complexidades e desafios estruturais, tornando essa “substituição” menos linear do que se imagina.

Fressoz argumenta que a introdução de uma nova fonte não elimina necessariamente a anterior; frequentemente ela a complementa, intensificando o consumo energético global em vez de reduzi-lo. Um exemplo é o desenvolvimento da indústria do petróleo que, ao expandir-se, exigiu enormes quantidades de aço para construir oleodutos, plataformas e refinarias. A produção de aço demandava grandes quantidades de carvão e madeira para alimentar os altos-fornos e processos metalúrgicos. Em vez de reduzir o consumo desses recursos, a indústria petrolífera aumentou a demanda por eles, evidenciando a interdependência entre as fontes energéticas e expondo os limites da ideia de transição como mera substituição de tecnologias.

Extrapolando o pensamento de Fressoz para o contexto atual, consideremos o exemplo do carro elétrico. Embora promovido como uma alternativa limpa aos veículos movidos a combustíveis fósseis, ele demonstra como novas tecnologias podem tornar-se simbióticas com as antigas, em vez de substituí-las completamente. A fabricação de veículos elétricos requer a extração de minerais como lítio, cobalto e níquel, processos que demandam grande quantidade de energia frequentemente proveniente de combustíveis fósseis. Além disso, a infraestrutura de recarga e a produção de baterias e componentes eletrônicos envolve cadeias produtivas complexas que podem aumentar a pegada de carbono global. Assim, a produção e o uso em massa de carros elétricos podem não resultar em uma diminuição significativa das emissões de gases de efeito estufa, mas sim em uma reconfiguração das demandas energéticas que continuam a sustentar a exploração de combustíveis fósseis.

Vaclav Smil, um cientista e analista político checo-canadense e outro estudioso do tema, complementa essa visão ao destacar que transições energéticas históricas são lentas e não necessariamente levam à substituição das fontes antigas. Ao entender a transição energética como um processo de acumulação e não de substituição questionamos a eficácia das políticas atuais, que frequentemente falham em enfrentar as complexas interações entre diferentes fontes. Essa perspectiva nos convida a debater a real eficácia das soluções tecnológicas propostas sem uma reflexão profunda sobre os padrões de consumo e as estruturas econômicas subjacentes.

Sem um redirecionamento profundo das estruturas econômicas e dos padrões de consumo a “transição energética” pode ser uma ilusão, perpetuando a exploração de combustíveis fósseis e agravando os desafios ambientais. É necessário reconhecer a complexidade do sistema energético e a interdependência entre suas partes. Apenas adicionar tecnologias “verdes” ao sistema existente não será suficiente. Mudanças estruturais, como a redução do consumo excessivo e a reestruturação das cadeias produtivas, são fundamentais para alcançar uma verdadeira diminuição na dependência de combustíveis fósseis.

Sem essa compreensão, corremos o risco de repetir erros do passado, onde soluções aparentes mascaram problemas estruturais, adiando as ações necessárias para enfrentar desafios ambientais que se agravam a cada dia.

A Série Energia tem apresentação do professor Fernando de Lima Caneppele (FZEA), que produziu este episódio com Murilo Miceno Frigo, discente de doutorado e professor do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS). A coprodução é de Ferraz Junior e edição da Rádio USP Ribeirão. Você pode sintonizar a Rádio USP Ribeirão Preto em FM 107,9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo no celular para Android e iOS.


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