A digitalização da ópera de Lycia de Biase Bidart mantém vivo o legado da compositora - Fotomontagem: Jornal da USP - Fotos: Reprodução/Acervo da Biblioteca da ECA, Arquivo Familiar/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0 e Reprodução
Acaba de ser disponibilizada a versão digitalizada da partitura da ópera A Noiva do Mar, da compositora, pianista e maestrina capixaba Lycia de Biase Bidart (1910-1991), uma das mais importantes musicistas brasileiras do século 20. A partitura original faz parte do acervo da biblioteca da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP desde 1989, quando a compositora doou à Universidade toda a sua obra musical, formada por cerca de 400 composições para diferentes instrumentos. A ópera será apresentada – provavelmente pela primeira vez – nos dias 10, 11 e 12 de novembro no Theatro Municipal de São Paulo. Os ingressos já estão esgotados.
A digitalização da obra foi feita por uma equipe de quatro pesquisadores, também músicos: Éder Augusto, Janaina Avanzo, Guilherme Baldovino e Diego Maurílio. Durante três anos, os quatro músicos se reuniram com o intuito de divulgar a obra de Lycia. O grupo realizou a transcrição, edição e revisão dos manuscritos originais da ópera em uma versão reduzida para piano e vozes.
“Em 2019, nós quatro cantávamos juntos em um madrigal chamado Le Nuove Musiche. Apesar de termos todos estudado no Departamento de Música da ECA, não fomos todos contemporâneos, mas nessa época a gente conversava bastante sobre a possibilidade de realizar mais projetos musicais juntos, e um deles era justamente a montagem da ópera da Lycia”, explica Maurilio, que é professor de canto e músico graduado pela ECA.
O trabalho começou em 2019, quando os músicos se reuniram a fim de pensar um projeto artístico para ser executado no ano seguinte e Avanzo sugeriu a montagem da ópera A Noiva do Mar. “À época o nosso plano era fazer uma versão pocket da ópera, que é como a gente se refere à montagem de trechos escolhidos de uma determinada peça. No nosso caso, seriam aqueles trechos que funcionariam bem se executados por quatro cantores (soprano, mezzo-soprano, tenor e baixo) e um pianista”, relata Maurilio.
O músico, professor e pesquisadora Diego Maurilio - Foto: Reprodução
Mas já na primeira consulta, conta Maurilio, os músicos tiveram que improvisar. Não havia uma versão digitalizada dos manuscritos, e eles sequer estavam disponíveis para retirada da biblioteca da ECA. A solução inicial foi fotografar os documentos da redução para piano e estudar a partitura a partir disso.
No final de 2019, o grupo inscreveu o projeto de montagem da ópera no Rumos Itaú Cultural 2019-2020, edital que seleciona projetos e criações relacionados à arte e cultura brasileiras, e foi contemplado. “Foi em dezembro de 2020, quando soubemos da aprovação, que o trabalho de digitalização e transcrição se tornou a entrega principal em acordo com a equipe do Rumos”, conta o músico.
“Naquele momento já estávamos em pandemia, com todas as restrições possíveis a apresentações como a que propusemos, mas houve o entendimento da parte do Rumos de que era muito relevante tornar acessível a partitura de uma ópera brasileira composta por uma mulher”, continua.
Os pesquisadores escrevem que esperam que “a publicação desta redução para piano da ópera funcione como um registro documental e como um mecanismo facilitador de acesso à obra da compositora”, visto que não existem registros de que A Noiva do Mar tenha sido apresentada ou publicada ao longo da história.
O trabalho foi desenvolvido em diferentes etapas de produção, começando pela digitalização através do Sibelius, software de transcrição de partituras. Inicialmente, os pesquisadores transferiram todas as notas, dinâmicas, articulações e textos presentes na obra para o programa.
“Neste momento já estávamos em pandemia, com todas as restrições possíveis a apresentações como a que propusemos, mas houve o entendimento de que era muito relevante tornar acessível a partitura de uma ópera brasileira composta por uma mulher”, continua.
Os pesquisadores escrevem que esperam que “a publicação desta redução para piano da ópera funcione como um registro documental e como um mecanismo facilitador de acesso à obra da compositora”, visto que não existem registros de que A Noiva do Mar teria sido apresentada ou publicada ao longo da história.
O trabalho foi desenvolvido em diferentes etapas de produção, começando pela digitalização através do Sibelius, software de transcrição de partituras. Inicialmente, os pesquisadores transferiram todas as notas, dinâmicas, articulações e textos presentes na obra para o programa.
Maurilio conta que a transcrição facilita a leitura da partitura e, consequentemente, os estudos sobre a obra e a dinâmica de ensaio dos músicos. “É mais um incentivo à execução da música de Lycia, o que provavelmente era o seu objetivo ao doar as partituras à biblioteca da ECA”, comenta.
O músico e professor destaca que, nesse trabalho, a responsabilidade de transcrever a partitura foi a novidade, considerando a importância de ser fiel à composição de Lycia e de pensar as necessidades de futuros estudiosos da obra da maestrina. “Nossa preocupação não era apenas fazer um documento mais legível, mas principalmente promover a difusão da ópera, dando mais alguns passos na direção sonhada pela Lycia ao levar pessoalmente essa e outras partituras à biblioteca da ECA ainda em vida, e não deixá-las num arquivo familiar – como muitas partituras de música brasileira ainda permanecem”, conta.
Em seguida, o grupo realizou edições e correções. As decisões tiveram como base a escrita musical moderna e estão indicadas como notas no arquivo final da ópera. “Quem trabalha com manuscritos de compositores já falecidos sabe que nem sempre é fácil garantir o que está escrito nota por nota, ou mesmo qual a intenção do compositor em trechos em que a notação foge ao que é mais comumente utilizado”, ressalta Maurilio.
A partitura, então, foi organizada. O posicionamento de compassos, as quebras de sistemas, a paginação, a fonte musical, o tamanho do texto e os símbolos musicais foram ajustados pelos pesquisadores visando facilitar a leitura e a execução da ópera. Por fim, todo o trabalho foi revisado a fim de corrigir possíveis erros.
Partitura digitalizada de A Noiva do Mar - Foto: Reprodução
A ópera e a autora
Lycia de Biase Bidart nasceu em 1910, em Vitória, capital do Espírito Santo. Aos 7 anos de idade, iniciou os estudos musicais e, aos 18, se mudou para o Rio de Janeiro, onde estudou harmonia e composição. Lá, estreou com a obra para soprano e piano/órgão Ave Maria (1927).
A Noiva do Mar foi composta pela maestrina em 1939, inspirada pelo conto A Noiva do Golfinho, de Xavier Marques. Na ópera, Marina é uma órfã que vive na ilha de Tinharé, no litoral da Bahia, e passa seus dias observando o mar à espera do “marinheiro prometido”. Durante um sonho, Marina vê um homem chegar em um navio prateado puxado por golfinhos feitos de ouro, pedindo-a em casamento.
Acreditando ser uma premonição, Marina desce o morro e avista o marinheiro. A jovem passa a visitá-lo diariamente próxima ao mar e marca a data do casamento. Os moradores da região, no entanto, nunca haviam vislumbrado o homem. Ainda assim, comparecem ao matrimônio no dia marcado. No entanto, como esperado, o noivo não aparece. Ainda assim, Marina insiste para que todos clamem pela presença do marinheiro em um coro de “ele aí vem, ele aí vem”. O céu se fecha inesperadamente e um temporal se inicia. Marina, em meio à tempestade, corre em direção ao mar e desaparece nas águas.
Para mim, Lycia é uma artista que não desistiu de ter sua obra conhecida, e que tomou o cuidado de deixá-la disponível, acessível, para além do seu tempo de vida”, comenta Maurilio. “Isso é um jeito de permanecer viva e de contar que, assim como ela, outras compositoras mulheres sempre existiram. E muitas vezes a gente nem se pergunta quantas e quem elas foram.”
Diego Maurilio
Para Maurilio, o reconhecimento dessas profissionais da música vem crescendo, sobretudo por ação das próprias mulheres. Nesse caso, além da proposta feita pela soprano Janaina Avanzo, a atuação de outras mulheres foi fundamental para desenvolver o projeto.
Início da ópera de Lycia Bidart em versão digitalizada - Foto: Reprodução
“Quem viabilizou o nosso contato com a família da Lycia foi a Nicole Manzoni Garcia, o que nos permitiu finalmente ter a autorização necessária para o avanço deste trabalho. Quem nos atendeu na biblioteca da ECA e digitalizou os manuscritos com o próprio celular, durante o período de maior restrição da pandemia de covid-19, foi Marina Macambyra, bibliotecária da ECA – importante dizer que isso foi essencial para a pesquisa não parar”, destaca Maurilio.
Para o músico, o reconhecimento do trabalho de Lycia existe e é fomentado “principalmente pela curiosidade e empenho de outras musicistas do nosso tempo, que se perguntam quais foram as que vieram antes delas, e abriram caminho para que elas estejam aqui hoje. Mas esta precisa ser uma curiosidade de todos nós”. “Esse repertório de óperas compostas por mulheres existiu, existe e continuará existindo. Cabe a nós difundi-lo, pela pesquisa e pela performance, para que seja reconhecido.”
Confira aqui a versão MIDI da obra: https://www.youtube.com/watch?v=BxSulyiKjI0
Mais informações sobre A Noiva do Mar e a obra de Lycia de Biase Bidart estão disponíveis no site do projeto. A versão digitalizada da ópera está disponível para download.
* Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro
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