Durante décadas, o ex-consultor de empresas Sinésio de Siqueira Filho colecionou documentos sobre a guerra da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o Paraguai (1864-1870). Às vésperas do aniversário de 160 anos desse que é o maior conflito armado da América Latina, Siqueira Filho vendeu o arquivo visando à sua conservação. A coleção foi adquirida por um anônimo e doada à USP. Em outubro, os milhares de documentos chegaram à Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP. Desse total, 14 títulos compõem a exposição Guerra do Paraguay na BBM, em cartaz até 15 de dezembro na BBM. A mostra foi aberta durante o seminário A Bacia do Prata como Protagonista Histórico, organizado pelo professor Rodrigo Goyena Soares, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – curador da exposição -, e realizado no dia 21 de outubro passado.
“Com mais de 4 mil títulos, incluindo livros e documentos raríssimos sobre o tema, a coleção é a maior doada para a biblioteca desde a chegada do acervo de Guita e José Mindlin”, afirma o professor Alexandre Saes, diretor da BBM. “A coleção Sinésio de Siqueira Filho, ao tratar de evento tão relevante para a história do Brasil, e ser composta de obras raras e especiais, era de enorme interesse para a instituição e para a própria Universidade de São Paulo.” Em meio a relatórios históricos e diplomáticos, também se destacam diários, memórias de viagens e obras literárias, que ampliam as perspectivas para os estudos do tema.
Os materiais enriqueceram o acervo da BBM, abrindo um leque de possíveis pesquisas e colocando São Paulo na rota obrigatória para pesquisadores internacionais do conflito. “Não tenho dúvida de que, nos anos a vir, surgirão dissertações e teses diretamente ancoradas nessa coleção”, afirma o professor Rodrigo Goyena. “Não vejo melhor lugar em São Paulo para uma doação desse porte do que a BBM, um espaço de leitura incomum por sua infraestrutura e seu pessoal.”
A guerra na região da Cisplatina ocorreu entre 12 de outubro de 1864 e 1º de março de 1870, quando os três países atacaram o Paraguai de Solano López. É um tema pesquisado por Goyena como docente de História Política da FFLCH, em seu estudo sobre a perspectiva global da bacia do Prata no século 19, passando pela história dos veteranos da guerra em arquivos brasileiros, argentinos e uruguaios.
“É um bom passo para criar uma rede de pesquisadores platinos – e não apenas argentinos, brasileiros, paraguaios ou uruguaios”, afirma Goyena ao Jornal da USP. Segundo ele, a chegada do acervo de Sinésio de Siqueira Filho é uma oportunidade de reinterpretar os embates platinos no século 19 a partir de livros, folhetos, periódicos e álbuns publicados em diferentes países na época do conflito.
A guerra eclodiu devido ao interesse econômico dos governos vizinhos no controle da bacia do rio da Prata. Para Goyena, a formação do Brasil como Estado nacional é indissociável da sua relação com essa região. “Do ponto de vista do nosso fazer historiográfico, parece-me que ainda estamos muito enclausurados nas nossas historiografias nacionais, pensando nos nossos problemas internos”, afirmou o professor na abertura do seminário. “Justamente desde quando esses Estados nacionais se formaram, as nossas relações são totalmente umbilicais. Isso é um problema, especialmente, para o Brasil e para a historiografia brasileira, porque temos imensa dificuldade de assumir quão platinos somos.”
A exposição aborda esse momento histórico destacando quatro temas principais: Atlas da Guerra do Paraguai, Memórias da Guerra, Uniformes da Guerra e Imprensa na Guerra.
Assista nos links abaixo ao seminário A Bacia do Prata como Protagonista Histórico, realizado no dia 21 de outubro passado na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP.
O professor Goyena explicou ao Jornal da USP que o objetivo central da exposição é colocar a bacia do Prata em um palanque de protagonista histórico, o que muda a análise do conflito. “Não se trata mais de pensar a história diplomática da Argentina ou do Brasil, por exemplo, mas, antes, de entender o que torna essa região um universo, um mundo, uma região-mundo.” Esse esforço se inspira na obra do historiador francês Fernand Braudel (1902-1985), precursor da teoria dos sistemas-mundo na região do Mediterrâneo. “Para Braudel, foi aquele o centro de uma economia-mundo. Para mim, embora periférica, a região platina era uma região-mundo, com sua parcela de autonomia relativa. Em suma, é uma forma de recortar o mundo em regiões-mundo, menos esquematizada na polaridade centro-periferia.”
“A relevância está muito especialmente em percebermos quão parecidos somos, quão compartilhada foi nossa formação nacional e o quanto cada um deve ao outro. Somos vizinhos e o seremos ainda por alguns séculos”, afirma Goyena, referindo-se aos países da bacia do Prata. “Quem sabe um dia tomemos verdadeira consciência de que, como dizia Roque Sáenz Peña (presidente da Argentina entre 1910 e 1914), tudo nos une e nada nos separa. Talvez seminários como este e exposições como esta sejam alguns bons passos nesse sentido.”
A exposição A Guerra do Paraguay na BBM está em cartaz até 15 de dezembro, de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 18h30, na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP (Rua da Biblioteca, 21). Entrada grátis.
* Estagiária sob supervisão de Marcello Rollemberg e Roberto C. G. Castro