usp_o.php Revista USP 117 – Textos 1: Tradução transcultural – Jornal da USP

Tradução transcultural

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Antonio Risério

Anos atrás, fui surpreendido por uma informação de Ambrogio Donini, em sua História do Cristianismo – das Origens a Justiniano. Donini falava de erros de tradução que marcaram o texto bíblico na passagem do grego para o latim. Comentando a aparição do Menino Jesus, acomodado na manjedoura entre dois animais, a vaca e o burro do presépio tradicional, ele escreveu:

“Trata-se de um erro banal de tradução, do grego dos ‘Setenta’, de um passo do profeta menor Habacuc, III, 2, onde se pode ler que o futuro Salvador de Israel se teria dado a conhecer ‘entre duas épocas’, ou seja, no nosso tempo, nos nossos dias: para o genitivo plural de época e animal, a língua grega tem uma mesma palavra, e em latim a expressão foi traduzida por ‘in medio duorum animalium’, no meio de dois animais!”.

Se Donini está certo, é fascinante que um erro de tradução tenha produzido a forma do presépio, que se disseminou pelo mundo. Mas o que está em tela aqui é uma questão apenas linguística – e a nossa perspectiva, nesta conversa, será outra: a tradução encarada também sob luz antropológica.

Pensar a tradução no campo da antropologia não é nenhuma novidade. É certo que a tradução é uma operação linguística e, em consequência disso, toda teoria da tradução se move no espaço da reflexão linguística. Mas como a tradução é uma empreitada complexa, abrindo uma zona de fronteira entre línguas e culturas, não há como passar ao largo da antropologia, do terreno do estudo e do pensamento sobre os sistemas culturais da humanidade. Em Os Problemas Teóricos da Tradução, Georges Mounin já dizia que “todo tradutor que, de mil maneiras empíricas, não se tenha transformado em etnógrafo da comunidade cuja língua traduz, é um tradutor incompleto”. E se isso é válido para exercícios de tradução no interior de um mesmo complexo cultural, como o chamado “Ocidente”, por exemplo, torna-se especialmente válido para a tradução que se instala e opera num espaço entre culturas radicalmente diversas entre si. Dito isso, vamos a umas observações gerais.

Em primeiro lugar, penso que alguns rótulos devem ser definitivamente arquivados ou deletados, pela clara carga de preconceitos que carregam. Como a etiqueta “afro-brasileiro”, por exemplo, quando usada no campo estético-literário. Afinal, por que Brás Cubas é literatura brasileira e Contos Crioulos da Bahia é literatura afro-brasileira? Isso acontece porque definimos um mainstream. Porque temos uma forma e uma tradição literária canonizadas. E o que não se constrói dentro desse círculo privilegiado é visto como esgalho secundário, como fruto algo bastardo do fazer textual. Como antropólogo, não tenho como aceitar isso. De modo algum. E não é só como antropólogo. Se vou tratar Mestre Didi como literatura afro-brasileira, me sentirei automaticamente na obrigação moral e política de tratar Machado de Assis como literatura luso-brasileira.

Do mesmo modo, acredito que devemos rejeitar a etiqueta “etnopoesia”. É um rótulo redutor, etnocentrista, preconceituoso, da mesma família de etiquetas como “etnopsiquiatria”, por exemplo. Toma-se como centro da criação textual da humanidade o elenco de modelos greco-latinos e o que nasce fora desse círculo é então obrigado a carregar esse apêndice ou essa corcunda: o que Drummond, Mário Faustino ou João Cabral faz é poesia – e o que um índio do sistema social xinguano ou um poeta africano faz, em sua aldeia no meio da mata, é “etnopoesia”? Não dá: vamos parar com isso. Jerome Rothenberg empregava a expressão, mas com um sentido muito particular. Não me lembro se é em Technicians of the Sacred, ou num dos números da revista Alcheringa, que ele fala sobre o assunto. Para ele, o poeta é o outro, qualquer poeta é um outro, como no verso de Rimbaud. Em resumo, Rothenberg diz que o poeta é um outro diante da sociedade e da cultura dominantes. Ou seja: os poetas, em seu conjunto, são etnoi. Mas aí toda poesia é etnopoesia. Logo, toda poesia é poesia. Seja ela vista como design da linguagem ou como viagem ao desconhecido.

Em segundo lugar, quero assinalar, apenas en passant, que não acredito nessa conversa de “linguagem artística universal”. Penso, ao contrário, que só reconhecemos uma coisa ou outra como pertencente ao domínio do “estético” em consequência de um determinado “contrato social”, digamos assim, que aí define o seu lugar no mundo. Mas esse “contrato social” é válido somente nos limites de determinada época, lugar ou cultura. Certa vez, durante uma conversa sobre assuntos gerais, mostrei de repente a foto de um quadro de Mondrian a um kamayurá, perguntando: “O que você acha?”. Ele olhou, olhou, pensou – e perguntou de volta: “O que é isso?” Ou seja: passaram anos-luz ao largo do nosso conceito de “artes plásticas”. Anos e anos antes disso, o antropólogo Rafael Bastos, autor de A Musicológica Kamayurá, colocou um disco de Bach numa vitrola, ao lado de um grupo de índios. Segundo Rafael, eles não reconheceram aquilo como música. Em seguida, um deles, mexendo curiosamente no equipamento de som, alterou a rotação do disco. A música começou a soar distorcida e lentíssima. E aí, então, aqueles índios se interessaram, reconhecendo ali algum parentesco com seus próprios padrões sonoros. Em O Que É Música”, por sinal, J. Jota de Moraes faz a seguinte distinção: a música é um fenômeno universal, não uma “linguagem universal”.

E isso não acontece somente no espaço das relações entre culturas diferentes. Pode acontecer dentro de um mesmo sistema cultural, desde que um determinado objeto transgrida o estabelecido, escape ao “contrato social” vigente sobre a criação estética. Tome-se o caso do Lazarillo de Tormes, que abriu caminho para a constituição do romance. Quando foi publicado, no século XVI, ninguém o reconhecia como um texto ficcional. Não havia ali nada de maravilhoso, nenhum parentesco com o Amadís de Gaula e outras narrativas do gênero. Era uma obra “realista”. As pessoas não reconheciam nele uma criação da imaginação. O livro, obra inaugural de um novo gênero, foi visto então como o relato verdadeiro da vida verdadeira de um verdadeiro Lázaro de Tormes, autobiografia de um pregonero de Toledo. O novo campo ficcional ainda não tinha sido definido e demarcado. Ainda não existia no âmbito do “contrato social” então em vigor. Já no século seguinte, a situação seria outra. A “diferença” fora já incorporada ao “contrato social” – e assim as pessoas souberam como lidar com as Novelas Exemplares de Cervantes.

Em terceiro lugar, vamos reconhecer que toda tradução é realmente um problema. Na verdade, se aceitamos a lição neokantiana de que cada sistema linguístico encerra uma determinada weltanschauung, devemos admitir, como corolário, que, teoricamente, a tradução é uma prática impossível. Seria impossível reduzir um sistema linguístico a outro. E, já que não falamos todos a mesma língua, nos restaria uma incomunicabilidade intransponível, a menos que a humanidade inteira se fizesse multilíngue. Mas podemos ver isso também de outro ponto de vista. Por exemplo: do ponto de vista bíblico. E aqui devemos voltar nossos olhos para a célebre Torre de Babel. Para o mito judaico da origem da multiplicidade linguística da humanidade. Diz a Bíblia que os seres humanos falavam todos uma só língua – e assim se acertaram para fazer uma obra para concorrer com Deus. Deus se sentiu ameaçado e puniu a afronta fazendo com que cada grupo passasse a falar uma língua diferente. A diversidade linguística da humanidade é uma maldição divina. E, dessa perspectiva, nós podemos definir a tradução como uma espécie de heresia bem-sucedida. Mas nenhuma heresia – e esta palavra vem do grego, hairesis, significando “escolha” – é um caminho fácil. Vou fazer aqui, mesmo que brevemente, um rol de algumas dificuldades que aparecem à frente do tradutor, sem me preocupar com questões teóricas de precisão terminológica. Como já ensinava o velho Saussure, no Curso de Linguística Geral, o importante é definir as coisas – e não os próprios termos.

Vou começar por dificuldades linguísticas propriamente ditas. Dificuldades básicas – e, não raro, insuperáveis. Por exemplo: se os esquimós têm mais de umas duas ou três dezenas de palavras para designar tipos de branco, como fazer? Eles chegaram a isso em resposta à sua circunstância ambiental. Rodeados de neve em seus iglus, foram distinguindo espécies e subespécies de branco. Provavelmente, considerariam primária uma obra visual que nos encanta, como o quadrado branco dentro do quadrado branco de Maliévich. Mas, enfim, isso é intraduzível. Temos de nos contentar com o nosso pobre branco – ou encher a tradução de notas de rodapé, explicando as coisas.

Um outro problema elementar está nas chamadas “expressões idiomáticas”. É complicado, também. E aqui podemos dar um exemplo do Manifest der Kommunistischen Partei, de Marx e Engels. Eu já era encantado com a abertura desse texto em português – e fiquei ainda muito mais encantado quando o li em alemão. Trata-se de um inesperado poema em prosa, que era uma das últimas palavras em literatura, naquela época. Marx, que era um grande escritor e um homem de vanguarda, e seu parceiro Engels, “pai-fundador” da sociologia urbana, sabiam o que estavam fazendo. Marx, por sinal, dizia uma coisa perfeita, que Flaubert poderia repetir: sou um escritor – e, como escritor, a forma é a minha propriedade. Mas vejam: Marx e Engels empregam, nesse poema em prosa, a expressão heiligen Hetzjagd. Na tradução para o português, lemos que a burguesia europeia articula uma “aliança sagrada” para perseguir e tentar destroçar o comunismo. Tudo bem – mas “aliança sagrad a” não traduz heiligen Hetzjagd. Nem de longe. Heiligen, ok, é o sagrado. Mas Hetzjagd, que eu saiba, é uma expressão inteiramente alemã. Significa caçada com cães. É uma imagem forte, esta, de um heiligen Hetzjad. E, de forma alguma, Hetzjagd, a “caçada com cães”, transparece numa palavra como “aliança”. Mas, até aqui, ainda estamos no mínimo. Haroldo de Campos, que tanto admirava a prosa de Marx, talvez achasse uma bela solução para heiligen Hetzjagd.

Às vezes, fico pensando que era em função de expressões desta espécie que T. S. Eliot dizia que aprender uma língua era assumir ou adquirir uma personalidade suplementar. Enriquecer-se pessoalmente. É interessante; por isso mesmo, observar como Gertrude Stein, nesse particular, vai na contramão de Eliot. Em The Autobiography of Alice B. Toklas, sua farsa textual narcísica, ela escreve (como se fosse sua companheira Alice):

“Quando encontrei Gertrude Stein pela primeira vez em Paris, fiquei surpresa de nunca ver um livro francês em sua mesa, embora houvesse muitos ingleses; não havia sequer jornais franceses. Mas você nunca lê em francês? – eu e muitas pessoas perguntávamos. Não, ela respondeu, veja que eu sinto com meus olhos e não faz diferença para mim a língua que ouço. Eu não ouço uma língua, eu ouço tons de voz e ritmos, mas com meus olhos vejo palavras e sentenças e para mim só existe uma língua, que é o inglês. Uma das coisas que me agradaram durante esses anos foi ficar rodeada por pessoas que não sabem inglês. Isso me deixou mais intensamente só com meus olhos e meu inglês. De outro modo, não sei se teria sido possível ter o inglês em total intimidade. E nenhum deles pôde ler uma palavra do que escrevi, a maioria nem sabia que eu escrevia. Não, eu gosto de viver no meio de muita gente e de ficar inteiramente só com o inglês e comigo mesma”.

Lamento dizer que não é verdade. Na epígrafe de Three Lives, encontramos uma citação de Jules Laforgue – em francês: “Donc je suis malheureux et ce n’est ni ma faute ni celle de la vie…”. Em todo caso, Gertrude me leva a Roland Barthes indigitando o “narcisismo monoglota” dos franceses, numa aula inaugural no Collège de France. Gertrude manifesta o narcisismo monoglota de uma ianque. No avesso disso, podemos encontrar o poeta latino Ennius, que foi centurião do Império Romano e dizia possuir três cérebros, pelo fato de falar três línguas. Nesse mesmo sentido, vale lembrar a afirmação concisa e categórica de Camões: “Quantas línguas fales, tantos homens és”.
Mas vamos em frente. Um problema bem difícil é quando as naturezas das línguas diferem. O inglês, por exemplo, tende a ser conciso, monossilábico. Isso gera problemas na tradução de poesia. Augusto de Campos, por exemplo, costuma resolver a questão do ritmo trazendo o padrão acentual inglês para o nosso verso de oito sílabas. E faz isso com um brilhantismo invejável. Mas não é simples. Vou falar um pouco do iorubá, que é uma língua aglutinante, como o tupi e o alemão. E é de uma plasticidade extraordinária. Acho que a gente pode dizer que o iorubá é a língua dúctil por excelência. Noël Baudin, na sua Grammaire Yoruba, observa corretamente que um número considerável de palavras compostas nessa língua são verdadeiras frases, onde vocábulos diferentes se fundem num sintagma de significação nova. Baudin exemplifica com a expressão foribale (“adorar”), amálgama de “fi” (pôr, colocar), “ori” (cabeça), “ba” (encontrar) e “ilê”, a terra. “Colocar-a-cabeça-de-encontro-ao-chão”.

Baudin se refere ainda ao fato de o iorubá apresentar fenômenos de “reunião de um certo número de ideias numa só e mesma palavra”. Um exemplo é a montagem de ìro (pensar), ìnu (dentro, interior) e pa… dà (mudar), para formar o sintagma ironupiwada, que é traduzível por “pensar em si mesmo a fim de mudar de conduta”. Então, isso nem pode ser considerado exatamente como uma palavra, no sentido estrito. Temos de falar, de um modo mais geral, em sintagma. Ulli Beier, em seu livro sobre a poesia iorubá, uma antologia de poemas tradicionais iorubanos, se deparou com esse problema linguístico, falando de substantivos ou adjetivos imensos, “monstruosos”, como otamokukunbioyin, que quer dizer “aquele que vai picando alguém como uma abelha”. E Beier então fala dessas construções verbais como elementos de frustração do trabalho do tradutor. Mas não é só. O iorubá, como o chinês e o vietnamita, é uma língua tonal. Na verdade, uma língua plástica, minimalista e tonal. Baudin lembra que mais da metade do vocabulário iorubano é composta de monossílabos. Como não é esse o caso do português, aqui o tradutor já se vê em apuros. Então você soma isso: um grande número de partículas monossilábicas numa língua aglutinante. Aí a coisa fica realmente muito complicada.

Entre outras características dessa língua, devemos falar também da duplicação. Diferentemente do “redobro” da gramática grega, que é uma repetição consonantal encontrável no perfeito, no mais-que-perfeito e no futuro perfeito de todos os modos verbais, a duplicação iorubana aparece como um mecanismo mais amplo de construção linguística, provocando alterações de classe nos sintagmas lexicais. Graças a esse artifício, verbos se tornam substantivos. Assim, peja é “pescar” – e pejapeja é “pescador”. Mas a duplicação verbal pode também gerar advérbios. Num oriki de Oiá Iansã, ouvimos iná wàràwàràIná é “fogo”; wàra é verbo, quer dizer “estar apressado, ter pressa” – mas, pela via da duplicação, vai dar no advérbio wàràwàrà, “velozmente”. A questão, para o tradutor, é que o artista pode tirar partido do efeito poético da duplicação, que diz respeito, principalmente, à melopeia. À música dos signos verbais. Ou, ainda, ao campo expressivo dos procedimentos rítmicos e fonéticos. E pode assumir um caráter “fisionômico”, para lembrar a expressão cara aos poetas concretistas, na medida em que o signo simbólico (a palavra) exibe ares de signo icônico.

Vejamos, enfim, o aspecto tonal. O iorubá possui três tons – alto, médio e baixo –, dotados de funcionalidade semântica. Um simples deslocamento de tom altera o significado da palavra. Não sou cantor e não sei falar jogando com esses tons. Mas vou exemplificar grosseiramente. A expressão wa, por exemplo. Em tom alto, significa “vir”; em tom médio, é “nós” e em tom baixo quer dizer “existir”. Há palavras que, com os deslocamentos de tom, podem chegar a ter até cinco sentidos. O tom é, portanto, um elemento de distinção semântica. Entre palavras e também, embora mais raramente, entre construções gramaticais. Então, os tons não se encontram rigidamente fixados e o intervalo entre eles é relativo. Costumo exemplificar citando a oralização, o canto-falado de Caetano Veloso, em sua gravação do poema “Pulsar”, de Augusto de Campos: os tons iorubanos aparecem mais ou menos daquele jeito, quase que em alternâncias de “quinta”. E é evidente que os poetas iorubanos jogam criativamente com os tons, com essas modulações fonossemânticas. Tanto em função do desenho sonoro do texto quanto na trama dos sentidos. Num canto ijalá colhido por Adeboye Babalola, há um em que o autor, Gbàdàmósí, diz que está se referindo a Ògún (um tom baixo seguido de um alto), que é o deus da guerra e da tecnologia – e não a ògùn (dois tons baixos), que significa “veneno”. Ou seja: o poeta joga entre a similaridade fonética e a dissimilaridade semântica dos vocábulos. O tradutor? O tradutor que se vire.

E agora podemos chegar ao problema do registro semiótico, por assim dizer. É que cada palavra tem a sua poesia. A poesia da palavra falada tem a sua estética, assim como a poesia da palavra cantada e a poesia da palavra escrita. E realmente é um problema insolúvel, quando o tradutor fixa a palavra falada ou a cantada no campo da escrita. O que acontece com a tradução da poesia falada, da oralidade em contexto performático? Um discurso-evento é transcrito num suporte, reificado e, posteriormente, traduzido. É claro que isso muda tudo – e é um tema sujeito a opiniões extremas. Há quem diga que o que conta mesmo é a performance. O texto emitido num rito social é indestacável da cena de sua atualização. Trazer o oral para os trilhos da escrita seria atitude falsificadora e reificacionista. Enfim, a diferença entre o texto oral e o escrito seria insuperável. Um linguista iorubano, Olabiyi Babalola Yai, fala de “oralitura”, dizendo que é preciso preparar o espaço intelectual para a emergência de uma nova poética, que recuse inclusive a falácia reificadora embutida na própria noção de “texto”. A performance, o improviso, a ocasião – isso não cabe na escrita. O escrito existe em repouso – o oral, em movimento. Para ser eficaz, depende da eloquência, da riqueza da emissão, da sugestividade, das pausas, da pulsação fonética, do ritmo. E a performance pode ser uma coisa altamente complexa, envolvendo palavra, cenário, música, dança, figurino.

Além de distinguir entre o oral e o escrito, temos de distinguir, na esfera da oralidade, entre a recitação e o canto. São semioses distintas. Joyce dizia que palavra cantada é palavra voando. Quando linha linguística e linha melódica se entrelaçam, a palavra adquire outra natureza. A altura, a intensidade, a modulação, o timbre imantam o verbo, de sorte que se pode falar de um outro modo de existência da palavra. Fixar esses textos falados ou cantados, encerrando-os no desenho estático da escrita, é certamente empobrecê-los. Mas não acho que seja destruí-los. Apesar das inevitáveis mutilações da tradução entre línguas e códigos, resta-nos ainda alguma fruição estética. E é cada vez maior, no mundo inteiro, o número de pessoas que tomam conhecimento de diversos espécimes de criações orais através da escrita. Muitos de nós conheceram assim os gregos, a lírica provençal, o oriki nagô. E isso nos tem enriquecido humana e culturalmente.

Mas passemos dos obstáculos linguísticos e semióticos para as dificuldades conceituais ou antropológicas, tanto em sentido amplo quanto em sentido estrito. Estudando a sociedade balinesa, Clifford Geertz se bateu com o problema de traduzir a expressão negara. É uma palavra que vem do sânscrito e é utilizada, nas línguas indonésias, para cobrir uma área semântica que abrange os conceitos de cidade, palácio, Estado, capital, reino e mesmo civilização (antiga, clássica). Ou seja: o vocábulo “Estado” não traduz corretamente o que os balineses designam com o termo negara. Em terreno mais próximo de nós, temos a expressão iorubana òrun. Os iorubanos distinguem entre o aiê (o mundo concreto das coisas perecíveis, onde vivemos) e o orum, que é um espaço sobrenatural abstrato, atópico. Mas, embora o conceito não seja assimilável ao céu-paraíso cristão, ele é geralmente traduzido assim, levando o leitor ao erro.

De todo modo, nos casos de negara e òrun, o que temos é uma dificuldade lexical, no sentido de que nos deparamos com conceitos que não encontram equivalentes exatos em nossa língua. Não existem, na língua portuguesa, palavras que deem conta das áreas semânticas recobertas por negara e orum – que possuam a mesma extensão referencial do termo sânscrito ou do iorubano. Mas, mesmo quando há uma coincidência referencial, uma convergência de superfícies conceituais, podemos continuar a ter problemas. Costumo exemplificar esse outro tipo de dificuldade onde ele aparece de forma bem óbvia: no terreno do léxico sexual dos povos. Nesse caso, o que está em jogo são as relações entre sociedade e sexualidade. Importa como a dimensão erótica da vida humana é encarada, como a sexualidade é praticada, em determinada cultura.

Aqui, costumo dar o exemplo da cultura tradicional havaiana, estudada por Marshall Sahlins em Ilhas de História. Quando o capitão Cook chegou ao arquipélago, no século XVIII, encontrou um mundo altamente erotizado. Tudo era sexo. E, em matéria de sexo, valia tudo. Era o pansexualismo havaiano, em meio a variados jogos eróticos e a uma didática da sexualidade, envolvendo o ensinamento de técnicas para fazer “a alegria das coxas”, no dizer dos próprios havaianos. Uma curiosidade, por sinal: em toda a Polinésia, o verbo “comer” tem o mesmo duplo sentido gastronômico-sexual de que antes eu só tivera notícia no português do Brasil e no tupi dos arawetés amazônicos.
E é claro que tudo isso se expressa na criação textual havaiana. A ponto de Sahlins não saber definir o que é uma canção havaiana de amor, por ser praticamente impossível definir o que não é: “Quase qualquer coisa lembra sexo para os havaianos”. Em meio a essa textualidade erótica, Sahlins se refere aos cantos genitais da aristocracia. São hinos em louvor de genitálias reais. O canto da rainha Lili’uokalani celebra seus genitais “alegres e travessos” – o canto do chefe Kamehameha fala de seus genitais com sabor de flor. E tudo isso cria problemas para a tradução. Porque nós temos basicamente duas linguagens para falar da organização genital humana: a científica e a vulgar. Ou seja: ficamos entre a terminologia ginecológica e o calão acanalhado. E nenhum dos dois dá conta do recado. É um problema cultural, que vem da repressão judaico-cristã à vida instintiva. Temos esse karma em nossas vidas. É verdade que, da década de 1960 para cá, as visões do corpo e da sexualidade, no Ocidente, passaram por uma transformação revolucionária. Mas infelizmente, no que diz respeito à tradução, as línguas não mudam quando mudam os costumes. E os cristãos continuam sem ter, no elenco de seus deuses, uma mulher como Afrodite, especialista nas artes do amor, capaz de, com o “doce desejo”, emaranhar as fronteiras cósmicas. Nem um deus como Zeus, raptando o jovem Ganimedes para possuí-lo no meio de um voo em direção ao Olimpo.

Xenófanes censurava Homero e Hesíodo, dizendo que eles tinham povoado o Olimpo com deuses imorais. E também os deuses nagôs são “imorais”. São deuses fálicos, deusas voluptuosas, protagonistas de façanhas sexuais, exemplos de exuberância erótica. E seus cantos celebram abertamente a sensualidade. O sexo. “Xangô, falo de elefante, que boceta fraca não aguenta.” Iemanjá, por sua vez, é a deusa que tem “pelo espesso na boceta/ boceta seca no sono/ como inhame ressequido.” E essa visão da genitália no espaço do sagrado pode conduzir, evidentemente, a adjetivações inusitadas para nós. Costumo sempre citar o exemplo da expressão obô mejá, que aparece num orikiObô é a palavra nagô para “boceta”. Mejá, por sua vez, significa inteligente, sábia, certeira. “Boceta sábia” ou “boceta perspicaz”, pode-se traduzir. O que nos surpreende. Por conta disso, aliás, cheguei a escrever um pequeno poema, que diz o seguinte:

“uma boceta sábia
é como a cidade eterna

é carne que se pensa
é fome que se cria

uma boceta sábia
não se faz num dia”.

Mas, de um modo geral, devo dizer que traduzir uma expressão genital iorubana por um palavrão, ou recorrendo a termos técnicos, nunca me parece adequado. A tradução pode ficar acanalhada. E, de outra parte, não consigo imaginar a fogosa Iansã em termos ginecológicos. A alternativa entre caralho/boceta e pênis/vagina traz uma inadequação óbvia. Nenhum desses termos responde com exatidão ao sentido original que reconheço nos orikis iorubanos. Vamos imaginar uma cena. Um poeta-cantor iorubano, diante da comunidade reunida na praça, inicia uma canção, na qual saudará os deuses, com os seguintes versos:

“Mo júbà okó tó dorí kodò ti ò ro
Mo ribà ele tó dorí kodò tó ò san”

Ou, numa tradução literal: “Eu saúdo o pênis que se inclina sem pingar/ Eu saúdo a vagina que se abre sem fluir”. Não dá: uma cena dessas não aconteceria jamais numa praça de nossas cidades. Ninguém entre nós se dirigiria respeitosamente aos deuses, numa praça pública, à maneira dos santeiros cubanos que tratam Oxum como afaradí iyá – isto é, a “Mãe Puta”.

Em resumo, penso que é isso. Para finalizar, digamos que é impossível traduzir um poema – e é impossível deixar de fazê-lo. Salvo exceções mais do que raras, nunca chegaremos à beleza do original. Lemos esta lição no Quixote de Cervantes: os que quiserem traduzir para os seus idiomas livros de versos, devem saber que “por muito cuidado que nisso ponham, e por mais habilidade que mostrem, nunca hão de igualar o que eles valem no original”. O que nos resta, então, é fazer o máximo para empobrecer o mínimo.

 

POST-SCRIPTUM

Depois que encerrei esta “falação”, como diria Oswald, vieram perguntas da plateia. Já no final, o escritor-economista Eduardo Giannetti indagou: “Você acha que existem traduções superiores ao original?”. Pensando em exceções ainda mais raras e no que Ezra Pound pensava de Edward Fitzgerald recriando Omar Khayyam, respondi afirmativamente, fazendo referência, em especial, às “transcriações” de Haroldo de Campos. Tempos depois, numa conversa na casa de Giannetti, em São Paulo, lembrei, a propósito, da recriação poundiana de uma alba medieval. Para quem não sabe, alba (aurora) é um gênero da poesia occitânica. São canções cantadas pelo gaita (um vigia) para avisar ao drutz (amante) que é hora de deixar o quarto da mulher casada com quem está fazendo amor, antes que seja flagrado pelas pessoas que estão começando a despertar, àquela hora, no castelo do senhor traído. Pois bem. Pound pegou uma alba anônima (“Quan lo rossinhols escria/ ab sa par la nueg e.l dia…”/ “When the nightingale to his mate/ sings day long and night late…”), deu-lhe uma sonoridade inesquecível (a arte da melopeia) e, no final, violou o texto provençal, substituindo o amante (drutz) por um canalha (rascal). E o resultado é superior ao original: “Up, thou rascal, rise!/ I see the white light/ And the night/ Flies…”. Existe uma tradução de Mário Faustino para o português, mas é tão insatisfatória – digamos que tecnicamente correta, mas poeticamente lamentável (“Levanta, patife, sus!”) – que prefiro não citá-la. E esta violação do texto original me faz lembrar uma observação maravilhosa de Octavio Paz (não tenho certeza se feita em Los Hijos del Limo). Falando das posturas tão distintas de Eliot e Pound diante do passado textual da humanidade, Paz comenta: Eliot parece estar salvando relíquias de um naufrágio – Pound sugere um saqueador de túmulos. E ambos são capazes de chegar, por caminhos completamente distintos, ao coração da linguagem da poesia.

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ANTONIO RISÉRIO é poeta, antropólogo e romancista. É autor de, entre outros, Que Você É Esse? (Record).