usp_o.php Revista USP 118 – Dossiê 3: Novas considerações sobre “O albatroz e o chinês” – Jornal da USP

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Novas considerações sobre
O albatroz e o chinês

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Celso Lafer

resumo

O artigo destaca a importância de O albatroz e o chinês, o último livro que Antonio Candido organizou e publicou, realçando que se insere com alta qualidade em seu percurso de crítico literário e pensador da cultura.
Com esse objetivo, explora os nexos memória/análise que caracterizam tanto os ensaios mais longos da segunda parte do livro – que tratam de obras da literatura portuguesa e da presença cultural em nosso país de figuras da intelectualidade portuguesa –, quanto os ensaios mais curtos da terceira parte – que mesclam textos de testemunho e análises literárias e culturais.

Palavras-chave: Antonio Candido; O albatroz e o chinês; literatura portu-guesa; intelectualidade portuguesa; memorialismo pessoal.

abstract

This article highlights the importance of O albatroz e o chinês, Antonio Candido’s last book, and it stresses it is part of his journey as a high-level literary critic and culture thinker. It explores the linkages between memory and analysis which characterize both the longer essays of the second part of the book − which address Portuguese literary works and the cultural presence of Portuguese intellectual figures in our country − and the shorter essays of the third part, which blend testimonials and literary and cultural analyses.

Keywords: Antonio Candido; O albatroz e o chinês; Portuguese literature; Portuguese intelectual environment; personal memoirs.

O albatroz e o chinês é o último livro que Antonio Candido organizou e publicou. Integra, em sua obra, a grande e admirável família dos muitos volumes que em vida concebeu, reunindo textos dotados de afinidades temáticas, seja em seu conjunto, seja em suas partes. A primeira edição é de 2004. A segunda, e definitiva, que é de 2007, espessou-se com o acréscimo de seis ensaios que se distribuem nas três partes em que o livro foi por ele estruturado(1).
Os ensaios da primeira parte desvendam com argúcia analítica o esclarecedor alcance do entrecruzamento cultural, a que a literatura comparada dá privilegiado acesso. Deles já tive a oportunidade de ocupar-me, sublinhando como se inserem – com inequívoca relevância e sempre renovada qualidade – no percurso de uma admirável obra de crítico literário e pensador da cultura.
Já os ensaios da segunda e da terceira parte têm características distintas, tanto nos textos mais longos (os da segunda parte) quanto nos mais curtos (os da terceira parte). Entremeiam análises de obras assim como escritos de feitio mais pessoal que podem ser qualificados como textos de testemunho, reveladores do papel da memória afetiva e intelectual na fatura de O albatroz e o chinês. A memória é assim um dos estímulos da prosa de Antonio Candido – um escritor não circunscrito ao ofício da crítica literária –, que foi se adensando no correr dos anos.
Nessa linha do adensamento, vale a observação de Pio Lourenço Corrêa, o “Tio Pio” de Mário de Andrade, que mereceu dois textos da terceira parte. Com efeito, em carta a Mário, de 5 de janeiro de 1942, escreveu: “As memórias são assim mesmo – crescem sempre durante a vida. Não persistem apenas – crescem” (Corrêa & Andrade, 2004, p. 362).
A memória é a sede da alma, observa Santo Agostinho nas Confissões (Augustine, 1952), e o enlace análise/memória dos textos da segunda e da terceira parte de O albatroz e o chinês oferece acesso à maneira de ser e de ver de Antonio Candido, identificadoras de seu tempo existencial e de suas circunstâncias.
O albatroz e o chinês é um grande livro de Antonio Candido, pelo qual, aliás, ele tinha especial predileção. Recebeu, no entanto, menos atenção da crítica do que outros que se inserem na mesma linhagem. Sua exemplaridade passa pelos textos da segunda e da terceira parte que ainda não tive a oportunidade de destacar. É o que farei a seguir para celebrar os cem anos que ele não chegou a completar entre nós, na esteira dos que, com admiração e afetuosa amizade, escrevi, como seu antigo e sempre aluno, sobre sua obra e pessoa – o primeiro dos quais integra Esboço de figura, volume que organizei, em 1979, dedicado a homenagear seus 60 anos.

II

Os textos da segunda parte, em especial “Dos livros às pessoas” e “Portugueses no Brasil”, discutem e analisam a presença que tiveram em nosso país, e para a própria memória da formação de Antonio Candido, figuras intelectuais e personalidades culturais de Portugal. Também incluem reflexões sobre obras da literatura portuguesa que sempre o interessaram e sua recepção no Brasil, como é o caso de Eça de Queirós (“Eça de Queirós – passado e presente” e “Ironia e latência”), e, de maneira menos conhecida, Camilo Castelo Branco (“Duas máscaras”). São ensaios que, em sua especificidade, inserem-se no âmbito mais geral de sua constante dedicação ao romance como gênero literário.
Permito-me, pelo viés memorialístico, registrar que os dois primeiros textos da segunda parte têm para mim uma dimensão pessoal própria. São emblemáticos de uma amizade de décadas, já que seu teor foi recorrente em nossas conversas no decorrer dos anos. Isso se explica pois, se fui aluno de Antonio Candido de teoria literária, cursei igualmente em meu estudo de Letras, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, as matérias de literatura portuguesa. Foi o que me estimulou a escrever O judeu em Gil Vicente (1963), cuja redação ele acompanhou e prefaciou generosamente, e o ensaio “O problema dos valores n’Os Lusíadas” (1965), o qual também, enquanto o elaborava, com ele discuti longamente. Foi esse o início de nossas conversas sobre a cultura portuguesa e minha familiaridade com muitas de suas obras e personalidades, algumas das quais conheci pessoalmente, abordadas em O albatroz e o chinês.
Entre as personalidades que conheci, lembro seu amigo Jorge de Sena, cuja notável trajetória intelectual evoca em “Portugueses no Brasil” (pp. 118-21). Em maio de 1962, Antonio Candido organizou, em seu apartamento da Rua Frei Caneca, um jantar com Jorge de Sena, para o qual me convidou. Assisti a um convergente diálogo dos dois sobre o teor do prefácio de Antonio Candido à segunda edição, de 1961, de O método crítico de Sílvio Romero – sua tese de 1945 do concurso de literatura brasileira –, em cuja revisão das provas colaborei. Candido assinala no prefácio que o ponto de partida de suas posições críticas, já presentes no livro, ia na direção de uma crítica integrativa (cf. Candido, 2006c, pp. 14-5), pois não obedecia ao critério exclusivo da crítica sociológica. É o que cabe realçar, pois foi o que praticou em toda a sua trajetória. A ocasião me deu oportunidade de ler, com o respaldo de Antonio Candido, trechos em elaboração de O judeu em Gil Vicente, que contaram com a exigente aprovação do grande mestre português, grande conhecedor do período, que me impressionou pela vigorosa amplitude de seu saber. Candido sintetizou o encontro na dedicatória que me fez no exemplar de Formação da literatura brasileira, ao inscrever que fora uma “noite de alegre companhia e profícua leitura”.
No relato da convivência com intelectuais portugueses em Paris no período em que lecionou na Sorbonne, Candido fala de António José Saraiva, que posteriormente, já vivendo num Portugal redemocratizado, deu cursos na USP e na Unicamp. Realça sua inteligência e a originalidade de suas ideias e, como bom narrador, exemplifica que nem sempre observava o devido savoir-faire. Também conheci Saraiva, ainda que rapidamente, no Brasil, por seu intermédio, o que muito apreciei como admirador – como sabia Antonio Candido – de sua obra de notável historiador da cultura portuguesa e destacado intérprete de Gil Vicente, Camões e de tantas figuras da literatura portuguesa discutidas na segunda parte de O albatroz e o chinês.
Meu gosto por essa área não se cinge a Gil Vicente e a Camões. Apesar da diferença de gerações, e de suas distintas sensibilidades, também fui, como Antonio Candido, um leitor de Alexandre Herculano, dos escritores da geração de 1870 – Eça de Queirós, Antero de Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e seus seguidores e, muito particularmente, em meu caso, António Sérgio. Daí a familiaridade e apreciação compartilhada pelo que é tratado nos dois primeiros textos da segunda parte de O albatroz e o chinês.
Um registro da natureza das conversas que tivemos no correr dos anos encontra-se num livro de 2007 de Guilherme d’Oliveira Martins – ensaísta português de larga visada, docente universitário e destacado homem público lusitano, herdeiro intelectual, até por sensibilidade de família, da geração de 1870.
Combinei, levando isso em conta, por ocasião de uma vinda a São Paulo de meu amigo Guilherme, um almoço com Antonio Candido, cuja obra ele conhecia. O almoço – no restaurante Tattini, de que dona Gilda e ele gostavam, e que era próximo do apartamento da Rua Joaquim Eugênio de Lima – ensejou uma grande e larga conversa, relatada por Guilherme em “Com Antonio Candido em São Paulo”(2), que naturalmente começou com a menção ao legado da geração de 1870.
A largada foi uma divertida discussão – exemplo da graça e da verve da conversa de Antonio Candido na intimidade – sobre as confusões das bibliotecas no Brasil entre o Antonio Candido português, o Ribeiro da Costa – a “águia do Marão”, grande orador e parlamentar lusitano, amigo de Eça de Queirós e Oliveira Martins, tio-avô de Guilherme –, e o nosso, de Mello e Souza, que também como o português simplificou seu nome literário. Daí as confusões, no início da vida intelectual de Antonio Candido, fruto de bibliotecários incautos que ora lhe davam uma idade de Matusalém, por ter nascido em 1850, ora consideravam suas obras como póstumas, por ter morrido em 1922.
Um dos pontos altos da conversa girou em torno de Oliveira Martins, historiador, cuja firmeza crítica na análise da política e da sociedade portuguesa Antonio Candido prezava, nela identificando um estímulo para pensar as transformações da sociedade brasileira. Oliveira Martins “prendia o leitor, não apenas pelo conteúdo das ideias, mas pela eficiência da escrita” (p. 103) e teve seu impacto em A América Latina, de 1905, de Manoel Bonfim – um livro ao qual deu considerável destaque em seu apreço pelos tipos de radicalismo no ensaio “Os brasileiros e a nossa América”(3).
No encontro, falou-se de Portugal contemporâneo às Tábuas de cronologia e Guilherme escreveu que Antonio Candido “foi a primeira pessoa que encontrei com quem pude confrontar as minhas impressões distantes sobre o contato apaixonante com essas tabelas” (Martins, 2007, p. 216). Trata-se de uma observação de peso por parte de um grande scholar de Oliveira Martins e mais um exemplo representativo da erudição em surdina de Antonio Candido, que permeia O albatroz e o chinês.
Na conversa com Guilherme, também mereceu destaque Antero de Quental. Cabe lembrá-lo pois Antonio Candido teve “fascinação duradoura” por ele e chegou a projetar “durante muito tempo um estudo sobre os Sonetos que morreu nas anotações” (p. 102). Antero, pelas características de sua personalidade generosa e pela qualidade de sua obra de poeta e pensador, foi, como dizia Candido, um “santo” de sua devoção juvenil, sobre o qual escreveu, em 1943, instigado por conferências de Fidelino de Figueiredo, dois rodapés de crítica na então Folha da Manhã – os de 21 e 28 de janeiro –, com os reveladores títulos “Santo Antero I” e “Santo Antero II”.
Quase no fim, a conversa passou pelo comandante João Sarmento Pimentel, figura exponencial da oposição portuguesa no Brasil a Salazar, autor da narrativa de qualidade Memórias do capitão. Com o comandante Pimentel, Antonio Candido conviveu, participando solidariamente, como era do feitio de sua militância não partidária (Galvão, 1998), das atividades de combate crítico ao regime ditatorial português, como relata em “Portugueses no Brasil” (pp. 112-3). Nesse texto, menciona que, num almoço na casa do comandante, conheceu Mário Soares, então exilado em Paris. Sobre Sarmento Pimentel e suas atividades, Antonio Candido conversou muitas vezes comigo a propósito do tema comum da oposição democrática a regimes autoritários e me deu de presente Memórias do capitão. Guilherme, que foi colaborador de Mário Soares em sua primeira presidência, registrou que o velho capitão era seu primo, encontrando assim mais uma afinidade entre eles.
Numa mudança de registro, lembro que Antonio Candido, conversando sobre artes plásticas, fazia referências a António Pedro, poeta e pintor português que se ligou ao grupo de Clima, o qual patrocinou uma exposição de seus quadros, cujo catálogo foi prefaciado por Ungaretti, então professor na USP. António Pedro, escreveu Candido, era culto, imaginoso e de grande encanto pessoal (pp. 108-9), e o que vinha à baila muitas vezes em nossas conversas era o destaque que o pintor e poeta dava à singular e superior importância de Lasar Segall no panorama das artes plásticas brasileiras. Era um pensierino gentile de sua parte, direcionado para o admirador e estudioso de Segall, e presidente do Conselho do museu que leva seu nome.
Como era habitual em sua obra, o concreto do afeto, da leitura e da memória era para Antonio Candido um caminho para, num juízo reflexivo, desvendar um significado mais geral. “Teresina e seus amigos” é disso um paradigma na identificação política do que caracteriza “um ser socialista” (Candido, 2007b, pp. 11-74). O mesmo movimento, no campo da análise cultural, ocorre no texto “Portugueses no Brasil”, em que destaca o papel que alguns intelectuais portugueses de oposição ao salazarismo desempenharam no enriquecimento da cultura brasileira entre 1940 e 1974, constituindo “uma espécie de missão portuguesa virtual” não planejada e fruto do exílio político que trouxe contribuições culturais renovadoras. Foram devidas a homens de pensamento e sensibilidade que representavam nossas raízes históricas – como inter alia Agostinho da Silva, Casais Monteiro, Fidelino de Figueiredo, Eduardo Lourenço, Rodrigues Lapa, Barradas de Carvalho, Eudoro de Souza, Victor Ramos, Jorge de Sena, Jaime Cortesão, Novaes Teixeira, Fernando Lemos, os matemáticos da Universidade Federal de Pernambuco. Todos trouxeram um conjunto singular e abrangente de contribuições à vida intelectual e cultural do Brasil, comportando assim a analogia da semelhança relevante com a Missão Francesa, a Missão Italiana e a tácita Missão Alemã, que deram as bases, a partir de 1934, do desenvolvimento da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (pp. 122-3).

III

A análise do romance como gênero literário é um tema recorrente na obra de Antonio Candido, desde Brigada ligeira, seu primeiro livro, publicado em 1945. É nessa moldura que se enquadra “Duas máscaras”, sua leitura de A brasileira de Prazins, de Camilo Castelo Branco, um livro do qual não só gostava, mas que também relia com duradoura frequência.
Camilo, cuja vida foi uma sucessão de dramas pessoais, é um escritor de vigoroso estilo, dotado de concisão e fibra, o que dele fez um extraordinário polemista. Sua obra de ficção, que mescla romantismo e naturalismo, padece de descontinuidades, mas, ainda assim, impacta o leitor pela abrangência e força de seu compreensivo mergulho na realidade portuguesa.
São conhecidos os defeitos atribuídos à obra do escritor português. Entre eles, como lembra Antonio Candido, o sentimentalismo transbordante, a ênfase verbal, o exagero de peripécias, as complicações do enredo, o que não impede que A brasileira de Prazins seja uma obra-prima, que se destaca no conjunto da produção camiliana. O caminho do deslinde do juízo crítico de Antonio Candido passa pela maneira original como ele trata um dos problemas da crítica literária: o do romance mal composto que é uma grande obra, apesar de não ter o rigor da fatura, tal como concebido por Flaubert. É o caso, como ele aponta, de Guerra e paz, de Tolstói, e, na literatura brasileira, de Fogo morto, de José Lins do Rego. É igualmente o caso de A brasileira de Prazins, que é “um grande livro, bem escrito e mal composto” (p. 129), assim considerado porque não integra suas partes, como ocorre em Fogo morto, no qual “a segunda parte da obra-prima racha a continuidade do enredo formado pela primeira e a terceira” (p. 129). É o que aponta numa rápida observação, que dá seguimento à linha de seu ensaio “Compreensão da realidade”, dedicado a José Lins do Rego (Candido, 2009, pp. 33-8).
O livro de Camilo Castelo Branco divide-se em duas partes, com histórias praticamente independentes, e de naturezas opostas, ligadas de maneira inconsistente pelo personagem Zeferino das Lamelas, que numa participa de um drama, na outra de uma farsa. O defeito da composição acabou, segundo Candido, favorecendo uma visão mais complexa das coisas, tendo Camilo, dessa maneira, associado as duas máscaras da tradição dramática: “a da tragédia que chora e da comédia que ri”, revelando a integridade contraditória da vida (p. 127). Daí “a leveza airosa da linguagem na parte burlesca e o peso patético da parte trágica”. Em ambas, “flui magistral, a prosa camiliana, tão fora de moda por um lado, tão permanente por outro” (p. 129). É a partir desse distinguo que Antonio Candido, sem desconsiderar a boa qualidade de trechos da parte trágica, vai analiticamente indicar como a parte que pode ser caracterizada como uma novela cômica é perfeita, “tanto pelo andamento lépido da escrita quanto pela caracterização dos personagens” (p. 127).
“Eça de Queirós passado e presente” é um ensaio de várias vertentes. Tem a tonalidade pessoal da memória da relação de Antonio Candido com a obra desse escritor. Esta é um estímulo para sua análise das razões explicativas da voga de Eça no Brasil, da rede nacional de admiração que cercou sua obra, na geração que antecedeu a sua, mas a ela se estendeu, alcançando a subsequente. Nesse sentido, é uma vertente alinhada ao tema de “O escritor e o público”, de que tratou em Literatura e sociedade (Candido, 2006b, pp. 83-98), que é, por sua vez, não custa lembrar, constitutivo do tripé autor/obra/público, base da formação do sistema literário brasileiro, tal como articulado em seu clássico livro de 1959.
São muitas as razões de sua voga, explica Antonio Candido. Nesse texto de O albatroz e o chinês, no ofício de crítico literário, destaca com originalidade um aspecto do que apontou em seu primeiro ensaio sobre o conjunto de obras de Eça. Refiro-me a “Entre o campo e a cidade”, no qual sublinha “sua impressionante acessibilidade” (Candido, 2006d, p. 44).
Eça atinge um público abrangente, pois, como Fielding ou Thackeray, faz parte da rara família de escritores eminentes, dotados de uma inteligibilidade que os torna acessíveis a um público mais amplo, não restrito à elite, e de instrução mais modesta. São escritores que compõem obras de estrutura complexa, mas não apresentam, em função de seu estilo, problemas muito complexos de entendimento (p. 139). É o caso de Os Maias, que Antonio Candido analisa mais adiante, no qual o tema do incesto não é apenas uma coragem de naturalista, mas uma articulação das imperfeições dos seres e da própria vida, que, a partir do momento de sua revelação, desfaz projetos e derruba os personagens, como derrubou Lord Jim no romance de Conrad (p. 147), objeto, vale lembrar, do grande ensaio “Catástrofe e sobrevivência” (Candido, 2006d, pp. 61-91).
Também como Fielding e Thackeray, Eça tinha o dom da caricatura e do sarcasmo. Por isso, um de seus livros mais populares no Brasil foi A relíquia, interpretação alegremente demolidora dos costumes burgueses, que fazia dupla com A velhice do Padre Eterno, de Guerra Junqueiro, abastecendo em nosso país, até sua geração, o espírito crítico de velhos e moços (p. 141).
Em síntese, foi logo estimado por seus leitores, em sua indiscutível grandeza, graças à sua inteligibilidade, o que contrasta com Machado de Assis, que foi se desvendando aos poucos para o público brasileiro na polissemia mais encoberta e menos ostensiva de sua obra.
Antonio Candido repassa a obra de Eça e destaca analiticamente os três romances que, na sequência bem-composta de suas estruturas, põe acima dos outros: O crime do padre Amaro, Os Maias, A ilustre casa de Ramires (pp. 144-7). Conclui com uma sutil análise – que tive o privilégio de ouvir de viva voz em sua elaboração – do conto Um dia de chuva – “inacabado como redação, mas completo como composição”. O conto contrasta com os três livros acima mencionados, pois é uma leve narrativa de atmosfera, tecida tchekhovianamente. Estrutura-se com felicidade na “surda competição entre a chuva que fecha o mundo e a imagem solar da moça que rompe as brumas” (pp. 148-151).
Machado de Assis, que Antonio Candido admirava e relia constantemente, assim como Eça de Queirós, são os dois grandes escritores de língua portuguesa que, em sua avaliação, ombreiam-se com os grandes nomes da literatura ocidental do século XIX. Escreveu, no entanto, mais sobre Eça do que sobre Machado. Um exemplo de sua dedicação à obra queirosiana é o ensaio “Ironia e latência”, o último da segunda parte de O albatroz e o chinês, dedicado ao A ilustre casa de Ramires.
Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista do romance, como já apontava em “Entre o campo e a cidade”, é, na obra de Eça, o personagem mais complexo que engendrou (Candido, 2006d, p. 90). “Ironia e latência” insere-se assim no âmbito da reflexão de Candido sobre o personagem de ficção, o homo fictus, que foi o tema do curso de Teoria Literária de 1961, no qual fui seu aluno (cf. Candido et al., 2014). Esse ensaio destaca “a graça e a força de uma prosa da mais sedutora plasticidade, que sabe penetrar no modo de ser das personagens, sobretudo do protagonista” e do espaço aberto da natureza (p. 160). No entanto, pontua, mas não se concentra no estilo de Eça e sua acessibilidade, que examinou no ensaio que o antecede em O albatroz e o chinês. Dedicou-se aos problemas de estrutura. Tem assim algo do ar de família dos estudos da primeira parte de O discurso e a cidade (Candido, 2004b), nos quais os enredos dos romances estudados em sua criatividade própria partem de dados da realidade existente.
Deles se diferencia porque, na tessitura de sua ironia estrutural, os altos e baixos da vida são tratados de maneira amena e envolvente, entre a emoção e o sorriso, como La Chartreuse de Parme ou David Copperfield. Em sua fatura, a novela dentro da novela não é apenas uma referência, como em Caetés, de Graciliano Ramos, mas, no trato das sucessivas gerações dos Ramires, compõe o desenrolar e o desfecho do enredo. Gonçalo é um personagem complexo. Não é um flat character, um tipo. Tem uma densa gama de complexidades contraditórias, que são o fio condutor das análises de Tese e antítese, citadas. Oscila entre a covardia e a bravura, a imoralidade e a integridade, a lealdade e a torpeza. Não é, no entanto, um personagem trágico como Julien Sorel, Lucien de Rubempré e Raskolnikof. Não é um bicho do subterrâneo, nem o homem dos avessos, para evocar Tese e antítese. É um ser complicado, mas de seus poços profundos, por conta de uma leveza de narrativa de comédia que “arredonda as quinas e quebra o patético”, surge o protagonista “cheio de encanto, que costeia as esferas do mal com tanta amenidade que parece não chamusquear as asas”, e capta a simpatia do leitor. É o que faz desse romance um caso pouco comum de um livro cujos veios “potencialmente trágicos” são elaborados “em ritmo de comédia” (p. 156).
Na obra de Antonio Candido, “Ironia e latência” é mais um grande exemplo do que chamou de “redução estrutural”. Desvenda como os dados externos, no caso, a realidade portuguesa do século XIX e seus problemas, que Eça viveu com intensidade como integrante da geração de 1870, transformaram-se no bem-sucedido e singular resultado estético de A ilustre casa de Ramires. Ecoa assim “Dialética da malandragem”, a magistral análise de Candido das Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (Candido, 2004b, pp. 17-46), que contém características de sua teoria crítica, superiormente analisadas por José Guilherme Merquior (“O texto como resultado: notas sobre a teoria da crítica em Antonio Candido”) e muito especialmente por Roberto Schwarz (“Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’”)(4), e que o próprio Antonio Candido explica de maneira desafogada em entrevistas de 1996 concedidas a Luiz Carlos Jackson (2002, pp. 127-9; 169-70), as quais integram seu livro A tradição esquecida.

IV

Os textos da terceira parte de O albatroz e o chinês são mais breves e têm, como já mencionei, um componente de retratos e testemunhos de mestres e companheiros.
Mestre é Jean Maugüé, que integrou a Missão Francesa, de quem Antonio Candido foi aluno e depois se tornou amigo. Maugüé influenciou o grupo de Clima mais profundamente, como ele disse em 1974, que os outros professores franceses que lecionaram na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, os quais posteriormente alcançaram grande prestígio intelectual (cf. Candido, 2007b, pp. 148-9). No texto de O albatroz e o chinês, que data da primeira década do ano 2000, a memória afetiva e intelectual de Antonio Candido evoca o professor cintilante, não amarrado à camisa de força das convenções universitárias, que sabia transformar o conhecimento de filosofia e a paixão por música, pintura e literatura em fonte de inspiração. O único livro de vulto que publicou foram suas memórias, Les Dents agacées, em 1982. Se Maugüé pouco produziu por escrito, apesar do grande talento e capacidade, sua lembrança, no entanto, para os alunos de São Paulo, permaneceu viva, graças à sua socrática contribuição de grande professor. Esta não só foi decisiva para Antonio Candido encontrar no período de formação os caminhos pluralistas de seu destino intelectual, mas também terá servido como parâmetro para modelar o incomparável dom iluminador de suas aulas(5). Esse texto sobre Maugüé, com clareza concisa, é um texto de gratidão, e a gratidão, como já se disse, é a alegria da memória.
Companheiro é seu amigo Richard Morse, que conheceu em 1947, quando este pesquisava e preparava o livro sobre a formação histórica da cidade de São Paulo. Nele apreciava desde sempre “a coexistência da profunda seriedade intelectual e de um senso brincalhão de humor”. Era “sem alarde, um inconformado em relação às convenções” (p. 191). São traços de personalidade que têm afinidade com a relação ordem/desordem e a dialética do “a favor” e “do contra”, presentes na trajetória de Antonio Candido, como destaquei em meu primeiro ensaio a ele dedicado (Lafer, 1979).
Morse era dotado de um saber comparativo explicitado em seu livro de 1988, O espelho de Próspero, como realça Antonio Candido. Lia a América Latina a partir de uma lucidez compreensiva, “com o desprendimento de quem está fora e o envolvimento de quem está dentro”, sem condescendências descabidas, frequentes nos scholars latino-americanistas dos Estados Unidos. Foi um parceiro de Candido no diálogo sobre as literaturas de língua inglesa, que conhecia bem, um apreciador do Modernismo brasileiro e, como Antonio Candido, tinha a clareza que o senso literário permite ao historiador ou ao sociólogo; uma penetração que vai além dos dados políticos e econômicos (pp. 191-5) – como é o caso da análise de Ricardo II, de Shakespeare, e dos problemas do poder que integram a primeira parte de O albatroz e o chinês.
Os dois textos sobre Pio Lourenço Corrêa (pp. 169-71; 173-6) têm um pano de fundo familiar. Era o tio-avô de dona Gilda, que conheceu desde criança sua chácara em Araraquara. Era o “Tio Pio” de Mário de Andrade, que, na chácara, escreveu a primeira versão de Macunaíma. Sobre esse grande livro, dona Gilda, em sua permanente devoção à obra e à pessoa de Mário, parente em cuja casa em São Paulo morou e foi se formando, escreveu o notável e arguto O tupi e o alaúde (Souza, 2003; cf. Pontes, 1998, pp. 160-2). A publicação da correspondência entre Pio e Mário, “um diálogo da vida inteira” que se estende de 1917 a 1945, foi um projeto de dona Gilda, que ela não chegou a completar, mas que Ana Luiza, sua filha e de Antonio Candido, levou adiante, com o respaldo do pai, na bela edição de 2009 (Corrêa & Andrade, 2009; Escorel, 2016, pp. 15-26).
Tais textos versam, um sobre Mário e Pio, os vínculos afetivos e intelectuais que os uniam e as relações de família que os embasavam; o outro, um retrato da vida de Pio, de sua marcante personalidade, que misturava de maneira singular convencionalismo e originalidade, dedicação à literatura e à língua, da qual era um grande conhecedor com o interesse de cunho linguístico. Foi um dos primeiros a sentir entre nós a importância da obra de Saussure.
Antonio Candido conheceu bem o velho Pio em sua frequentação de Araraquara e teve com ele uma relação pessoal, não circunscrita aos temas de pano de fundo familiar. Por isso os dois textos apontam em surdina uma outra dimensão de Pio Corrêa presente na própria obra de Candido. Refiro-me a Os parceiros do Rio Bonito – Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, publicado em 1964, na origem a tese de doutorado em Ciências Sociais de 1954, defendida e aprovada na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. No prefácio, registra que a Pio Corrêa deve muito do que percebeu da cultura rústica, identificando em suas conversas uma lição constante que se incorporou a seu modo de ver e sentir o caipira paulista, como lembra com saudade e reconhecimento (Candido, 2010, p. 15). Pio tem assim uma faceta de mestre na lógica dos retratos e testemunhos da terceira parte de O albatroz e o chinês.
O texto sobre Lúcia Miguel Pereira analisa sua fase inicial de crítica militante no período de 1931-43. Discute seus temas e escolhas iniciais e sua competência e penetração crítica. Registro nesse sentido a apreciação de Candido da resenha publicada no Boletim de Ariel, de maio de 1934, no texto em que ele celebrou em 1988 os 50 anos de Vidas secas. Nele, o estudioso consagrado de Graciliano Ramos aponta como a crítica ressaltou, com “a discreta segurança que sabia cultivar tão bem”, válidos elementos essenciais para a compreensão de Vidas secas, inclusive o fato de dar voz aos humildes – elaborando uma linguagem virtual a partir do silêncio –, um tema que sempre o interessou como crítico e que desenvolveu no texto sobre João Antônio, que comentarei mais adiante (Candido, 2006a, pp. 145-7).
O trabalho de pesquisa e a interpretação em larga escala eram características da personalidade intelectual de Lúcia Miguel Pereira. Amadureceram em Prosa de ficção (de 1870 a 1920), cuja segunda edição revista é de 1957. O livro é um dos pontos altos da historiografia crítica de nossa literatura, presente na Formação da literatura brasileira. Sua trajetória foi interrompida tragicamente com a morte num desastre de avião, junto com seu marido, o historiador Octavio Tarquínio de Souza.
Ela era uma prima-irmã mais velha, de muita proximidade com Antonio Candido. É o que lhe permite no texto esclarecer de dentro seu ambiente familiar intelectual com a mãe, a avó e duas bisavós que eram grandes leitoras – como dona Clarisse, sua mãe e tia de Lúcia. Também lhe permite ressaltar que o pai dela, o dr. Miguel Pereira, foi, no Rio de Janeiro, a então capital do país, um médico de destaque e repercussão – é dele a afirmação “o Brasil é ainda um imenso hospital”, de 1916. Era um homem de grande cultura e forte personalidade, com o qual o dr. Aristides, pai de Candido, trabalhou como médico no início de sua carreira. É por isso que, no texto de O albatroz e o chinês, subjaz a memória de uma querência familiar (cf. Pontes, 1998, pp. 153-6).
Lembro, destacando vínculos da proximidade, que, como é sabido, Antonio Candido prestou concurso para a cadeira de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no qual foi preterido, apesar de ter tido cinco indicações iniciais. Ele relata um pouco as peripécias e seu preparo para o concurso em Recortes (Candido, 2004a, pp. 261-5). Menciona que o resultado gerou uma certa comoção e, entre as manifestações e artigos a seu favor, recorda o de Lúcia Miguel Pereira. Datado de 25 de setembro de 1945, o texto intitula-se “Critérios diferentes” e destaca que o jovem Candido em poucos anos já tinha se afirmado “como uma das mais fortes vocações críticas jamais surgidas no Brasil” e que sua tese sobre Sílvio Romero era “um ensaio magistral, em que a erudição se completa pela agudeza da análise”(6).
O texto sobre João Antônio, “Na noite enxovalhada”, tem outra natureza. É uma arguta análise de crítica literária que aponta na obra do autor a esteticamente bem-sucedida convergência entre as situações narradas e sua capacidade de criar linguagem. Essa capacidade parte do que se fala no dia a dia, tem a força da “afirmação pela negação” que logra dar voz ao teor de humanidade dos deserdados que fervilham no submundo. Representa criativamente “o jogo triste da vida” e faz para as esferas dos malditos da sociedade urbana o que, em outra escala, fez Guimarães Rosa para o mundo do sertão, por meio de uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, “mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente” (p. 210).
São dois os textos dedicados a Darcy Ribeiro na terceira parte de O albatroz e o chinês e têm características muito distintas. O primeiro é uma análise do romance Maíra, que oferece a Antonio Candido a oportunidade de indicar como os trabalhos e os relatos de certos antropólogos como Evans Pitchard e Malinovski – que ele conhecia bem, inclusive por conta da elaboração e da tônica antropológica de Os parceiros do Rio Bonito – podem ser instigantes estímulos da criação literária. Efetivamente o foram para o Darcy Ribeiro antropólogo em seu romance.
A análise dessa obra também permite a Antonio Candido indicar que, se por sua natureza é um romance indianista, tem uma marcante originalidade que o diferencia radicalmente da redução lírica ou heroica dos de José de Alencar e também do sarcasmo e humor de Macunaíma de Mário de Andrade.
Maíra é fruto de um escritor que funde um conhecimento profundo da sociedade dos índios e da sociedade dos brancos, e de seu entrecruzamento – daí o título do texto “Mundos cruzados” – de maneira esteticamente bem-sucedida, graças à “técnica narrativa, escolhida e praticada com firme discernimento”. Nesse romance, o universo da multiplicidade dos pontos de vista de “Mundos cruzados” resulta de três setores que se interpenetram: o do índio, o do branco e o dos seres sobrenaturais. Estes têm na obra o papel de estrutura de referência, esclarecedora do comportamento dos seres humanos. Constituem, como explica Antonio Candido, uma razão profunda da realidade exposta pelo narrador, pois a cosmogonia e a cultura dos mairuns são expressões da criação e da destruição, e como tal, avatares das forças originárias do cosmos e da vida (pp. 197-202).
“As três bandeiras” é o texto subsequente sobre Darcy Ribeiro. Tem a natureza de um texto de testemunho sobre um personagem da vida brasileira que Antonio Candido conheceu bem e com o qual teve convergências. Admirava seu empenho de antropólogo no estudo da cultura do índio; sua dedicação pedagógica, que redundou na invenção da escola de tempo integral e na criação de universidades; o homem público, voltado para a transformação da iníqua sociedade brasileira. Apreciava o vigor de seu sentimento patriótico, cuja capacidade de denúncia não levava ao desalento, mas a uma trepidante capacidade de ação. Foi velado na Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, na pompa que apreciava, com o caixão coberto por três bandeiras: a do Brasil, a de seu estado, Minas Gerais, e a dos sem-terra. Esta dava, na análise de Antonio Candido, sentido às outras duas, pois sinalizava o país dos pobres a ser incorporado à nação, representativa de seu empenho de patriota, de cariz socialista, que concebia e queria um Brasil como espaço que abrange a todos (pp. 203-4).
“A vida como arte”, que aborda o livro de Marcia Camargos sobre Freitas Valle e a Villa Kyrial, tem outra tonalidade. É uma importante análise cultural dos “feitos da burguesia” que remete explicitamente a uma análise do mesmo gênero que fez sobre a Universidade de São Paulo, o Teatro Brasileiro de Comédia e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (cf. Candido, 2007b, pp. 89-98), destacando, com abertura e sem sectarismos, realizações das classes dominantes que servem à cultura de toda a sociedade.
Freitas Valle, entre 1900 e 1930, teve uma atuação marcante na história cultural de São Paulo e criou em sua residência um espaço de grande originalidade por onde passaram e onde conviveram intelectuais e artistas. Era um homem muito culto situado dentro da arte e da literatura, e de forte personalidade, que fez de sua Villa Kyrial um lugar diferente de outros ambientes congêneres em São Paulo, como o de dona Veridiana Prado e o de dona Olívia Guedes Penteado. Foi um homem público entrosado nas atividades do PRP, o hegemônico partido da Primeira República, e, por conta dessa vertente, um líder cultural com lastro político que atuou com discernimento no terreno da instrução elementar e média, no estímulo a museus e bibliotecas, e na concessão de bolsas para a formação de artistas.
Nesse espaço, elevou o convívio intelectual e estetizou a vida, ao gosto dos simbolistas, com um estilo próprio, no âmbito do qual se entrosavam a culinária, o vinho e o perfume. Se sua poesia, escrita em francês, se situa, como Candido aponta, num nível “modesto do modesto simbolismo brasileiro”, levou a bom termo na Villa Kyrial o requinte do entrosamento arte-vida (pp. 163-7).
Permito-me lembrar, a propósito das atividades de Freitas Valle e de seu impacto, que foi ele que apoiou a primeira exposição de Lasar Segall no Brasil, em 1913, como aponta Marcia Camargos. Segall considerava-se seu devedor pelo interesse que teve por sua obra. Viu na Villa Kyrial um ambiente especial, marcadamente acolhedor pela força da personalidade de Freitas Valle, ao redor de quem se concentravam o mundo político, artístico e cultural da época, e no qual artistas nacionais e estrangeiros encontravam um patrono e um amigo (Segall, 1993, p. 16). Foi lá que, no ano de 1924, Segall fez duas conferências, uma “Sobre arte” e outra sobre “O expressionismo” (Segall, 1993, pp. 31-6; 39-42).
Em síntese, os textos da terceira parte são uma mostra significativa do pluralismo de perspectivas e interesses que dão acesso, como observei, à maneira de ser e de ver obras e pessoas do percurso de Antonio Candido.

V

As considerações sobre O albatroz e o chinês neste texto podem ser qualificadas, valendo-me de uma analogia musical, como variações, vale dizer, exposições sucessivas sobre temas e pessoas tratados no livro com remissões ao contexto de sua obra. Elas são extensas e a explicação de sua extensão tem raiz em minha maneira de lidar com a saudade. A saudade, para concluir com os portugueses e recorrer a El-Rei D. Duarte no capítulo XXV do Leal conselheiro – que foi o primeiro a tratar reflexivamente do tema –, é um sentimento. Provém da sensibilidade e tem como elementos o desejo e a lembrança. Esta se origina do apartamento de uma presença muito querida. É uma ausência que nasce da afeição e do desejo que se empenha na reintegração e na retomada do tempo existencial da convivência e do diálogo, de uma amizade e de uma devota admiração de muitas décadas.


CELSO LAFER
é Professor Emérito da Universidade de São Paulo, ex-presidente da Fapesp (2007-2015), membro da Academia Brasileira de Letras e autor de, entre outros, Lasar Segall: múltiplus olhares (Imesp).


(1) Ambas foram publicadas pela Editora Ouro sobre Azul, do Rio de Janeiro. Todas as citações dessa obra neste ensaio são feitas a partir da segunda edição, indicando-se as páginas entre parênteses após a citação ou menção.

(2) Incluída em: Martins (2007, pp. 215-9).

(3) Cf. Candido (2004a, pp. 151-5) e entrevista concedida a Luiz Carlos Jackson em 6 de junho de 1996, reproduzida no anexo de seu livro A tradição esquecida: Os parceiros do Rio Bonito e a sociologia de Antonio Candido (Jackson, 2002, pp. 130-2).

(4) Ambos incluídos em: Candido (1979, pp. 121-31; 133-51).

(5) Cf. “Ser aluna de Antonio Candido”, de Telê Ancona Lopez, e “A aula”, de Walnice Nogueira Galvão, ambos em: D’Incao & Scarabotolo (1992, pp. 41-7; 48-9).

(6) O artigo de Lúcia Miguel Pereira está reproduzido em: Dantas (2002, p. 71).

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