Arte sobre foto de Osvaldo José dos Santos/USP Imagens
Antonio Candido e a interiorização do ensino superior
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Alvaro Santos Simões Junior
resumo
Pretende-se com este artigo reunir e interpretar informações que permitam compreender melhor a passagem de Antonio Candido da sociologia para a literatura no ano de 1958. Para essa mudança, contribuíram decisivamente projeto do governo paulista de interiorização do ensino superior e, particularmente, a fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, projetada por Antônio Soares Amora e Antonio Candido para se tornar instituição revolucionária no ensino de letras no Brasil.
Palavras-chave: universidade; Antonio Candido; interiorização do ensino superior..
abstract
This article aims to gather and interpret information so we can understand better Antonio Candido’s shift from Sociology to Literature in 1958. Two decisive events contributed to that change: the São Paulo State government plan to expand higher education offer to the countryside, and especially the establishment of the School of Philosophy, Sciences and Letters of Assis, conceived by Antônio Soares Amora and Antonio Candido to be a revolutionary institution in language and literature teaching in Brazil.
Keywords: university; Antonio Candido; expansion of Higher Education to the countryside.
“Acho que o prof. Amora está
fazendo algo de surpreendente.
Assis, com o tempo, será um perfeito centro de pesquisas filológicas.
É uma verdadeira Arcádia…”
(Júlio Garcia Morejón)(1).
Pretende-se com este artigo tornar públicas novas informações sobre a transição do prof. Antonio Candido da sociologia para a literatura, em virtude da qual o antigo assistente do catedrático Fernando de Azevedo pôde, como sonhava, dedicar-se integralmente aos estudos literários. A fundação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis em 1958 propiciou condições ideais para essa mudança e, na prática, reativou uma carreira docente que estava em estado de paralisia. Defende-se aqui a hipótese de que Candido ajudou a construir às margens da estrada de ferro Sorocabana ambiente estimulante para a formulação de novos métodos didáticos para o ensino universitário, com consequências decisivas para o desenvolvimento ulterior de sua própria carreira.
FUNDAÇÃO DA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras criada em Assis resultou de projeto de lei proposto por José Santilli Sobrinho à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Aprovado no final de 1956, transformou-se na Lei n. 3.826, sancionada pelo governador de então, Jânio Quadros, em 6 de fevereiro de 1957(2). No parágrafo único do artigo primeiro, vinha uma condição a ser atendida para a efetivação da nova instituição de ensino: “A instalação da Faculdade fica condicionada à cessão ao Estado, pelo município, de prédios destinados ao seu funcionamento”. Em vista dessa cláusula, lideranças do município constituíram uma Comissão Pró-Instalação da Faculdade, que arrecadou fundos para a construção do prédio mediante iniciativas como venda de apólices, desfile de modas, bailes, etc. Porém, como solução transitória, optou-se pelo aluguel de prédio recém-construído no Colégio Santa Maria com a finalidade de nele abrigar-se o internato.
A criação da faculdade em Assis não era uma iniciativa individual de um único deputado, pois tinham sido criadas instituições similares em Marília e Rio Claro. Havia, de fato, o propósito governamental de criar no Estado de São Paulo um sistema isolado de ensino superior. Esse programa de descentralização era certamente fruto do otimismo dos anos desenvolvimentistas de JK e da perspectiva de consolidação da democracia no Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial e da ditadura Vargas. A Gazeta de Assis, em 21 de abril de 1960, trouxe em sua primeira página retrato em grande formato de Juscelino Kubitschek, criador de Brasília, que teria construído “bases sólidas” para “uma revolucionária marcha para o Oeste”(3). À sua maneira, o governador paulista, que se lançaria candidato à Presidência da República, também tentava levar desenvolvimento para o interior.
No final de 1960, a descentralização do ensino superior tornou-se um tópico dos debates desencadeados pela campanha presidencial então em curso, vencida afinal por Jânio Quadros. No Jornal de Assis, Amílcar Romeu Pótiens defendeu em artigo a abertura para o oeste com o seguinte argumento: “Há países dos civilizados que possuem as suas melhores faculdades em lugares de pequena densidade demográfica e distantes dos centros maiores”(4). O articulista aproveitou o tema para tecer elogios ao deputado Santilli Sobrinho, que, em Botucatu, durante comício, defendera abertura de Faculdade de Medicina naquela cidade(5).
Em Assis, a conquista da faculdade foi bem aproveitada em 1959 durante campanha pela Prefeitura. O candidato Abílio Nogueira Duarte – que se dizia afinado com Santilli Sobrinho e com o novo governador Carvalho Pinto – prometia, em anúncio de página inteira publicado na Gazeta de Assis, lutar para que Assis, a “Atenas do interior paulista”, se transformasse em uma autêntica “cidade universitária” e em um “glorioso centro de cultura superior”. Para dar a entender que tal ambição era razoável, informou que tramitavam na Assembleia Legislativa projetos de lei para a criação em Assis de faculdade de farmácia e odontologia, faculdade de ciências econômicas, escola agrotécnica, escola superior de educação física e escola de artes dramáticas. Sabia o candidato exatamente como seduzir o eleitor: “[…] que tranquilidade para as mães, que não precisarão ver seus filhos afastarem-se tão cedo para os grandes centros. Que economia para os pais”(6).
Como se vê, políticos de diferentes quilates descobriram ser conveniente levantar a bandeira da educação e particularmente a da descentralização do ensino superior. A ideia, porém, não contava com apoio unânime da população.
FATORES DE RESISTÊNCIA À INTERIORIZAÇÃO
Exatamente no dia seguinte à sanção pelo governador do projeto de criação da Faculdade de Assis, publicou O Estado de S. Paulo editorial com o título de “Ensino e cabala”. A proximidade das datas não era apenas uma coincidência, pois o texto tratava justamente da abertura de faculdades de filosofia no interior. De início, o editorialista observou que O Estado de S. Paulo apoiara a “política de austeridade financeira” que Jânio Quadros proclamava seguir, embora eventualmente protestasse contra determinados “excessos”, que se assemelhavam a “sovinice”, e ponderasse que, para o equilíbrio das contas públicas, talvez fosse necessário o aumento das receitas. Denunciou o jornal que a “poupança” do governador vinha resultando no “adelgaçamento das verbas concedidas a institutos técnicos e científicos de fomento à produção”, o que prejudicava não apenas a expansão, mas também o funcionamento de “autarquias como a Universidade de São Paulo”, com prejuízos certos para o futuro do país. Segundo o editorial, a “avareza” de Jânio Quadros vinha afetando a renovação de bibliotecas, o adequado aparelhamento do ensino e a continuidade de “pesquisas técnicas e científicas”. Com mais ênfase, chegou o jornal a afirmar que o governo estadual vinha “asfixiando com falta de verbas o ensino superior e privando de meios de subsistência seus laboratórios, reduzindo à inatividade departamentos inteiros de investigação científica!”(7).
Para O Estado de S. Paulo, o governador esquecia-se do seu propalado programa de austeridade e tornava-se “mão aberta” quando se tratava de “despesas convenientes aos seus interesses eleitorais”: “Não tem outra explicação o contraste entre uma Universidade em penúria e a proliferação, no interior, de faculdades de filosofia [sic] que não exercem outro papel que não o de sorvedouros de dinheiro, focos, que são, de sinecuras desmoralizadoras do ensino superior”. Para que a USP pudesse, em sua origem, contar com um “corpo docente de excepcionais aptidões” fora necessário, lembrava o editorialista, o “contrato de professores estrangeiros”. Mais de 20 anos depois, apesar de tudo, a USP, sempre segundo O Estado de S. Paulo, ainda não conseguia, “em alguns de seus setores”, oferecer “um ensino realmente fecundo” aos seus alunos. Por isso, o jornal defendia com franqueza “novos contratos de professores estrangeiros para a Faculdade de Filosofia”(8).
Se essa era a situação da USP, o que se poderia esperar das faculdades do interior? Para O Estado de S. Paulo, elas seriam fatalmente formadas por “catedráticos improficientes” e não passariam de “fábricas de licenciados” – tudo para que prosseguisse incólume a “cabala eleitoral” do governador(9).
Episódio significativo da crise de financiamento da USP ocorreu no final de 1957, levando inclusive à demissão de Antônio Soares Amora, diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis.
O caso envolveu a contratação de César Lattes, físico de renome internacional, que a USP gostaria de trazer para São Paulo a fim de desenvolver um projeto de construção de reator nuclear. Para deixar a UFRJ, Lattes exigia que se realizassem os investimentos em obras e equipamentos imprescindíveis para a continuidade de suas pesquisas. Naqueles anos desenvolvimentistas, o Brasil ousava tentar assenhorar-se da promissora tecnologia nuclear, e São Paulo, que se julgava locomotiva da Federação, procurava exercer liderança também nesse setor.
Em entrevistas à imprensa, no final de 1957, Mário Schenberg, diretor do Departamento de Física, protestou contra a morosidade dos investimentos e a falta de verbas necessárias para viabilizar a instalação de reator atômico na USP.
Em 16 de dezembro de 1957, Jânio Quadros enviou memorando ao reitor da USP pedindo punição a Schenberg por suas declarações à imprensa, nas quais via caracterizado delito funcional de insubordinação. Em resposta ao governador, o Conselho Universitário constituiu comissão para apurar os fatos, mas o colegiado concluiu que as primeiras entrevistas de Schenberg tinham sido ponderadas e respeitosas, embora as posteriores assumissem certa “agressividade compreensível” após conflito com o governador. No entanto, negou a comissão que o docente houvesse deixado a “linha ética universitária”(10). No final de dezembro, diretor e vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, acompanhados de colegas de faculdades do interior, procuraram o governador a fim de entregar-lhe moção com o posicionamento de professores da USP a respeito das entrevistas. O comportamento de Jânio Quadros na ocasião foi, no mínimo, descortês, pois se recusou a receber o documento, jogando-o acintosamente sobre a mesa, manteve-se o tempo todo sentado, sem convidar ninguém a sentar-se, e disse ao representante da comissão: “Prof. Eurípedes, o senhor exerce neste governo um cargo de confiança. E se não é capaz de manter a ordem e a disciplina na Faculdade de Filosofia, então peça demissão de seu cargo”(11). Em consequência da inusitada atitude do governador, demitiram-se o citado Eurípedes Simões de Paula e seus colegas do interior, incluindo Antônio Soares Amora, da Faculdade de Assis. Sérgio Buarque de Holanda, em solidariedade a Mário Schenberg, desligou-se da Comissão de Organização do Patrimônio Histórico e Artístico de São Paulo.
Assim, a Faculdade de Assis iniciou o ano de 1958 sem diretor, mas em fevereiro, com certo arrefecimento da tensão, Paulo Sawaya e Antônio Soares Amora, que então respondiam, respectivamente, pela direção e vice-direção da Faculdade de Filosofia da USP, foram recebidos pelo governador. Após pedido de Jânio Quadros, Soares Amora reassumiria a direção da Faculdade de Assis, assim como João Dias da Silveira, seu colega de Rio Claro. José Quirino Ribeiro, diretor da Faculdade de Marília, não recuou de sua demissão, alegando razões pessoais(12). Posteriormente, Amora alegaria que pesara em sua decisão reiterados pedidos da comunidade assisense para que voltasse à direção da faculdade.
Justifica-se o breve relato desses fatos porque esclarecem as circunstâncias em que Antônio Soares Amora realizou com Antonio Candido o planejamento para a constituição da nova instituição de ensino superior no oeste do Estado. Em função da escassez de verbas, a ampliação do ensino superior em direção ao oeste era vista com desconfiança por determinados setores, como se nota com clareza no citado editorial de O Estado de S. Paulo.
LEGITIMIDADE VIA INOVAÇÃO
Em 22 de agosto de 1957, ao nomear Antônio Soares Amora diretor da faculdade, o governador determinou que a nova instituição seguisse, no ensino superior, a “linha renovadora e de alto nível”. Era essa, provavelmente, a primeira resposta formal e oficial ao ceticismo dos críticos da interiorização. Porém, o efêmero jornal O Universitário, de Assis, já informara em 5 de junho de 1957 que a faculdade iria inovar nos métodos de docência e produção científica, cooperar com o governo federal no “aperfeiçoamento do pessoal de nível superior” e “atender às exigências culturais de importante zona interiorana”.
Entre as principais novidades acadêmicas a serem introduzidas, destacavam-se o regime de tempo integral para docentes e alunos e a adoção do “sistema didático e científico de organização departamental”(13).
Em sucessivas entrevistas, Soares Amora reafirmaria as diretrizes governamentais. Em entrevista concedida à Gazeta de Assis em 12 de dezembro de 1957, garantiu que a faculdade seria de alto padrão, seguindo a renovação por que passavam as faculdades de medicina, e que a estrutura de departamentos seria “uma novidade em matéria de organização no ensino superior de Letras no Brasil”(14).
Concedendo entrevista à Folha da Manhã, de São Paulo, o diretor Amora, reempossado no cargo, declarou em 28 de fevereiro de 1958 que considerava ultrapassadas as aulas e as próprias salas de aula, onde imperava o “método professoral do magister dixit”. Na cidade de Assis, seria tudo diferente, pois a faculdade nela estabelecida estaria concentrada “no trabalho científico, associando-se evidentemente os alunos a esse trabalho”. Para isso, se introduziria o tempo integral para os dois segmentos. Como forma de combater o isolamento da instituição interiorana, pretendia Soares Amora estabelecer relações científicas com centros nacionais e internacionais e também contratar “professores visitantes”(15). Jorge de Sena seria integrado à faculdade a partir de outubro de 1959.
Pouco antes do início das aulas, Soares Amora concedeu em fevereiro de 1959 entrevista à Gazeta de Assis mencionando outras inovações introduzidas pela faculdade, como a “ambientação altamente estimulante”, “padrões de vencimentos condignos” e a organização didático-pedagógica nos Departamentos de Letras Clássicas, Letras Vernáculas, Letras Românicas, Letras Anglo-Germânicas e Didática. Já no primeiro ano, seriam implementados “novos métodos de ensino de línguas e literaturas” e, iniciando uma “linha de publicações universitárias”, seria lançada uma “revista de Letras, de caráter científico e de âmbito internacional”(16). Em depoimento audiovisual a propósito dos 50 anos do II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado em Assis em 1961, Candido relembrou que eventos de dimensão nacional e internacional estavam previstos pelo projeto original da faculdade:
“A Faculdade de Assis […] marcou época, a meu ver, na história do ensino de Literatura no Brasil. Para mim foi muito importante. Amora conseguiu criar lá um espírito de entusiasmo pelo trabalho, e isso deve ter continuado até hoje. Aliás, a ideia do Congresso está associada à própria criação da Faculdade de Assis. Nasceu nas reuniões preliminares no Instituto de Estudos Portugueses, aqui em São Paulo, no qual nos reunimos durante meses para planejá-la. Lembro perfeitamente que no nosso projeto estavam previstos uma revista de Letras, uma série de livros ligados à crítica e ao ensino e eventos culturais, como colóquios, congressos. Essas três coisas foram deliberadas no começo” (Candido, 2014, p. 218).
As faculdades de medicina, apontadas como modelos por Soares Amora, procuravam seguir as diretrizes para o ensino universitário que provinham de similares norte-americanas e eram impostas por instituições de financiamento como a Fundação Rockefeller. Segundo essa concepção, o médico, diante de seu paciente, deveria assumir a postura de um cientista e tratar a doença como um “objeto de investigação”. Por isso, o ensino deveria basear-se na pesquisa científica e na aplicação das ciências. Para que o docente pudesse efetivamente dedicar-se à pesquisa, faculdades de medicina no Brasil vinham instituindo contratos de tempo integral e dedicação exclusiva. Previa-se, inclusive, a contratação de pesquisadores com atividades didáticas reduzidas. A todos, asseguravam-se recursos de apoio como laboratórios, bibliotecas especializadas com atualização constante do acervo e manutenção de publicações periódicas para divulgação dos resultados de pesquisa (Bulcão; El-Kareh & Sayd, 2007, p. 479). Para o corpo discente, o modelo norte-americano previa limitação do número de alunos, de modo a possibilitar o acompanhamento individualizado. Pesquisa de excelência era, sem constrangimentos, considerada “atividade de elite”(17). No que tange o ensino, as cátedras deveriam ser organizadas em departamentos (Bulcão; El-Kareh & Sayd, 2007, pp. 483-4).
Em Assis, o tempo integral foi de fato estendido aos alunos que, pela manhã, se ocupavam em “sessão de estudos” e, à tarde, ficavam disponíveis para a “sessão docente”. A princípio, as leituras e estudos matutinos eram dirigidos pelos docentes em horários previamente estipulados. Posteriormente, em função de protestos dos alunos, introduziu-se maior flexibilidade.
Se, como ficava evidenciado no referido editorial de O Estado de S. Paulo, havia dúvidas quanto à capacidade do corpo docente dos institutos do interior, Soares Amora procurou afastá-las ao compor o quadro docente da Faculdade de Assis com professores de reputação consolidada, como Naief Sáfady, Antônio Lázaro de Almeida Prado, Erwin Theodor Rosenthal e Antonio Candido, todos vinculados à USP. Como se julgava – conforme se conclui do mesmo editorial – de grande importância contar com a colaboração de docentes estrangeiros, Soares Amora contratou Antônio Benton, formado pelas universidades de Heidelberg e Munique, Joséph J. van den Besselaar, doutor pela Universidade Nimega (Holanda), Vítor de Almeida Ramos, doutor pela Universidade de Lisboa, Júlio Garcia Morejón, formado pela Universidade de Salamanca, e Wilhelm Sigmund Jonas Speyer, formado pela Universidade de Berlim.
Apenas um ano depois do início das aulas, Soares Amora já podia comemorar o resultado de seus esforços. A propósito de mensagem encaminhada pelo governador Carvalho Pinto à Assembleia Legislativa com prestação de contas do governo, O Estado de S. Paulo voltou a pronunciar-se sobre a educação no Estado. Embora se informasse a construção de 60 estabelecimentos de ensino secundário e de 165 grupos escolares e se relatassem investimentos na USP e em faculdades do interior, para o jornal era “francamente desanimador”, no Estado, a situação do ensino médio e superior e, por isso, considerava-se “inferior às necessidades” o empenho do governo. As verbas destinadas a instalações pendentes da USP pareceram “insuficientes” ao editorialista, para quem a instituição paulista, embora fosse a primeira do país, não deixava de estar, em “setores fundamentais como o da pesquisa científica”, atrasada “meio século” em comparação com as de “países mais avançados”. Em vista disso, O Estado de S. Paulo criticou as prioridades adotadas pelo governo estadual: “Entendemos que as vultosas verbas dispendidas com a instalação de faculdades em várias cidades do interior teriam bem melhor aplicação na própria Universidade de São Paulo”. Porém, três anos depois de condenar a lei que deu origem à Faculdade de Assis, o matutino paulistano já não se sentia à vontade para incluí-la no seu rol de instituições precárias:
“Se, por exceção, a Faculdade de Assis é um estabelecimento modelar de que podemos orgulhar-nos, tanto pela excelência dos seus métodos experimentais como pelo alto nível dos seus mestres nacionais e estrangeiros, outrotanto [sic] não acontece com os demais […]”(18).
Como se nota, Soares Amora havia sido vitorioso em obter o reconhecimento público para a sua instituição, mas havia novos obstáculos a transpor.
QUANTIDADE E QUALIDADE
A exemplo das faculdades de medicina, a Faculdade de Assis oferecia em seus primeiros anos poucas vagas e não as ocupava integralmente em função do rigor de seu concurso de habilitação, que previa prova escrita (redação) sobre ponto sorteado e prova oral. Na prova oral de língua portuguesa, os candidatos deveriam identificar e corrigir os erros de suas próprias provas escritas. Em gramática histórica, a banca questionaria os candidatos sobre textos dos séculos XVI e XVII previamente examinados. Na prova oral das literaturas portuguesa e brasileira, solicitava-se ao candidato leitura e explicação de trechos de obras do Quinhentismo ao Modernismo português ou do Arcadismo ao Modernismo brasileiro. A primeira turma (1959) foi formada com apenas 24 alunos; o exame para o segundo ano (1960) aprovou apenas 19 candidatos.
Parte da população assisense, que nutrira grandes expectativas com a criação da faculdade, para a qual tinha contribuído com doações e compra de apólices, e que provavelmente via no ensino superior apenas uma etapa obrigatória para a ascensão social, não compreendeu o que julgou “excesso de rigor” por parte das bancas.
Em editorial de 3 de março de 1960, a Gazeta de Assis declarava ter obtido informações de que, apesar do número de reprovações no exame de admissão daquele ano, “se obstinava” o corpo docente da faculdade em não realizar “exames de segunda época”(19). Em termos incisivos e estilo descuidado, o jornal cobrava esclarecimentos:
“Parece que merecerá explicação ao povo desta cidade a atitude tomada pela Direção de nossa Faculdade, em não desejar preencher mais 40 vagas existentes em várias seções dos cursos existentes. Não sendo razoável a justificativa dos professores em permanecerem nessa negativa, parece-nos que haverá má vontade ou falta de interesse pelo progresso de nossa Faculdade.
Nossa população, que recebeu de braços abertos a chegada [sic] dos ilustres que vinham dar nome e dar projeção em nossa Faculdade [sic], sente-se agora um tanto desiludida com essa negativa colaboracionista [sic]”(20).
Em 12 de março de 1960, o Jornal de Assis acusava o recebimento de artigo intitulado “Agora, os mestres é que precisam aprender” e pedia que seu autor se identificasse para que fosse possível publicá-lo(21). Com título modificado, o texto de José de Assis, provável pseudônimo, seria publicado uma semana depois e pediria providências a propósito das reprovações. Sugeria que, a princípio, se fizesse uma avaliação a respeito das causas do insucesso:
“Como a coisa vai dar no campo da pedagogia, irão ter a palavra os mestres. Os mestres da Faculdade de Filosofia. E os mestres do Instituto de Educação. Quem sabe se não seria uma sorte grande para a nossa juventude reunirem-se os mestres de ambos os institutos de ensino, para estabelecerem um estudo conjunto da situação?”(22).
Logo depois, propôs o articulista que se formulasse um “plano comum de trabalho”, a que seriam associados os colégios confessionais Santa Maria e Diocesano, com a finalidade de preparar melhor a juventude assisense. Se suas sugestões fossem acatadas, estava José de Assis convicto de que sua cidade “estaria oferecendo ao Brasil uma experiência nova e fecunda, na tentativa de solucionar o grave problema desse bárbaro steaple-chase, que é a passagem do ensino secundário para o ensino superior”(23).
Uma provável resposta de Soares Amora(24) a essas críticas veio sob forma de longa entrevista ao Jornal de Assis, onde com frequência saíam inúmeras matérias relativas à faculdade. Após várias considerações de ordem pessoal(25), o diretor assegurou a boa vontade do corpo docente por ele dirigido:
“Na Faculdade de Assis todos acreditam que ela poderá ser uma instituição de ensino e de trabalho intelectual em todos os sentidos séria, produtiva e realmente significativa, todos creem nisso e lutam com entusiasmo, e sem falecimento e hesitações na realização de sua crença”(26).
Note-se que Amora disse, com certa reserva, que a faculdade poderia ser a instituição sonhada, evitando formulações mais assertivas como será ou deverá ser. Tendo o repórter indagado se Assis era cidade “adequada” para abrigar a faculdade, o diretor teceu considerações que se pode considerar sibilinas:
“Só os fatos poderão responder à […] pergunta. Quando se instalou uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em Assis, não se pensou na existência de centenas de alunos sem possibilidade de tirar um Curso Superior. Pensou-se em despertar interesses e vocações e dar ao País número maior de profissionais de alto nível de preparação científica.
Só a juventude de Assis e da região poderá dizer se a Faculdade que se lhes oferece corresponde ou não a seus desejos e às suas possibilidades. Se a resposta for afirmativa e for demonstrado pelo número crescente de candidatos aos cursos dessa escola superior e pela sua produção nos cursos ministrados, fica demonstrado que Assis é cidade adequada para sede de instituição universitária como a que existe.
Se a resposta for negativa, apesar do empenho de todos, inclusive da população de Assis, em acertar, acabamos por cometer um equívoco”(27).
Não é possível afirmar taxativamente que tais palavras continham uma sutil e dura mensagem à comunidade assisense. Certos fatos posteriores indicam, no entanto, que as lideranças assisenses souberam ler nas entrelinhas da entrevista, considerando provavelmente que a faculdade funcionava havia menos de dois anos em prédio alugado. Poucos dias depois, mais exatamente em 18 de abril de 1960, seria outorgado ao diretor, pela Câmara Municipal, o título de Cidadão Honorário de Assis. À cerimônia, compareceram vários docentes da faculdade, acompanhados de suas esposas. À noite, no Clube Recreativo, promoveu-se grande banquete em homenagem a Soares Amora, aniversariante do dia. No centro do salão, dispôs-se um grande bolo em formato de navio, representando alegoricamente a faculdade. Sobre o convés do bolo-navio, colocaram-se livros em cujos dorsos se liam os nomes das disciplinas ministradas. O professor secundarista Ernâni Rodrigues, um dos oradores da noite, declarou que “ninguém admitia, nem em hipótese, que [a faculdade] um dia desaparecesse”(28). Tais fatos parecem indicar que Soares Amora havia vencido mais uma batalha em defesa da faculdade que projetara com a colaboração de Antonio Candido.
CANDIDO E A “ARCÁDIA” DO INTERIOR PAULISTA
Dos primeiros contratados pela faculdade, Antonio Candido era provavelmente o mais conhecido por ter exercido regularmente a chamada crítica de rodapé na revista Clima (1941-44) e nos jornais Folha da Manhã (1943-45) e Diário de São Paulo (1945-47), além de ter publicado obras como Introdução ao método crítico de Sílvio Romero (1945), Brigada ligeira (1945) e Ficção e confissão (1956). O Jornal de Assis noticiou que chegara à cidade em 6 de outubro de 1958 o “crítico” Antonio Candido, que deixava, “provisoriamente, seu magistério na cátedra de Sociologia, onde, ao lado do Prof. Fernando de Azevedo, vinha prelecionando com muito brilho e repercussão nacional”.
O advérbio “provisoriamente”, inserido na notícia, entrava em contradição com o teor de entrevista concedida por Candido ao Jornal de Assis em 12 de março de 1960. Instigado a tratar de sua formação, o crítico disse o seguinte:
“[…] obtive [na USP] o grau de Doutor e o título de Livre-Docente, tendo sido primeiro assistente de Sociologia de 1942 a 1958. Em 1956, todavia, afastei-me do ensino, em gozo de licenças sucessivas, e em 1958 aceitei o lugar que agora ocupo, de professor de Literatura Brasileira na nossa Faculdade. Era, de fato, um velho desejo consagrar-me exclusivamente à Literatura, que sempre versei como crítico e investigador”(29).
Ficava, portanto, registrada a confissão, por parte de Candido, de que a Faculdade de Assis lhe proporcionara a oportunidade de transitar da sociologia para a literatura, permitindo-lhe dedicar-se ao que mais lhe interessava. Nessa entrevista, também reconhecia Candido que se mantivera afastado de suas funções docentes de 1956 a 1958. No “Prefácio da primeira edição”, que vem acompanhando as edições da Formação da literatura brasileira, o autor informou ter revisto o primeiro volume da obra em 1956 e o segundo, em 1957 (Candido, 1981, p. 10).
Em outra entrevista, dessa vez concedida a Marilene Weinhardt no final da década de 1970, Candido declarou ter dirigido o “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, iniciado em 1956, enquanto se dedicava simultaneamente à docência e à crítica de teatro, exercida no mesmo cotidiano. Segundo suas palavras, o caderno literário era o que lhe “dava mais trabalho”, mas pagava “muito bem”, dando-lhe um “motivo profissional” para “estar lá” (apud Weinhardt, 1987, v. 2, p. 457). Deduz-se que, com o “gozo de licenças sucessivas”, era do jornal que provinham seus principais rendimentos. Como nunca fora finalidade de sua vida “ser diretor do ‘Suplemento’” (apud Weinhardt, 1987, v. 2, p. 457), Antonio Candido deixou esse trabalho “quando surgiu a oportunidade de passar para a Universidade em tempo integral”, satisfazendo, enfim, a sua “principal vocação” (apud Weinhardt, 1987, v. 2, p. 457). Fora Assis que lhe proporcionara essa mudança, como se depreende de sua sincera confissão à reportagem do Jornal de Assis, que lhe perguntara como se sentia deixando “um meio de cultura formado como São Paulo, para, como bandeirante, formar um meio cultural em Assis”:
“Sinto-me muito bem. É sempre um prazer colaborar em obra, sobretudo quando é, como a nossa Faculdade, orientada pelos melhores propósitos e organizada em moldes que tornam altamente fecundo o trabalho intelectual. Não creio que haja, no mundo, muitos lugares em que se possa produzir em tão boas condições quanto nesta Faculdade”(30).
Compunha o conjunto de “boas condições”, além do contrato de tempo integral, que implicava elevação significativa dos vencimentos, o cargo de professor catedrático, que Candido pôde conquistar em Assis. Embora a estrutura departamental introduzida em Assis viesse a neutralizar o poder dos catedráticos, os 17 cargos criados quando da fundação da faculdade eram de professores catedráticos. Até a década de 1960, o ensino superior no Brasil, seguindo a tradição universitária europeia, especialmente a ibérica, era estruturado em torno da figura do catedrático, que se considerava (e era) proprietário vitalício de uma cadeira, podendo excluir professores adjuntos, assistentes e auxiliares de participação nas decisões didático-pedagógicas de sua disciplina. A tendência prevalecente, entre os catedráticos, era a de considerar os demais docentes seus ajudantes pessoais, embora alguns deles fossem tão ou mais qualificados do que o próprio catedrático(31). Arbítrio nas decisões e rotina na pesquisa e no ensino eram riscos intrínsecos aos privilégios legais concedidos ao catedrático.
Reunindo seus catedráticos em departamentos, impondo alternância na direção departamental e criando a instância superior do Conselho Interdepartamental, a Faculdade de Assis tentava impedir o surgimento de “tiranetes” acadêmicos. A Universidade de Brasília, criada quatro anos depois, sob a direção de Darcy Ribeiro, introduziria no magistério superior o “regime de dedicação exclusiva”, excluindo na prática a categoria de professor catedrático (Riedel, 1985, p. 30). A Lei n. 5.540, de 1968, ano do AI-5 e de ruidosos movimentos estudantis por todo o mundo, pôs fim à figura do catedrático (Riedel, 1985, p. 31), mas não se pense que o regime militar tivesse feito concessões a reivindicações por mais democracia nas universidades. O fator decisivo para a mudança era que as universidades norte-americanas eram organizadas em torno dos departamentos de ensino…
Para Candido, que experimentara a dor e a delícia de ser assistente(32), era provavelmente muito importante tornar-se catedrático, conquistando autonomia acadêmica e a “liberdade de cátedra”, assegurada por lei (Riedel, 1985, p. 34). Cabe acrescentar que assistentes e auxiliares não tinham estabilidade e percebiam salários bem inferiores aos dos catedráticos. Em função de reivindicações de docentes da USP, o governador Carvalho Pinto encaminhou em março de 1959 projeto de lei concedendo estabilidade a auxiliares e assistentes após dez anos de efetivo exercício no cargo, mas desde que houvesse “pronunciamento por escrito do professor da cadeira [leia-se catedrático], no sentido de que a atuação do auxiliar de ensino houvesse correspondido aos interesses do ensino e da pesquisa”(33). Para agravar a situação de dependência, a legislação vigente assegurava “ao catedrático o direito de dispensar, quando julga[sse] conveniente, o auxiliar de ensino, colocado então em disponibilidade”(34).
Como catedrático de Literatura Brasileira, Candido procurou dar sua contribuição para que se cumprisse, na Faculdade de Assis, a “linha renovadora” traçada pelo governo do Estado. Segundo Carlos Erivany Fantinati, teria sido o autor da Formação da literatura brasileira responsável por “uma execução plena da proposta” de “renovação dos estudos das Letras, enquanto busca dialética entre interiorização e internacionalização da cultura” (Fantinati, 2011, p. 316).
Para a Faculdade de Assis, que introduziria pioneiramente disciplinas como Linguística, Teoria Literária e Literatura Comparada, História da Cultura e Cultura Brasileira (cf. Prado, 2014, p. 224), Candido planejou para a disciplina Introdução aos Estudos Literários um curso de crítica textual, que se adaptaria perfeitamente ao modelo de ensino integral com sessão de estudos matutina. De manhã, os alunos deveriam realizar exercícios de edição, que seriam revistos pelo professor à tarde (cf. Candido, 2005, pp. 76-8). Porém, não saiu tudo conforme previsto porque a USP enviou para Assis microfilmes de manuscritos do século XVIII em escala incompatível com o equipamento disponível.
Segundo Telê Ancona Lopez, a crítica textual nunca antes havia sido “especificamente ensinada na universidade brasileira” (Lopez, 2017, p. 107). Em 1977, a apostila mimeografada do curso, presenteada por Candido, ainda se mostrou de fundamental importância para o trabalho, capitaneado pela professora no Instituto de Estudos Brasileiros, de edição de inéditos de Mário de Andrade.
Com a crítica textual, Candido desvinculava-se da historiografia literária, pela qual tradicionalmente se pautava o ensino, e ofereceria a seus alunos uma formação específica do profissional das letras, vacinando-os contra o diletantismo dos simples apreciadores de literatura(35).
No final da década de 1950, assimilavam-se no Brasil os preceitos do new criticism anglo-americano e, no Rio de Janeiro, Afrânio Coutinho combatia o impressionismo da crítica de rodapé e propugnava a favor do exercício da crítica por especialistas formados pela universidade. Nesse contexto, Candido exercia em Assis o ensino da literatura baseando-se na análise imanente dos textos literários, que o new criticism pretendia realizar com precisão quase científica. Os textos que serviam de ponto de partida para suas aulas, aperfeiçoados ao longo dos anos, foram divulgados no livro Na sala de aula. No prefácio, Candido afirmou estar, em suas análises, “implícito o conceito básico de estrutura como correlação sistemática das partes” e ser nelas visível “o interesse pelas tensões que a oscilação ou oposição criam nas palavras e entre as palavras e na estrutura, frequentemente com estratificação de significados” (Candido, 1989, p. 5). Como se nota, noções fundamentais para o estruturalismo acabaram, com o tempo, a ser incorporadas ao seu trabalho. Porém, o autor de Literatura e sociedade não se satisfaria com a aridez de análises puramente formais. Exemplar a esse respeito é a análise, intitulada “Uma aldeia falsa”, de uma lira de Tomás Antônio Gonzaga, que esmiúça significado ostensivo dos enunciados, caráter alegórico do texto, organização das estrofes, sintaxe, tempos verbais, ritmo, tensões entre elementos contraditórios e obtenção de equilíbrio via simetria entre as partes para, finalmente, ao invocar a biografia do autor e o contexto histórico, construir uma leitura abrangente do poema. Candido assim justificou sua abordagem “eclética”:
“[…] se não fosse de quem é, a Lira 77 [cf. Rodrigues Lapa] seria diferente, embora sendo a mesma. Por outras palavras: a estrutura e a organização seriam as mesmas, mas o significado seria diferente em boa parte. Ela seria a mesma obra de arte, o mesmo objeto que se pode analisar, mas produziria efeito diverso e no fundo significaria outra coisa. Só sabendo que é de Gonzaga, e conhecendo as circunstâncias biográficas em que foi composta, ela adquire significado pleno e, portanto, exerce pleno efeito. O conhecimento da estrutura não basta” (Candido, 1989, p. 33 – grifos nossos).
O trecho em destaque corresponde a todo um programa para o exercício da crítica. No texto introdutório da Formação da literatura brasileira, obra publicada quando exercia o magistério em Assis, Candido expressou com mais franqueza a sua posição: “As orientações formalistas não passam, do ponto de vista duma crítica compreensiva, de técnicas parciais de investigação; constituí-las em método explicativo é perigoso e desvirtua os serviços que prestam, quando limitadas ao seu âmbito” (Candido, 1981, p. 33).
Sua vívida evocação da antiga Vila Rica acabou por suscitar a um de seus alunos de Assis, Horácio Tucunduva Jr., a ideia de conhecer a terra dos “poetas da Inconfidência”. Com apoio de Candido, Tucunduva apresentou a proposta a Soares Amora, que a acolheu favoravelmente. O roteiro literário da viagem, realizada em pleno período letivo, ficou a cargo de Candido; José Ferreira Carrato, professor de história, traçou o roteiro cultural, contemplando obras do Barroco mineiro. Com as despesas cobertas pela faculdade, viajaram os alunos de trem até São Paulo, de onde saíram em ônibus fretado com destino a Belo Horizonte. Da capital mineira, partiam todos os dias com destino às cidades a visitar: Ouro Preto, Congonhas, Mariana e Sabará. Sabe-se que, em Ouro Preto, alunos declamaram algumas das liras de Dirceu no balcão da casa em que morara Gonzaga e de onde avistava a bela Maria Doroteia(36).
Candido estava em Assis quando saíram à luz os dois volumes da Formação da literatura brasileira, obra que, de saída, teria alcançado repercussão “invulgar” e já se considerava “destinada a abrir novos rumos ao estudo da evolução das letras do País”(37). Segundo notícia do “Suplemento literário” do jornal O Estado de S. Paulo, Candido teria abordado o tema da formação da literatura no Brasil com “brilho e autoridade” e “à luz de conceitos originais”(38).
Obra máxima de Candido, a Formação seria, em pouco tempo, colocada ao lado de Os sertões, de Euclides da Cunha, Retrato do Brasil, de Paulo Prado, Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., como um dos grandes estudos já escritos sobre o Brasil. Questionado pelo repórter do Jornal de Assis se gostaria de permanecer para sempre na cidade, Candido deu a seguinte resposta: “O ‘sempre’ me assusta em qualquer caso… Direi, no entanto, que me sinto admiravelmente bem em Assis, seja no que se refere à cidade, seja no que se refere às pessoas, que são cordiais e discretas. Se puder ficar ‘para sempre’, ficarei com alegria”(39).
A Formação fizera de Antonio Candido uma autoridade nacional e logo internacional nos estudos literários e para além deles. Não seria desejável ao seu autor permanecer no relativo isolamento do interior paulista. Assim, tornou-se irresistível, para ele, a possibilidade de assumir na USP, a partir de 1961, a recém-criada disciplina Teoria Literária e Literatura Comparada.
Ao partir de Assis, Candido havia deixado, para sempre, um modelo de instituição universitária que atendia a legítimas reivindicações pela interiorização do ensino superior, introduzia uma estrutura administrativa e acadêmica essencialmente democrática, associava os alunos à pesquisa, como pesquisadores em formação, e impunha à pesquisa, entendida como base do ensino, um padrão de qualidade que lhe permitisse ombrear com instituições internacionais similares. Interiorização sim, mas com ambições científicas.
Alvaro Santos Simões Junior é professor da Unesp-Assis e pesquisador do CNPq e autor de, entre outros, A sátira do Parnaso (Unesp).
(1) Entrevista concedida ao Jornal de Assis (Pedro D’Arcádia Neto, “Valência de Don Juan e Assis, via São Paulo”, in Jornal de Assis, Assis, 6/dez./1958, p. 1).
(2) Inúmeras informações sobre a fundação da faculdade em Assis foram obtidas na documentação do Dossiê dos Primeiros Anos, preparado em 1988 por José Ferreira Carrato, docente do curso de História. Esse dossiê e as coleções dos jornais locais de Assis e de O Estado de S. Paulo foram consultados no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (Cedap), unidade auxiliar da Unesp, campus de Assis. Aproveita-se esse registro para agradecer a Rodrigo Fukuhara, historiógrafo do centro, que atendeu gentilmente a várias solicitações do autor.
(3) “O presidente Juscelino”, in Gazeta de Assis, Assis, 21/abr./1960, p. 1.
(4) Amilcar Romeu Pótiens, “O interior reclama faculdades”, in Jornal de Assis, Assis, 15/out./1960, p. 1.
(5) Como se sabe, essa faculdade é hoje uma realidade e pertence à Unesp.
(6) “Assis – Atenas do interior paulista!”, in Gazeta de Assis, Assis, 25/set./1959, p. 1.
(7) “Ensino e cabala”, in O Estado de S. Paulo, 7/fev./1957, São Paulo, p. 3.
(8) Idem, ibide..
(9) Idem, ibidem.
(10) “Crise sem precedentes na Universidade de São Paulo”, in Folha da Manhã, São Paulo, 31/dez./1957, pp. 1 e 2.
(11) Idem, ibidem.
(12) “Serão recebidos hoje pelo governador os diretores da Faculdade de Filosofia”, in Folha da Manhã, São Paulo, 28/fev./1958, p. 1.
(13) “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis”, in O Universitário, Assis, 5/jun./1957, p. 3.
(14) “Grandes atividades assinalaram a permanência do prof. Soares Amora em Assis”, in Gazeta de Assis, Assis, 12/dez./1957, p. 1.
(15) “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis”, in Gazeta de Assis, Assis, 8/mar./1958, p. 1. Transcrição de entrevista de Soares Amora publicada pela Folha da Manhã em 28 de fevereiro do mesmo ano.
(16) “Completamente equipada e instalada a Faculdade de Filosofia de Assis”, in Gazeta de Assis, Assis, 6/fev./1959, p. 1.
(17) Mudanças radicais no ensino de medicina nos Estados Unidos da América começaram a ser introduzidas após a divulgação em 1910 do chamado Relatório Flexner. A convite do presidente da Carnegie Foundation, Abraham Flexner visitou 155 escolas de medicina dos EUA e do Canadá e delas apresentou um retrato alarmante, denunciando a falta de qualificação científica de muitos docentes e a estrutura precária de muitas instituições. Como resultado da publicação do relatório, muitas faculdades de medicina apontadas como deficitárias simplesmente fecharam suas portas. As demais procuraram ajustar-se ao modelo elitizado propugnado por Flexner, baseado exclusivamente no conhecimento científico produzido por observação e experimentação. Com o passar do tempo, o modelo de “medicina científica” encontrou amparo decisivo na indústria farmacêutica, em um caso bem-sucedido de “simbiose” (Pagliosa & Da Ros, 2008, pp. 492-99).
(18) “Ainda a mensagem governamental”, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17/mar./1960, p. 3, 1-2.
(19) “Faculdade de Filosofia”, in Gazeta de Notícias, Assis, 3/mar./1960, p. 1.
(20) Idem, ibidem.
(21) “Nota da redação”, in Jornal de Assis, Assis, 12/mar./1960, p. 1.
(22) José de Assis, “Agora, os mestres é que precisam aprender”, in Jornal de Assis, Assis, 19/mar./1960, pp. 1 e 6.
(23) Idem, p. 6.
(24) Registre-se que um certo Heleno já respondera no Jornal de Assis aos que solicitavam “exames de segunda época”: “Não podemos esquecer que a nossa Faculdade foi projetada em moldes renovadores e para manter ensino superior em alto nível, não entrando no terreno fácil e atraente para muitos, de fabricar diplomas. Não, o seu objetivo não é esse” (Heleno, “Faculdade de Filosofia. Quantidade ou qualidade, eis a questão”, in Jornal de Assis, Assis, 5/mar./1960, p. 2).
(25) Informou Soares Amora ter nascido em Itaquera, como filho de imigrantes tangidos pela Primeira Guerra Mundial. Viveu seus três primeiros anos em sítio no interior fluminense e, depois, permaneceu no Rio de Janeiro, então capital federal, até os 11 anos. Após essa idade, viveu em Guaratinguetá. Atribuiu ao sogro, Fidelino de Figueiredo, influência em sua formação comparável à do próprio pai, mas no campo profissional e “científico”. A respeito de sua obra, declarou considerar sua História da Literatura Brasileira a “medida” do seu espírito no âmbito da historiografia literária (“O professor Amora: ‘Não seria o que sou, não me tivesse o destino colocado sob a ação destes dois homens’”, in Jornal de Assis, Assis, 2/abr./1960, p. 1).
(26) Idem, p. 6.
(27) Idem, ibidem.
(28) “Homenagem ao professor Soares Amora”, in Gazeta de Assis, Assis, 21/abr./1960, p. 1.
(29) “O professor Antonio Candido: ‘Não creio que haja, no mundo, muitos lugares em que se possa produzir em tão boas condições quanto nesta Faculdade’”, in Jornal de Assis, Assis, ano 40, n. 1.971, 12/mar./1960, p. 1.
(30) Idem, ibidem.
(31) Em evento dedicado à memória de Fernando de Azevedo, Candido declarou que, no tempo em que trabalhara ao lado do homenageado, “o assistente era um auxiliar direto do catedrático, nomeado por escolha e indicação dele, demissível a qualquer momento por simples manifestação escrita da sua vontade, pois não havia, como hoje [1994], estabilidade nem garantia de carreira, embora nos fosse exigido o doutorado. Tudo dependia, portanto, das relações sociais. Fernando de Azevedo era emotivo ao extremo, de maneira que as suas relações com os assistentes foram sempre marcadas pela afetividade” (Candido, 2002, p. 297).
(32) No evento citado na nota anterior, Candido pintou um retrato do catedrático de Sociologia II, de quem fora assistente juntamente com Florestan Fernandes. Tentando ser fiel a um homem que fora, em sua visão, “cheio de contradições”, evocou um Fernando de Azevedo formalista e cordial, impetuoso e compreensivo, firme em suas posições mas respeitoso pelas opiniões contrárias, inflexível com os desafetos e extremamente fiel aos amigos. No que interessa aqui, Candido testemunhou que Azevedo confiava “inteiramente” a seus assistentes “o movimento da Cadeira, pois, ao contrário do que faria supor o seu ar de comando, era um homem de equipe, preferindo decidir por consenso”. Pouco depois, no entanto, mostrou o outro lado da moeda: “Mas é preciso lembrar os lados difíceis de sua personalidade imperiosa, dada a rompantes nem sempre amenos. Por isso, a convivência com ele, normalmente tão agradável, podia ter momentos penosos ou gerar equívocos, que me levaram a pedir demissão três vezes do cargo de assistente – demissões que ele sempre negou, dizendo numa delas que se eu insistisse ele se demitiria junto” (Candido, 2002, p. 303).
(33) “Estabilidade para os assistentes da USP”, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 4/mar./1959, p. 1.
(34) “Os professores da USP”, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5/mar./1959, p. 3.
(35) Candido assim justificou sua proposta: “O estudioso da literatura não pode dispensar o conhecimento adequado dos aspectos externos, porque não lhe basta, como ao leitor comum e mesmo ao amador do bom gosto, sentir e gostar; a sua tarefa não se perfaz sem os conhecimentos obtidos pela erudição literária. Ora, tais conhecimentos principiam pelos elementos mais humildes da obra (o seu corpo ou configuração material), que podem […] assumir grande importância” (Candido, 2005, p. 14).
(36) “Cobaia. Alunos da Faculdade de Assis falam sobre a recente excursão levada a efeito a Minas Gerais”, in Jornal de Assis, Assis, 14/nov./1959, p. 1.
(37) Rolmes Barbosa, “A semana e os livros”, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19/dez./1959 (“Suplemento literário”, p. 4).
(38) Idem, “A semana e os livros”, in O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19/dez./1959 (“Suplemento literário”, p. 4).
(39) “O professor Antonio Candido: ‘Não creio que haja, no mundo, muitos lugares em que se possa produzir em tão boas condições quanto nesta faculdade’”, op. cit, p. 1.
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