Arte sobre foto de Marcos Santos/USP Imagens
Apresentação
Antonio Dimas
Mal recebido o convite honroso para montar este dossiê, a vontade desabusada era a de cobrir todas as formas de inserção de Antonio Candido em nossa vida intelectual e acadêmica, sobretudo as menos visíveis. Com o tempo, a realidade se impôs e os limites, com ela. Ficou para outra ocasião sua convivência forte com a cultura alemã, com a italiana, com a francesa, com a espanhola, com a latino-americana, com a de língua inglesa. Passamos ao lado de seu convívio com alguns acadêmicos europeus, norte-americanos e brasileiros. Fizemos de conta que seu gosto por genealogia não era importante, nem sua adesão convicta à vivência caipira, tão bem contrabalançada por um cosmopolitismo invejável, trazido do berço. Às poucas, mas consistentes, escapadas para o exterior, fizemos vista grossa, por absoluta falta de tempo material. Às relações pessoais e acadêmicas cultivadas com tanto carinho e por tantos anos, demos atenção nenhuma visto que se trata de tarefa para mais de um pesquisador. Da sua presença em conselhos editoriais pouco se fala; do tradutor episódico, menos ainda; e dos bastidores de articulações políticas de que participou, sobretudo em clima nublado, pouco se sabe.
Submetemo-nos, assim, aos prazos e aos limites. Mas nem por isso a colheita foi modesta, norteada sempre pela diversidade de atuação do nosso homenageado, cujo centenário de nascimento se comemora neste 2018. A extensão de seu pecúlio intelectual não é de pouca monta nem ficou restrita à sua geografia pessoal. Prova disso é a bibliografia que lhe dedicou Vinicius Dantas, anos atrás. Nas mais de 250 páginas, a messe é enorme. Só de artigos na imprensa são cerca de 800 ao longo de quase 70 anos. À espera de algum editor audacioso que se dispusesse a organizar edição fac-similar, dado que alguns comentários autocríticos são preciosos. Sobre seus livros, então, depõe a crítica acadêmica contemporânea, habituada a frequentá-lo desde que lançou sua Formação da literatura brasileira (1959), seu passaporte definitivo e permanente para ingresso nessa área, que lhe fora vetada anos antes.
Uma vez processado seu acervo documental, hoje alojado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, novidades virão, isso é certo. Duas delas, sem dúvida nenhuma, prontas para confirmar especulações rotineiras, que só não se firmaram por falta de prova material. Uma delas, a de que sua preparação para o ensino de literatura brasileira vinha de longa data, muito anterior à sua desistência da sociologia, em 1957. Vontade didática que não esmoreceu mesmo depois de um concurso, em julho de 1945, no qual prevaleceu o critério burocrático e não o intelectual. Uma outra: a de que seu repertório crítico não se fez de modo errático, senão lapidado até mesmo com grafismos, como apoio dos verbais.
Trilhas de pesquisa não faltam. Fôssemos mais aquinhoados com o zelo público, inúmeros outros intelectuais brasileiros de cepa, pretéritos ou contemporâneos, estariam fazendo companhia a Antonio Candido, em prol de uma configuração mais larga e mais funda de nosso campo intelectual, nem um pouco desprezível.
Para esta contribuição acanhada, não poupamos esforço, no entanto. Com colaboradores de quilate e assuntos de procedência variada, nossa pretensão é a de ampliar as referências em torno desse nome, que não hesitou em dilatar os limites de nossa metodologia de pesquisa, sem alarde, nem pompa, mas sempre cercado de colaboradores animados e de mangas arregaçadas, a despeito da descrença ou da hostilidade mal encoberta. Neste tópico, as duas ditaduras que viveu – 1937-1945 e 1964-1985 – foram-lhe pródigas. Principalmente, a segunda.
Fixada a pauta do dossiê, passamos aos convites, aqui alinhados por ordem alfabética de seus autores.
Para Alvaro Santos Simões Junior (Unesp-Assis), pesquisador reputado em historiografia literária do fim do século XIX brasileiro, pedimos um artigo sobre a passagem de Antonio Candido pela Faculdade de Letras daquela cidade da Alta Sorocabana, onde se dá o ingresso definitivo do sociólogo na área de letras, a partir de 1957. Em seu relato, Alvaro Simões demonstra que Antonio Candido não via incompatibilidade entre interiorização do ensino superior e qualidade docente. Interiorização sim, mas com ambições científicas.
De Celso Lafer, Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, diplomata experiente e especialista em Hanna Arendt, Octavio Paz e Norberto Bobbio, sobre os quais tem bibliografia própria, recebemos artigo que esclarece as ligações literárias e pessoais do nosso homenageado com obras e figuras ativas do cenário intelectual português. Detendo-se na edição definitiva de O albatroz e o chinês (2007), último livro de Candido, Celso Lafer chama nossa atenção para o papel da memória “afetiva e intelectual na fatura” desses ensaios, fortemente “dotados de afinidades temáticas, seja em seu conjunto, seja em suas partes”.
João Baptista Borges Pereira, Professor Emérito de Antropologia da FFLCH-USP, onde atuou por mais de 40 anos como docente, permitiu-se evocar seu convívio prolongado com Antonio Candido, marcado, já desde o início, pela capacidade de síntese e de simplicidade do colega mais velho. Ao recebê-lo como candidato a uma vaga de Ciências Sociais em 1955, Antonio Candido lhe propôs como redação um tema nada rebuscado: O homem nasce, vive e morre nos braços da sociedade.
Graças a João Roberto Faria, especialista em teatro brasileiro na FFLCH-USP, temos acesso a uma informação pouco conhecida e menos divulgada: a das vinculações de Antonio Candido com o teatro brasileiro, encenado ou não. De quebra, seu artigo recupera as ligações pessoais e intelectuais de Antonio Candido com Decio de Almeida Prado, ambos preocupados, na mocidade, com a “necessária modernização do teatro brasileiro”, além, é claro, de mostrar parte do funcionamento interno do grupo da revista Clima (1941-44).
Para não nos limitarmos ao âmbito brasileiro, pedimos à colega Sandra Guardini Vasconcelos (FFLCH-USP), estudiosa do romance inglês e curadora do Acervo Guimarães Rosa do IEB-USP, um texto que desse conta da inegável familiaridade de Antonio Candido com a crítica anglo-americana. Em sua colaboração, Sandra Vasconcelos garante-nos que “a descoberta dos críticos anglo-americanos na década de 1940 iria […] abrir”, para Antonio Candido, “perspectivas novas para a abordagem do texto literário”, o que só reforça a preparação precoce para sua atuação em letras.
Quanto à força das parcerias intelectuais bem-sucedidas, temos a colaboração de Thiago Nicodemo (IFCH-Unicamp), que se empenhou em traçar pontos de contato entre o Antonio Candido da Formação da literatura brasileira (1959) e o Sérgio Buarque de Holanda dos Capítulos de história colonial, livro organizado tardiamente, em 1991, por Candido. Preparando-se para escrever uma eventual biografia cruzada de ambos, Thiago Nicodemo adianta que a “intenção dos dois recortes” – o da Formação e o dos Capítulos – foi “a mesma: realizar uma história da literatura brasileira que negasse a projeção teleológica da nacionalidade e representasse uma inovação técnica de problemas e métodos, em compasso com a vanguarda da cultura acadêmica e universitária do seu momento”.
Walnice Nogueira Galvão, Professora Emérita do Departamento de Teoria Literatura e Literatura Comparada da FFLCH-USP, sempre esteve voltada de preferência para a cultura brasileira. Parte respeitável de sua bibliografia são seus estudos em torno de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Em oportuna sugestão, Walnice propôs-se a elaborar recuperação documental dos trabalhos iniciais de Antonio Candido, quando a sociologia se lhe oferecia como alternativa inicial. Acolhida com entusiasmo a proposta, Walnice montou um segundo dossiê para este número, trazendo-nos de volta artigos de difícil alcance e, como cereja do bolo, uma entrevista inédita de Antonio Candido, realizada com Paulo Betti em 2007, quando entrevistador e entrevistado retomaram o mote da cultura caipira como assunto de prosa solta, espichada e cantada.
De nossa parte, escolhemos a restauração histórica de memórias fragmentárias e pessoais, que nos vêm dos tempos de recém-formado, quando o nome Fapesp soava de forma enigmática pelos corredores da Maria Antonia, onde tínhamos acabado de aportar, vindos do interior paulista.
Entre os alunos de Antonio Candido, que por ali circulavam de modo desencontrado e tenso, sabia-se que alguns deles tinham sido beneficiados com bolsas de estudo por essa sigla misteriosa. Mas quem, exatamente? Não demorou para que nomes como Pérola de Carvalho, Maria Helena Grembecki, Nites T. Feres e Therezinha Aparecida Jardim Porto fossem se tornando cada vez mais conhecidos. Além de conhecidos, admirados, porque de forma difusa sabia-se também que estavam encarregadas de uma função que nos soava interrogativa: estavam encarregadas de pesquisa.
Tantos anos depois, tentamos montar esse xadrez com base nos arquivos da própria Fapesp, órgão de fomento à pesquisa estadual, que abriu suas portas para as letras graças à autoconfiança e à persistência de Antonio Candido.
Finalmente, como imagens desse período decisivo da consolidação acadêmica de Antonio Candido, pudemos contar com o apoio generoso da família. Foi através de Laura Escorel, sempre zelosa com a documentação legada por Gilda e Antonio Candido, seus avós, que este número da Revista USP montou um repertório fotográfico relativo aos anos 1955-1965, momento decisivo para a inserção de Antonio Candido nas letras.
Se este conjunto de trabalhos responde ou não às necessidades de uma configuração mais massuda do perfil longilíneo e discreto de Antonio Candido, é a resposta que aguardamos dos leitores.
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