Foto: Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Antonio Candido de Mello e Souza
A cultura caipira
.
Walnice Nogueira Galvão
Nosso clássico sobre cultura caipira, Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, alcança a 11ª edição, algo raro em sua especialidade. Lançado em 1964, dez anos após ter sido apresentado como tese de doutoramento, sai agora no bojo da reedição da obra completa, projeto de Ana Luísa Escorel para sua editora Ouro sobre Azul.
Apresenta a singularidade de ser um trabalho socioantropológico, de minuciosa etnografia, inserido na obra do mestre da crítica literária, o que se deve a contingências de opção intelectual. Ainda quando estudante, Antonio Candido participou da revista Clima, criada e levada avante por seus colegas da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, no verdor dos 20 anos. Ao distribuírem as tarefas, definiram também os campos em que se tornariam especialistas: Antonio Candido ocupou-se de literatura, Paulo Emílio Salles Gomes, de cinema, Decio de Almeida Prado, de teatro, e tanto Gilda Rocha (futura esposa de Antonio Candido) quanto Lourival Gomes Machado, de artes plásticas.
Entretanto, era preciso trabalhar e ganhar a vida, e Fernando Azevedo, catedrático de Sociologia naquela casa, ofereceu-lhe o posto de assistente. Ao mesmo tempo, Antonio Candido ia-se tornando crítico literário militante, no que então se chamava “crítico de rodapé”, função que exercia em diversos jornais e revistas. Essa dupla vertente o encaminharia ao concurso de Literatura Brasileira, cátedra em que se abriu uma vaga na mesma casa. Embora não obtivesse o cargo, dali sairia com o título de livre-docente em Letras, o que lhe permitiria mais tarde fazer o que mais queria, que era bandear-se para o ensino de literatura.
Mas continuava ensinando sociologia, donde o presente livro, resultado de um doutoramento advindo da necessidade de obter títulos também em ciências sociais.
Baseado em pesquisa de campo no interior do estado de São Paulo, o livro focaliza os meios de vida dos lavradores pobres e as transformações que o passar do tempo acarretou, no âmbito dessa cultura que extravasa de suas fronteiras e penetra nos estados vizinhos, integrando a “área do ‘r’ retroflexo”.
Uma das passagens mais impressionantes é a definição dos mínimos vitais, à borda dos quais esses patrícios sobrevivem, acossados materialmente pela penúria e socialmente pela anomia. Seu correlato é a “fome psíquica”, ou seja, a privação de proteína animal aliada à frustração do desejo do que é caro e escasso, donde o anseio por carne.
Decorre daí a fina análise da história narrada por Nhô Berto Lameu – a quem se deve um dos depoimentos mais penetrantes –, que a ouvira do avô, na qual vários níveis vão-se entrelaçando. Um mero caso prodigioso revela-se sob o escrutínio do mestre, um mito escatológico complexo, em que figuram a Idade de Ouro, o Apocalipse, o Anticristo, o Diabo e finalmente o Boi Assado, o qual, oferecendo-se com talheres espetados às pessoas, tem o condão de separar os justos dos ímpios no Juízo Final. O Boi Assado vem a ser uma criação poética que simboliza a fome psíquica e personifica a conjuntura dos mínimos vitais. O exercício de uma etnografia compreensiva permitiu intuir uma dimensão estética, cuja sobrecarga de significados deu frutos inesperados.
A descendência propriamente científica e universitária é inumerável. Historicizando os estudos de comunidade, impregnou a chamada “escola paulista de sociologia”, originando uma linhagem de trabalhos numa área que passou a se chamar sociologia rural, e espraiou-se pelo país afora (cf. Luiz Antonio Jackson, A tradição esquecida, 2002).
Dada a excepcional abertura para a dimensão simbólica, nem sempre encontrada em trabalhos de sociologia, não é de surpreender a fecundação que Os parceiros operou em setores artísticos, de que se rememora aqui um espetáculo teatral e um filme.
ORIGINALIDADE
A encenação de Na carrera do Divino foi obra do Pessoal do Victor, grupo criado e animado pelo ator, diretor e autor Paulo Betti, então ensaiando os primeiros passos na profissão, nos anos 70. Contou com texto de Carlos Alberto Soffredini e mobilizou uma variedade de canções, algumas praticamente desconhecidas, mas todas belíssimas. O espetáculo, dedicado a Antonio Candido, além de catiras, cururus e a “carrera do Boi Assado”, incluiu modinhas emprestadas da Série Música Popular, da Discos Marcus Pereira. O êxito de crítica e público, bem como a gravação da trilha sonora, ratificaria a originalidade do aproveitamento – raríssimo – da música caipira na dramaturgia.
A vez do cinema chegaria nos anos 80, quando André Klotzel dirigiu A marvada carne (1985), com Regina Casé e Fernanda Torres. Retomando o tema da fome psíquica, a obra absorveu vários elementos do mundo rústico paulista, desembocando no churrasquinho de fundo de quintal, nas horas livres do fim de semana vivido na periferia da metrópole, para onde afluíram em massa os desalojados do campo. Inspirado na leitura de Os parceiros, Klotzel fez do autor de Na carrera do Divino seu roteirista e conservou Adilson Barros como protagonista. Além de Antonio Candido, o filme aproveitou textos de Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira e Cornélio Pires, todos eles nomes da cultura caipira.
Filme e montagem teatral ostentam o sinete recebido de Os parceiros do Rio Bonito, que profundamente os impregnou, dando origem a uma prole que até hoje se faz notar em seriados de televisão e em outros filmes.
Texto originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, 18/9/2010.