Foto: Ivo Gonçalves/PMPA - Flickr CC

Sobre a beleza do futebol 

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Gunter Gebauer
Tradução de Marcus Baccega

resumo

Este ensaio tem a intenção de discutir os critérios para compreender a beleza no futebol tendo como referência reversa as categorias de beleza aplicadas às obras de arte. O futebol, ao contrário das artes, tem como característica um equilíbrio dramático que visa a impedir a concretização de um jogo belo pela equipe adversária.

Palavras-chave: futebol; arte; belo; estética; Copa do Mundo.

 

abstract

This essay aims to discuss the criteria for understanding beauty in soccer; and it uses the categories of beauty applied to artworks as its reverse reference. Unlike art, soccer features a dramatic balance in which each team seeks to prevent the opponent from putting up a beautiful game.

Keywords: soccer; art; beauty; aesthetics; World Cup.

No futebol são admiradas várias coisas, principalmente um belo jogo. De preferência, o admirador acessa expressões de estética; ele fala da “pura beleza” de um chute, da perfeita coordenação do jogo, da trajetória ideal da bola...

De fato o futebol tem, surpreendentemente, dimensões estéticas, de modo que a comparação com uma obra de arte não é algo muito distante. O reconhecimento que se coloca quanto a um belo jogo, um chute, um time de futebol, funda-se na surpresa de que o homem é capaz de realizar, com os pés, uma beleza tão admirável. Ela não se relaciona, em primeiro plano, ao movimento dos pés e das pernas, à postura corporal ou à “coreografia” dos jogadores. No futebol, a admiração pelo movimento da bola está relacionada, em primeiro plano, não à habilidade dos jogadores, mas ao produto de sua ação. O espanto é suscitado pelo fato de ser possível manipular a bola em movimentos tão perfeitos.

Na arte erudita, são as mãos a dar beleza aos objetos por elas produzidos. Mas os objetos da arte não são movimentos, e sim obras de arte. Nelas os movimentos do corpo se objetivam; isso significa: elas adquirem uma forma, que não é o próprio movimento; esta (a forma), destacada delas (das mãos), tem uma maneira de existir própria, como o quadro ou a estátua, que o artista constituiu com seus movimentos. Mas mesmo as artes que consistem em movimentos e que não se separam da atuação corporal, como a dança ou a arte de performance, diferenciam-se do futebol essencialmente: no caso delas, não se trata de movimentos individuais, mas da totalidade da obra, que se forma a partir de todos os movimentos individuais. No futebol, uma única trajetória da bola pode decidir um jogo e, portanto, como ainda veremos, ser bela. Na dança e na performance, por outro lado, os movimentos constroem juntos toda a obra, que atua em sua totalidade sobre o observador.

É decisivo para a beleza da obra que ela possa se desdobrar livremente, portanto não seja restrita por nada que não pertença à própria obra. Por conseguinte, cada obra individual é apresentada de modo que possa agir sobre o observador, sem constrição, com todas as suas qualidades: para a performance é previsto um espaço próprio; quadros e estátuas entretêm um ambiente no qual podem se desdobrar. Ninguém tem a ideia de recobrir um quadro com outro ou posicionar duas estátuas de modo que se toquem. Um poema também tem uma superfície própria na página do livro. Entre suas linhas não são impressas partes de outro poema. Se, por vez, isso ocorre, tal acontece com a intenção de fazer uma única obra a partir de dois poemas e, assim, engendrar uma tensão entre duas partes heterogêneas. Ou ocorre de modo não intencional, por exemplo, quando um poeta, oprimido por sua inspiração, redige dois poemas sobre uma mesma e única folha de papel, os quais ele não é capaz de distinguir em seu furor criativo. Assim aconteceu com um poema de Friedrich Hölderlin: somente por meio do cuidadoso trabalho de um intérprete, Peter Szondi, foi descoberto que o poema manifestamente confuso não era, de forma alguma, um texto incompreensível, porém estava montado a partir de dois poemas distintos, que Hölderlin, visivelmente com pressa, escreveu, um em cima do outro, sobre o mesmo papel.

A beleza na arte necessita do livre desdobramento de sua totalidade. Se se tomar a arte a sério, deve-se conceder à obra de arte o direito de mostrar suas qualidades de maneira desimpedida: a coerência interna de sua sequência, suas proporções, seu equilíbrio, ou, também – como na obra de arte moderna –, as tensões e irritações internas que nela o artista inseriu. Até certo ponto a obra de arte exige, ela mesma, esse direito a um livre desdobramento. Ela permite ao observador perceber sob quais condições se exprime: suas qualidades apenas aí são realizadas, quando não é perturbada por circunstâncias externas. Para que possam ser adequadamente recepcionadas pelos observadores, as obras de arte precisam, pois, manter trânsito livre, para que possam mostrá-las (qualidades) de forma efetiva. Todas as resistências que obstruem a obra e não são intencionadas nela própria devem ser evitadas a todo custo.
Se, a título de exemplo, se pendurasse um quadro de Van Gogh diretamente ao lado de uma pintura sacra da Renascença italiana, talvez fosse interessante em virtude da dissonância, mas as características artísticas, as concepções de ambos os quadros se perturbariam, obstariam e extinguiriam reciprocamente. Daí não se pendurarem, usualmente, tais quadros juntos, a não ser, talvez, para atiçar irritações intencionalmente, para romper o entendimento usual da arte. Mas não se fará justiça à obra de arte mesma (o que também não se quer com tal experimento).

Como se dá, então, com a beleza do futebol? Sob um ponto de vista, é semelhante àquela da arte: quando movimentos podem se desdobrar autenticamente no futebol, nós os consideramos belos. Mas isso raramente é o caso: o esporte é concorrência, agon – tudo nele é estruturado para perturbar os movimentos do outro time. Não há aqui qualquer direito a um livre desdobramento da totalidade do movimento. É quase a tarefa do adversário atrapalhar os movimentos dos outros, para que os mesmos não consigam se realizar. Toda a energia está direcionada para que nenhuma obra se constitua. Aqui é criada exatamente a situação que se quer evitar de toda forma na arte – a situação em que não se consegue desdobrar as qualidades estéticas da ação. Um artista pode se colocar uma tarefa na qual ele poderia fracassar – mas ele o faz no intuito de buscar maior qualidade para sua obra, a partir do incremento de suas exigências. No futebol, entretanto, sempre está presente um adversário, que combate o sucesso de movimentos e quer impedir a beleza.

Para dizer sem rodeios, o futebol é um jogo dirigido para o fracasso da beleza. Como pode, afinal, sob tais condições, constituir-se beleza no futebol? Para responder a essa questão, precisamos, primeiramente, refletir sobre as condições em que atribuímos beleza a uma ação esportiva. É belo um chute que preenche todos os critérios estéticos para a beleza, mas que passa ao lado da trave? Como seria com um drible grandioso, jogado contra três, quatro adversários, mas que fica barrado no quinto? Como seria no caso de uma cobrança deslumbrante com uma trajetória perfeita, mas que é interceptada pelo adversário? Esses exemplos mostram atuações que apenas no começo dão certo de fato. É próprio à beleza do futebol que elas conduzam ao objetivo, e isso significa que tenham sucesso. De forma distinta da arte, opõe-se resistência às ações esportivas, que elas devem superar. Se tal não lhes sucede, não podem aspirar à beleza. Parecem belas, porém no início – sua beleza, todavia, não se desdobra – ela é negada ao fim. Beleza e superação de oposição pertencem intimamente ao mesmo contexto. No futebol, aquilo que é belo deve ser efetivado contra o adversário.

A beleza das ações no futebol está necessariamente vinculada à dureza; não pode haver uma beleza suave no futebol. Ela não é um diálogo com o outro time; ela não se desenvolve em uma discussão isenta de dominação com ele. A beleza apenas se consubstancia quando o domínio é atingido. Essa descoberta soa marcial – a beleza precisaria se concretizar apenas na guerra ou com ações belicosas? Assim parece ser à primeira vista. Quando um jogador realiza ações com qualidades estéticas, mas que não atingem efeito decisivo sobre o adversário, tal parece apenas bom. No futebol se julga sem piedade: ele é um “jogador do belo”; ele produz cenas agradáveis, mas não atinge a dominação. Se o jogar com beleza prossegue com poses do show business, o jogador pode se tornar um astro de revistas tipo Lifestyle – um desenvolvimento que se poderia caracterizar como efeito Beckham: belos flancos, faltas afiadas, entradas espetaculares em campo sem grandes efeitos futebolísticos. Na memória permanecem não seus gols, mas, muito mais, seu penteado e seu estilo de vida, que favorece a vida urbana nas metrópoles britânico-americanas, a moda e a mútua interpenetração entre modelos corporais e cultura pop. No julgamento dos fãs de futebol, esse tipo de estética desperta inequívoca depreciação.

O futebol é sério demais para considerar relevante um jogo agradável ou uma boa aparência. É um jogo no qual cada time luta para roubar do outro a possibilidade de realizar um jogo belo. Quando isso sucede, na mesma medida, a ambos os adversários parece ser impossível a constituição da beleza. Isso de modo algum significa que, dessa situação, se constitua um jogo horrendo. A partir da equivalência entre os adversários pode se desenvolver uma profunda tensão – uma aniquilação simétrica das chances adversárias. Se quisermos atribuir uma estética ao futebol, então não pode haver uma beleza que provoque bem-estar nos participantes, tal como esperado da arte clássica.
No entanto, armazena-se profundamente nas expectativas dos torcedores justamente o desejo por beleza. Que o próprio time vença é o aspecto pragmático de jogadores e torcedores. Seu verdadeiro amor vale para o jogo belo. Assim, na Alemanha, em tempos nos quais a seleção nacional jogou com grande sucesso internacional, praticamente se lamentou que o jogo alemão fosse, sobretudo, eficiente e vigoroso, mas nunca preenchesse a nostalgia/a ânsia profunda, que, aos olhos do público alemão, foi preenchida pela seleção brasileira. A superioridade sobre o adversário deve também se expressar na qualidade estética do jogo. Essa beleza não representa um ingrediente para um jogo pragmaticamente orientado para a vitória. Ela é exatamente aquilo que fundamenta o caráter de um jogo bem-sucedido. Ela faz a superioridade do time, com a qual ele supera o potencial de perturbação do time adversário. É porque seu jogo é belo que o time é superior ao adversário. Assim foi com as inesquecíveis vitórias da seleção brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1970, que empregou suas qualidades estéticas – leveza, brilhantismo técnico e elegância ao jogar – para a superação da resistência adversária.

Nesse ponto de vista, a ameaça do adversário pertence à beleza do jogo: porque apenas então pode se formar a beleza, quando a resistência é superada. Se apreendemos a beleza nesse sentido, também a relacionamos à nossa própria experiência: ela (beleza) expressa algo sobre nós mesmos, algo que não conseguimos dizer com nossa linguagem normal e nosso entendimento cotidiano. Ela nos conduz a uma camada da experiência de nossa existência que não conseguimos nem dizer, nem pensar conceitualmente.

Resumamos nossas considerações:

  • Uma forma de jogar só pode ser bela se o adversário exibir uma ameaça séria – uma tal ameaça, de modo que ele também tenha uma chance de vitória. O jogo, portanto, é duro: um jogo fácil é, muito mais, algo agradável, tanto quanto a superação do adversário não apresente qualquer problema.
  • Uma ação no futebol, então, só é bela se a ameaça do adversário for superada, e, de maneira efetiva, de tal sorte que a beleza do jogo faça parte da superação.
  • A ameaça do adversário salienta uma característica fundamental da beleza no futebol: a luta, a superação da ameaça de aniquilação. Desse ponto de vista, inverte-se a relação entre arte e futebol: beleza, no futebol, não se deve mais conceber como uma variante do belo fácil e sem sentido, que possua um peso estético reduzido, na medida em que se trata de ganhar. Então o futebol se deixa compreender como uma forma de beleza mais antiga, mais séria que a arte burguesa estabelecida. Ele (futebol) conduz a um mundo de conflitos, de lutas, de riscos e perigos aos quais somos expostos. Devemos agora esclarecer que tipo de jogo o futebol é hoje: o que significa dominação no jogo? Como ela é conquistada e defendida?

Preliminarmente, uma palavra para o esclarecimento a respeito de que futebol se fala a seguir: eu observo o futebol das melhores ligas do mundo e das seleções nacionais que, aqui no Brasil, disputarão a Copa do Mundo. Sobre ele (futebol) se concentra a atenção de um público mundial. É um dos mais importantes objetos dos meios de comunicação em todos os países em que o futebol desempenha uma função. Dito de modo um tanto exagerado, hoje é tão intensivamente apresentado pelos meios de comunicação, que não se consegue mais distinguir entre um futebol “verídico” e um “feito pelos meios de comunicação” – realidade e ficção estão entrelaçadas uma na outra. Em virtude de seu extraordinário papel na publicidade, ele exibe um poder próprio, que joga com sua força perante a política. Os jogadores principais gozam de elevado prestígio; é-lhes emprestado um status que vai muito acima daquele de um mortal comum.

Qual é a característica decisiva do futebol?

O futebol é um embate entre dois times com estrita simetria. Para cada partida vale: se ela é bem-sucedida, constitui-se uma desvantagem para o adversário. Quanto mais relevantes forem o sucesso e o ganho com ele feito, mais pesada será a derrota para o adversário. Mas apenas quando um gol é alcançado, o ganho desempenha uma função para o resultado final; todos os outros ganhos no jogo (como um domínio de bola, uma falta, etc.) contam apenas quando levam a um gol. Todo gol importante (em especial um gol direcionado, um gol de compensação ou de conexão) representa, para o time que o sofre, uma fatalidade; para o time bem-sucedido, provoca felicidade.

Com a codificação felicidade-fatalidade são valoradas todas as ações do jogo. Quem perde o jogo não obtém para as ações individuais, em relação às quais ele foi vencido, nada por seu desempenho – nenhum recorde, nenhuma valorização, nenhum ponto, nada que pudesse levar consigo (como no atletismo, na natação ou na ginástica rítmica). Sua contribuição conjunta é destruída, seus bons passes de bola, seus gols, seu elevado desempenho na defesa (quando o adversário, ao fim, marca o gol decisivo). O vencedor obtém todos os pontos; nada divide com o perdedor – diferentemente das disciplinas atléticas, nas quais aquele que é superado obtém uma parcela da glória do vencedor, pois ele o obrigou a um desempenho máximo e, por exemplo, atingiu seu desempenho.

A beleza no futebol está, como vimos, ligada ao sucesso. Sucesso no futebol é, para o time derrotado, uma pena de fatalidade. Os jogadores vitoriosos o vivenciam (sucesso) como deliciamento na crueldade. Agora concebemos que a beleza no futebol não pode provocar prazer: ela repousa sobre uma estética da crueldade. Quanto maior a resistência do adversário, maior é a beleza do jogo e mais profundamente a felicidade/sorte é sentida pelos vencedores, e a fatalidade, pelos perdedores.

Quando um time é muito superior a outro, poder-se-ia esperar um jogo singularmente belo, pois a vitória lhe vem facilmente. Uma vitória fácil, todavia, não tem grande profundidade, já que não tem de superar nenhuma grande oposição – corre o risco de se tornar agradável. Na luta entre dois times equiparados, por outro lado, a solução/saída não é previsível. Uma minúcia pode decidi-lo – um centímetro na cobrança de falta, um minuto na prorrogação, uma desatenção do goleiro, um erro da atuação da defesa. A derrota, em tal jogo, é especialmente cruel. Quando, em uma situação de equilíbrio, a vitória ocorre com uma ação estética, sua beleza aproxima-se da perfeição.

O futebol é idealmente apropriado para a junção de beleza e crueldade; isso por dois motivos: por um lado, os gols são extremamente raros no futebol; pode-se ganhar um jogo com um único gol. Em quase todas as outras modalidades de jogos com bola, é diferente – no handebol são lançados, com frequência, mais de 20 gols, no basquete mais de 100 pontos são atingidos, no voleibol e no tênis de mesa são jogadas três rodadas com 15 pontos; no tênis a vitória se constrói lentamente, como a clássica fortuna do capital. Com tamanha quantidade de gols ou pontos reunidos, pequenas falhas ou efeitos do acaso podem ser novamente compensados; só raramente são decisivos para o sucesso do jogo. No futebol, uma única falha pode causar a derrota de um time no jogo mais importante do ano na Europa, na final da Liga dos Campeões.

O segundo motivo está intimamente relacionado com esta raridade dos gols: o papel do acaso no futebol é claramente maior que em outros jogos: joga-se com os pés, que, de longe, não possuem a mesma pronta habilidade das mãos. Eles precisam adquirir a destreza de dominar a bola, um instrumento de jogo difícil e imprevisível. É impossível que o jogador a tenha totalmente sob controle. Isso, por conseguinte, está excluído, pois ele não pode conservá-la. Na interação entre pés e bola, em cada jogo, chega-se aos efeitos do acaso. Mesmo os melhores times perdem a bola por conta do acaso.

O futebol constituiu-se a partir do fato de que as habilidades das mãos foram transmitidas para os pés. Pode-se contemplá-lo como um tipo de experimento. Deve ser testada a capacidade humana de se fazer novamente projeto em situações de perigo, de reformatar o corpo, de resolver, a partir do novo, sua perigosa existência. Qual é o princípio dessa reformatação? Ou, formulado de modo um tanto exagerado: qual é a norma fundamental da capacidade humana de se reprojetar?

O influente antropólogo Arnold Gehlen caracteriza o homem como um “ser de carência”, como o mais fraco e indefeso dos animais. Portanto ele só é capaz da sobrevivência, assim diz (o antropólogo), porque utilizou suas faculdades intelectivas em situação extrema de necessidade. Pode-se contra-argumentar a afirmação de Gehlen em dois pontos decisivos: os seres humanos não são, por natureza, de modo algum seres de carência; eles construíram, ao longo de sua hominização, de sua ereção, uma estratégia de sobrevivência bem-sucedida. Isso não se baseia, por outro lado, em “desempenhos intelectivos”, que eles tivessem colocado muito acima da inteligência dos animais, como Gehlen quer dizer. Com efeito, a estratégia de sobrevivência do homem é especialmente eficiente: ela não se reduz a uma adaptação bem-sucedida ao ambiente – mas ela altera suas próprias condições de vida a partir da base. Friedrich Nietzsche caracteriza esse processo como “novo projetar-se do humano”; ele quer dizer, com isso, um longo processo de remodelagem do corpo e suas faculdades, que ocorre na prática cotidiana de lidar com a vida. Este “trabalho do homem sobre si mesmo” é direcionado contra o perigo ao qual toda a vida, tanto vegetal quanto animal, está fundamentalmente sujeita: toda a vida é vulnerável; pode perecer por várias causas. Todos os seres vivos, então também o homem, desenvolvem estratégias contra os perigos que os ameaçam.

Com sua estratégia, que o homem contrapõe à sua situação de perigo, sua ereção, ele incorre em alto risco. A estratégia é arriscada na medida em que altera as condições fundamentais da ação humana. Ela transforma os pés em único portador de sua existência. O homem perde sua estabilidade originária. Como quadrúpede, tinha uma condição inequiparavelmente segura – em estado ereto, está constantemente em perigo de cair, inclinar-se, tropeçar, de perder seu equilíbrio. Seus pés foram recriados, de órgãos de apreensão, em planos de apoio – muito pequenos e extremamente ativos; o mesmo se deu com sua coluna vertebral, que, então, precisou suportar uma carga de pressão maior.

Como princípio deste estágio decisivo da evolução humana, deixa-se apreender; com uma arriscada metamorfose do corpo, o homem supera sua situação indefesa, frágil; por meio de suas novas condições de vida, ele fortalece sua capacidade de resistência exatamente nas zonas de perigo, nas quais ele é fraco. Nassim Nicholas Taleb resume o princípio fundamental da estratégia de sobrevivência humana na fórmula: o homem é capaz de transmutar sua existência frágil em uma condição de vida antifrágil. Ele pode assegurar sua sobrevivência por meio da formação de novas características – primeiramente pela aquisição de novas habilidades corporais; delas se forma uma poderosa sequência de novas faculdades.

A partir da tese de Taleb acerca da superação arriscada de um estado frágil em favor de um estágio antifrágil, recai nova luz sobre a curiosa constituição do futebol: o que fez o homem antifrágil em seu desenvolvimento é, no futebol, novamente abandonado. Com a invenção desse jogo, a roda da história da humanidade foi, pois, girada ao revés em várias revoluções, até aquele momento da ereção, no qual o homem então começa a usar livremente suas mãos. Nesse ponto o jogo pronuncia sua interdição à mão. Isso atinge todos os jogadores – até mesmo o goleiro, embora seja “aprisionado” a um espaço penal. Quem adentra o jogo de futebol, se sujeita, voluntariamente, à condição de se tornar novamente frágil. Com uma vontade de derrotar, arrisca – no jogo – a segurança de sua existência, com a intenção de superar sua situação de perigo artificialmente produzida, para ganhar novas seguranças e um gozo intenso e repleto de sentido.

No futebol, o decisivo ponto crucial e de inflexão da evolução humana é mais uma vez encenado, em um cenário inventado: é exemplarmente posto à contemplação o modo como se tornou possível ao homem emancipar-se de uma posição de perigo e desenvolver novas capacidades. O jogo mostra o princípio fundamental pelo qual o homem adquire a característica do antifrágil e o domínio sobre uma situação de total incerteza.

Como podem os jogadores suportar e dominar tal situação de incerteza e a estética da crueldade? E que efeitos elas têm sobre os torcedores? Devo tratar dessa questão na última parte de minha fala. Que a beleza no futebol é cruel, só se percebe quando se mergulha no jogo, quando se rende-se a ele. Somente em tal imersão, na situação de completo mergulho nas profundezas do futebol, experimentamos os sentimentos que ela provoca – o sentimento de felicidade do vencedor, para o qual deu certo aquilo que era decisivo, e ao qual agora tudo se concede; e o desespero do perdedor, que também poderia ter ganho, mas que, então, perdeu tudo. Quem for versado no mundo das sagas gregas, pode aí reconhecer uma estrutura bem parecida com a dos combates mitológicos: vendo-se da superfície, trata-se apenas de um jogo, de uma competição entre dois oponentes. Nisso não se vê o que está em jogo – no futebol, um gol é apenas um gol. Não é um símbolo para nenhuma outra coisa. Não representa qualquer mensagem mais profunda. Mas pode, emocionalmente, ter o efeito de uma aniquilação – para os jogadores e para os torcedores. Para um treinador, isso pode ter, como consequência, efetivamente, a aniquilação de uma existência.

Na literatura sobre jogos, é salientada a alegria dos jogadores; de fato é ela o pressuposto para que, afinal, se jogue. Mas só raramente se faz referência ao outro lado do jogo, ao seu obscuro subterrâneo. Em importantes derrotas, os times se veem como em situação de perigo, ameaçados, como se seu destino estivesse à beira de um penhasco. Na disputa por um campeonato, ou contra o rebaixamento, em especial com relação a decisões próximas, a vergonha da derrota é sentida como insuportável. O melhor exemplo para o persistente efeito da crueldade do futebol é a cobrança de pênaltis. Quem ganhar não é apenas o vencedor – (mas) também foge a um destino horrível.

O jogo sobre o gramado é mesmo “apenas” um esporte: sua inclemente seriedade dá a jogadores e torcedores uma consciência latente do caráter fragmentário da segurança/certeza e ordem de seu mundo, um medo da queda, da perda, da destruição de seu modo de vida. Nesse sentido, é algo existencial; o futebol é um mundo “in terms of Shakespeare” (como Stanley Cavell denomina tal mundo). Os vencedores se salvam da catástrofe; eles escapam a um destino ignoto, de toda forma, mau. Em tal estado emocional, o subterrâneo obscuro do futebol se liga ao subterrâneo da vida social; a ligação evoca sentimentos de ameaça, de desvalorização e de fragilidade da própria existência. Na maior parte do tempo de nossas existências sociais, esse substrato nos permanece escondido, ou é simbolicamente representado por meio de filmes e romances. No futebol, ele é diretamente experimentado.

No passado o futebol ainda não tinha essa ligação íntima com o “subterrâneo obscuro” da sociedade; ainda não era um jogo do tudo ou nada. A sociedade foi vinculada somente a partir do momento em que se alterou fundamentalmente e o futebol foi colocado no centro do interesse dos meios de comunicação. Um dos motivos para a fascinação que hoje ele exerce certamente está no fato de que a estética da crueldade parece ir de encontro à sensibilidade de nosso tempo para o “substrato obscuro” da existência. Diferente da propaganda dos meios de comunicação para belos corpos e riqueza, parece hoje encontrar maior ressonância o motivo da vinculação beleza-crueldade-fatalidade, um motivo tomado, de forma inimitável, por Rainer Maria Rilke nos versos: “Pois o belo nada mais é senão o início do horrendo que ainda suportamos...” (“Primeira Elegia de Duílio”).

Um segundo motivo para o sucesso do futebol hoje reside no fato de que ele oferece uma – aparente – saída, a figura do “salvador”. O salvador é o grande jogador, o líder de seu time, para quem tudo parece dar certo. Na realidade, ele também está sujeito aos acasos de sua existência material – o papel de salvador se forma para ele por intermédio da transfiguração de seus admiradores. Veem nele o “líder” que preserva seu time da derrota; ele os protege da crueldade do oponente. Ele se destaca de todos os outros seres humanos por seu carisma.

Eu havia dito que, no futebol, trata-se de dominação; sua forma mais impressionante e mais eficaz é a dominação carismática. Nos grandes acontecimentos do futebol, como a Copa do Mundo no Brasil, o público espera a aparição do líder carismático, que dominará os acontecimentos. No passado houve tais figuras, que “deixaram sua marca” nos campeonatos mundiais, como dizem os jornalistas; penso especialmente em Pelé ou, de um ponto de vista alemão, em Franz Beckenbauer. Até hoje, seu carisma, que encarnaram em suas vitórias, não está extinto, mesmo quando deram ensejo a críticas. Nossas lembranças daqueles que venceram estão impregnadas de seu carisma. É ainda mais surpreendente quando eles envelhecem, como todas as pessoas, assim tendo visivelmente um corpo natural. Mas, como líderes carismáticos, têm outra característica, que outras pessoas não têm. Como podemos apreender este marco?

O conceito de carisma vem do campo da religião; foi trazido por Max Weber para a esfera mundana: a dominação carismática do líder, diz Weber, repousa sobre a magia. No futebol, podemos percebê-la bem em seus efeitos: um jogador que possua magia é capaz de realizar ações com seu corpo que nenhum jogador adversário consegue impedir, nem quaisquer de seus admiradores conseguem imitar. Ele possui faculdades que, aos olhos crédulos de seu público, aparecem como sobre-humanas. A beleza de suas ações se desdobra, sem ser obstada por resistências. Na medida em que encarna a beleza absoluta no futebol, ele exerce absoluta crueldade. Domina o conjunto do jogo, estabelece sua ordem no jogo.

Carisma baseia-se em crença. Quanto aos líderes carismáticos, de acordo com a caracterização de Weber, não se trata de valoração ética, mas de como “é realmente valorado pelos agregados”. Eles constroem uma forma de “comunidade”, que é animada pelo “convencimento emocional da importância e do valor”. No carisma não acreditam apenas seus agregados, jogadores que o acompanham e adversários – ele mesmo acredita. Na visão daqueles que nele creem, a magia do carisma lhe é emprestada por um poder desconhecido. Que poder é esse eles não sabem, mas estão convencidos de sua eficácia. No futebol, ele se manifesta em seus atos heroicos – para todos visíveis.

Na visão de sua comunidade, o líder ocupa uma posição intermediária: seu corpo humano obtém, pela magia, uma vida mais elevada, que o sobrepõe em relação aos mortais comuns. Ele pertence a dois mundos fundamentalmente diversos: por um lado, ao mundo cotidiano dos negócios, da política, da sociedade, da família. Ao mesmo tempo, por força de sua magia, ele toma parte em um poder mais elevado: ele é sua encarnação. Ele se mostra na beleza de seu jogo. Até os céticos podem reconhecê-lo; eles não precisam de qualquer relação com um poder maior para reconhecê-lo. Para eles, a crença na magia e no carisma nada mais é que crendice. Mas no futebol pode-se reconhecer que mesmo o adepto de crendices pode mover montanhas.

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GUNTER GEBAUER é professor da Universidade Livre de Berlim.

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Este é o texto da conferência de abertura do 2o Simpósio Internacional de Estudos sobre Futebol, proferida em 13 de maio de 2010, no Auditório Armando Nogueira, no Museu do Futebol em São Paulo.

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