
As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul entre maio e abril de 2024 mataram 183 pessoas e deixaram centenas de milhares de desabrigados. Segundo um balanço da Defesa Civil gaúcha, as águas afetaram quase 2,4 milhões de pessoas, em 478 municípios. Entre esses milhões de pessoas, as trabalhadoras sexuais foram afetadas de maneiras muito particulares, fossem elas veteranas ou iniciantes. O vídeo “Vida Fácil” – Trabalhadoras Sexuais na Catástrofe Gaúcha reúne relatos dessas mulheres a fim de documentar suas experiências.
O vídeo foi produzido em colaboração entre o Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP), de Porto Alegre, e o projeto Cosmopolíticas do Cuidado no Fim do Mundo, do Coletivo de Pesquisa em Antropologia, Arte e Saúde da USP. Nasceu de uma ação solidária lançada pelos dois parceiros em 2024 para apoiar as trabalhadoras sexuais em meio ao desastre. O objetivo era agilizar a distribuição de recursos financeiros para as mulheres afetadas pela catástrofe. Como parte da campanha de arrecadação, foram coletados depoimentos de trabalhadoras impactadas pelas enchentes. São esses relatos que compõem “Vida Fácil”.
O aumento do nível das águas provocou a inundação de suas residências, a ocupação dos motéis onde desempenhavam suas atividades e a interrupção do transporte público. Comprometeu a mobilidade e dificultou o contato com pessoas queridas. Muitas ficaram sem moradia e outras foram forçadas a acolher parentes desabrigados. Além disso, foram danificados itens essenciais para o trabalho, como roupas e equipamentos de vídeo e fotografia.
“Vida Fácil” apresenta relatos das trabalhadoras sobre as incertezas relacionadas à reconstrução de suas vidas, a paralisação das atividades devido à falta de acesso e os obstáculos enfrentados pela interrupção dos serviços básicos, como água e energia elétrica. Além disso, a produção enfatiza a escassez de apoio e solidariedade, uma vez que as redes de ajuda normalmente se formam nas ruas, mas, naquele momento, apenas barcos conseguiam acessar as áreas afetadas.
Queda brusca na renda mensal
As doações foram direcionadas às trabalhadoras sexuais que moravam nas áreas inundadas, mas mesmo aquelas que não tiveram suas residências diretamente atingidas enfrentaram dificuldades, inclusive financeiras. A inacessibilidade a seus locais de trabalho as forçou a suspender parte de suas atividades, fosse pela interrupção dos transportes ou porque muitas dessas áreas estavam alagadas.
As campanhas de auxílio priorizaram ajudar pessoas que tiveram suas casas submersas pela água, o que impediu que algumas recebessem apoio. Um dos relatos presentes no vídeo é o de Luiza, profissional do sexo que atua no centro de Porto Alegre. Apesar de morar em uma cidade que não foi fortemente atingida pela enchente, os ônibus que Luiza usava para acessar seu local de trabalho pararam de funcionar devido às inundações. Sem poder garantir seu sustento, Luiza relata que alguns projetos se recusaram a ajudá-la.
Outro exemplo de trabalhadora impactada pela enchente sem ter a sua casa inundada foi a de Ediana. Criadora de conteúdo adulto conhecida na internet como “Cutiepiie”, Ediana precisou abrigar seus pais, que tiveram a casa inundada pela chuva. Além disso, ela relata que sua parte psicológica estava abalada pelo que vinha acontecendo com o estado, o que a impediu de trabalhar por algum tempo, tanto nas transmissões ao vivo quanto nas gravações de conteúdo. A profissional conta que, além de ter sofrido com uma queda brusca de sua renda mensal, recebeu pouquíssima ajuda, visto que não tinha perdido nenhum item diretamente para a enchente.
Em meio ao caos, a sede do NEP no centro de Porto Alegre também foi inundada, impossibilitando o retorno ao local de trabalho por cerca de 40 dias.
O projeto Cosmopolíticas do Cuidado, contemplado com financiamento da Fapesp em 2021, é voltado para a pesquisa sobre gênero, fronteiras e saúde coletiva. A produção do curta-metragem foi uma ação dentro deste projeto, com a colaboração da Faculdade de Saúde Pública da USP. O curta pode ser assistido gratuitamente no Youtube e um clipe de apresentação do trabalho foi publicado no Instagram. As protagonistas do vídeo são Dinny, Fernanda, Julie, Kelly, Luana, Bianca Imagens: Cristina Ribas, Dinny, Fernanda, Laura, Leo Caobelli, Soila Mar, Valentina Rodrigues, Vivi Fernandes. O roteiro é assinado por José Miguel, Soila Mar, Cristina Ribas e Tina. A edição foi de Valentina Rodrigues.
Texto de Camila Montagner, com edição de José Adryan*
*Estagiário supervisionado por Silvana Salles