Fotomontagem com imagens de Freepik e Pexels por Rebeca Fonseca

Pesquisa investiga dificuldades e realizações de pessoas com deficiência no mercado de trabalho

Pesquisadora da USP reuniu relatos de trabalhadores com deficiência visual; apenas duas participantes se sentiam realizadas com as experiências de trabalho e campo de atuação

 25/10/2022 - Publicado há 1 ano

Texto: Gustavo Roberto da Silva

Arte: Rebeca Fonseca

Motivada pela presença de alunos com deficiência visual na escola técnica em que atuava como professora, a pesquisadora Luciana Aparecida Beliomini desenvolveu sua dissertação de mestrado no Instituto de Psicologia (IP) da USP, intitulada As experiências e os sentidos do trabalhar para pessoas com deficiência visual – um estudo sob a perspectiva da Teoria da Psicologia do Trabalhar (TPT)

Em entrevista ao Jornal da USP, Luciana relata os desafios enfrentados no período. “Primeiro que foi um susto recebê-los, a escola não estava preparada, os professores não estavam preparados, os colegas menos ainda”, conta. A partir dessa primeira experiência, a pesquisadora decidiu que investigaria como as pessoas com deficiência visual ingressam no mercado de trabalho, e quais fatores fazem parte da trajetória profissional delas. O objetivo geral foi compreender a forma como constroem e dão sentidos às suas experiências no trabalho.

Segundo dados do último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, cerca de 18,6% da população brasileira possuíam algum tipo de deficiência visual. Desse total, 6,5 milhões apresentavam deficiência visual severa, sendo que 506 mil tinham perda total da visão (0,3% da população) e 6 milhões, grande dificuldade para enxergar (3,2%).

Os resultados apontaram que dificuldades de acessibilidade, baixa oferta de oportunidades de trabalho, fornecimento precário de recursos de tecnologia assistiva, questões atitudinais e de gerenciamento de pessoal dificultam o acesso ao trabalho decente, indicando que nem todos/as participantes exercem um trabalho decente.

Luciana sentiu falta de trabalhos acadêmicos que utilizassem alguma metodologia com a participação direta das pessoas com deficiência. “Muita gente falando da deficiência visual, mas do ponto de vista dos gestores, da família, dos colegas de trabalho, e eu me perguntava: onde estão as pessoas com deficiência visual? Então eu pensei em caminhar nesse sentido, ouvir essas pessoas, ouvir a história de trabalho delas”, afirma.

Luciana Aparecida Beliomini - Foto: Arquivo pessoal

A pesquisadora conta ter procurado a Secretaria dos Direitos da Pessoa Com Deficiência do município de Barueri, na Região Metropolitana de São Paulo, que possui um departamento de empregabilidade. Segundo ela, o departamento faz um recrutamento de pessoas com deficiência e, por meio de uma parceria com empresas da região, encaminha as pessoas para processos seletivos. Foi com a secretaria que ela conseguiu o contato da maioria dos participantes da pesquisa.

“Eu entrevistei dois homens e duas mulheres. As mulheres tinham curso superior, uma é assistente social e a outra é psicóloga. Um dos homens só tinha ensino médio e o outro estava fazendo faculdade na área de informática”, conta. A ideia era realizar as entrevistas presencialmente, mas devido à pandemia tudo foi feito remotamente. No contexto em que a pesquisa foi realizada, a professora relata que a pandemia afetou de forma considerável a empregabilidade das pessoas com deficiência. 

No processo, Luciana estabeleceu três objetivos específicos: o primeiro deles era coletar informações a respeito das experiências dos entrevistados no mercado de trabalho; o segundo tinha o intuito de identificar nesses relatos fatores associados à inserção da pessoa com deficiência no mundo do trabalho; e “por fim, caracterizar o sentido do trabalhar para as pessoas com deficiência visual”, diz.

Ensino superior é diferencial para que as pessoas estejam em empregos que auxiliam no estabelecimento de consciência crítica -

Foto: Pexels

A Psicologia do Trabalhar

A investigação da pesquisadora se apoiou no referencial teórico de David Bluestein, que desenvolveu a chamada Teoria da Psicologia do Trabalhar (TPT). Segundo ela, geralmente o campo da orientação profissional é voltado para pessoas de classes mais altas, que têm diferentes possibilidades de escolha no mercado de trabalho. Diferente do habitual, Bluestein defende que os grupos minoritários, daqueles que não têm possibilidade de fazer escolhas, precisam ter uma atenção especial.

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O autor utiliza o conceito de trabalho decente, que valoriza as condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana, formalizado em 1999 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Para Bluestein, existem fatores nomeados de preditores e moderadores que precisam ser avaliados para que as condições de trabalho decente sejam obtidas.

Segundo ele, há duas esferas de preditores que causam impacto na vida das pessoas no mercado de trabalho. Uma delas é a esfera estrutural, que envolve o contexto socioeconomico. “A restrição econômica se relaciona com as pessoas que estão em condições de trabalho precário, que possuem baixa renda ou nenhuma renda. No campo da marginalização, estão incluídas as questões de pessoas com deficiência, imigrantes, questões de gênero, questões étnico-raciais”, ressalta Luciana.

A outra esfera compete a uma dimensão mais pessoal, que envolve adaptabilidade de carreira e a possibilidade de tomar decisões. “O que equilibra esses fatores ele chama de moderadores. No âmbito pessoal, os moderadores têm a capacidade de potencializar ou minimizar as experiências de marginalização, de restrição econômica ou de adaptabilidade de carreira”, afirma.

Luciana descreve exemplos de moderadores, como a personalidade proativa, que se relaciona com a disposição individual de uma pessoa para tomar uma iniciativa. Além disso, ela destaca fatores como a consciência crítica para analisar o contexto em que o indivíduo está inserido, e o suporte social, que se relaciona com o quanto a pessoa se sente apoiada pela família e amigos. 

A partir desse quadro teórico, a pesquisadora aponta a definição de trabalho que tenha sentido. “Existem três necessidades: a de sobrevivência, que é a questão do recurso financeiro; a necessidade de conexão social: uma vez que, se as pessoas não têm muitas escolhas, as redes de relacionamento são prejudicadas e isso também afeta o desenvolvimento no trabalho; e a necessidade de autodeterminação, que é a experiência de realizar um trabalho motivador, que você possa ver um sentido naquilo”, destaca. Para Luciana, a pessoa alcança o trabalho decente quando essas necessidades estão satisfeitas.

As experiências dos trabalhadores

Luciana buscou relacionar os aspectos da teoria com a fala dos trabalhadores entrevistados. “Eu perguntei para uma das entrevistadas por que ela escolheu fazer serviço social e ela me respondeu que na verdade não foi uma escolha dela. Que ela desejava fazer psicologia, mas as pessoas que estavam organizando a matrícula disseram a ela que era melhor fazer serviço social, porque em psicologia ela teria dificuldades. Isso foi chocante para mim e se aplica no conceito da marginalização do trabalho. Naquele momento, essa moça não teve condições de contestar isso e acabou aceitando”, conta.

A mesma entrevistada também se encaixa no conceito de adaptabilidade de carreira, uma vez que ela afirmou à pesquisadora não ter restrições para exercer suas funções no trabalho. Segundo a pesquisadora, a entrevistada informou que utiliza recursos de informática, tecnologias assistivas, e que os colegas ajudam quando ela precisa. Mesmo fora da profissão em que ela desejava e com as dificuldades inerentes à deficiência visual, ela conseguiu se adaptar.

A inserção no mercado de trabalho de três dos quatro entrevistados se deu por vagas de estágio, que se mostraram muito importantes para a inclusão. A pesquisadora compreende que o ensino superior é um diferencial para que as pessoas estejam em empregos que auxiliam no estabelecimento de consciência crítica. “As duas mulheres trabalham com pessoas que possuem deficiência. A psicóloga trabalha com reabilitação e a assistente social trabalha com empregabilidade de pessoas com deficiência. As duas indicam que querem continuar na área, e que de uma certa forma são realizadas com o trabalho”, conta.

Estudo investigou como as pessoas com deficiência visual ingressam no mercado de trabalho

Foto: Pexels

Quanto aos homens, ainda não trabalham na área que gostariam, já que ambos desejam atuar com desenvolvimento de sistemas. Um deles faz faculdade de Ciências da Computação, e antes de ingressar no curso teve que lidar com muitas dificuldades. A pesquisadora conta que ele havia perdido uma das vistas em um acidente aos 10 anos de idade, e começou a desenvolver ceratocone — enfermidade na córnea que pode comprometer a visão — da outra vista, condição que se agravou quando começou a estagiar. 

“Então ele deixa o estágio, fica na fila do transplante de córnea e vai trabalhar com o pai, que é marceneiro. Nesse período ele teve uma série de problemas de saúde, desenvolveu obesidade, teve uma cirurgia de apêndice, teve um quadro depressivo, até que ele conseguiu o transplante de córnea. Na época da entrevista ele estava se recuperando”, conta.

Em relação aos fatores sociais, Luciana define a rede de apoio familiar como fundamental para os entrevistados. “Quando a assistente social perdeu a visão ela tinha cerca de 12 anos. Ela diz que a família ficou superabalada e ela achou que o mundo tinha acabado. Mas os amigos e a família orientaram, falaram que teria uma escola especial, que poderia aprender braile. Ela hoje tem o apoio do marido, dos pais e dos colegas de trabalho”, ressalta.

A questão da acessibilidade

Segundo a pesquisadora, os entrevistados não fazem menções diretas à acessibilidade, mas é possível perceber nos relatos que os problemas da falta de ambientes de inclusão dificultam suas rotinas. Um deles relata ter perdido duas oportunidades de trabalho por conta da distância, em razão da pouca oferta de linhas de ônibus com recursos de acessibilidade para pessoas com deficiência visual.

A psicóloga entrevistada na pesquisa alega que o que não a faz se sentir plenamente realizada é o fato de não conseguir acompanhar a evolução dos seus pacientes, já que depende sempre de algum colega para redigir seus relatórios ou compartilhar os protocolos com ela, devido à ausência de tecnologias assistivas.

O capacitismo — discriminação contra pessoas com deficiência — é um outro fator presente nas dificuldades enfrentadas no dia a dia. “As pessoas falam ‘coitada, ela é tão bonita mas ela é cega’, ou ‘nossa, ele é cego mas é tão inteligente’. Falta muita acessibilidade, falta muita conscientização. Eu entendo que a escola pode ser um fator diferencial para isso, por meio da capacitação dos professores, da comunidade escolar, das famílias”, afirma Luciana. 

A pesquisadora conta que mesmo com a existência da lei de cotas, as vagas não são ocupadas por pessoas com deficiência, que na maioria das vezes são direcionadas a cargos e funções mais simples. “As empresas não querem fazer as devidas adaptações no ambiente e nas tecnologias necessárias”, diz.

“Precisamos pensar em políticas públicas, sensibilizar gestores, para promover mais acesso. Não podemos achar que essas pessoas se limitam a trabalhar em linhas de produção ou em telemarketing, elas podem exercer outras funções, como cargos de gestão e de liderança”, ressalta.


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