Pesquisa de historiador sobre Miriam Batucada vira livro, disco e show

Biografia mergulha na vida e obra pouco conhecida da cantora e compositora paulistana, nascida e crescida na Mooca, lésbica e possivelmente bipolar

 Publicado: 31/01/2025 às 14:38

Texto: Silvana Salles

Arte: Moisés Dorado

Fotomontagem superpõe capas de livro e disco com foto do palco do show que homenageou Miriam Batucada

A vida e a obra de Miriam Batucada renderam um livro, um disco de vinil duplo, shows e um arquivo digital – Arte sobre foto: Andres Costa/Insta/Fotosdres/Divulgação

A voz suave de Vânia Bastos deu início ao show com versos que anunciavam o tom irreverente do espetáculo:

"Fui procurar um psicanalista
pois a vida de artista está difícil de aguentar
e consultei minha libido
tinha algo indefinido
somente Freud poderia me explicar".

Os versos acima contêm duas características centrais na obra de Miriam Batucada: o humor e as tiradas autobiográficas. Nas duas horas seguintes, Vânia, Graziela Medori, Juliana Amaral, Ayrton Montarroyos, Vange Milliet, Maria Alcina e Edy Star se revezaram interpretando composições de Miriam. Esse foi o roteiro de dois shows em homenagem à cantora e compositora paulistana, que aconteceram nos dias 23 e 24 de janeiro no Sesc 14 Bis, no centro de São Paulo. O espetáculo foi fruto da pesquisa do historiador Ricardo Santhiago, professor do programa de pós-graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

Ricardo Santhiago é autor do livro A história incompleta de Miriam Batucada, publicado em 2024 pelo selo Popessuara, da editora Letra e Voz. O livro recupera a biografia de uma artista mulher, lésbica, possivelmente bipolar ou ciclotímica, cuja trajetória ficou algo esquecida entre outros “malditos” da música brasileira. É fruto de uma extensa pesquisa, que incluiu a realização de 80 entrevistas e o acesso a uma rede de fãs e colecionadores que foi fundamental para contar a história da artista. Santhiago também teve acesso ao arquivo pessoal de Miriam, guardado pela irmã da cantora após sua morte.

“Algumas figuras que eu encontrei no meio do caminho sugeriam que a vida e o trabalho de Miriam Batucada eram pequenos demais para render um livro. Eles renderam um livro, um arquivo digital, um disco, um vinil duplo, shows… e isso se deve ao talento, à genialidade dessa artista que precisa ser trazida. Eu não acho que as pessoas precisam ser celebradas, reverenciadas, adoradas. Eu acho que precisam fazer parte do nosso repertório comum”, diz o historiador, defendendo a importância de conhecermos quem foi e o que fez Miriam Batucada.

Capa, lombada, contracapa e orelhas do livro "A história incompleta de Miriam Batucada"

Capa completa - Foto: Divulgação

A biografia de uma artista interditada

Miriam Batucada nasceu em São Paulo em 1947, cresceu na Mooca, em uma família conservadora que pouco a entendia. Foi figura regular em programas da TV Record e tocou com alguns nomes célebres da música brasileira. Na televisão, chegou a ser chamada de “Adoniran Barbosa de saias” – comparação que achou uma bobagem, respondendo que Adoniran morreu velho, decadente e sem o devido reconhecimento, e que ela própria preferia que as pessoas gostassem do trabalho dela em vida, sem a pretensão de ser vista como genial.

“Ela sofreu uma série de interdições, de boicotes ao longo da trajetória artística e ainda assim continuou lutando pela sua própria liberdade criativa e pela sua própria liberdade pessoal também. Eu acho isso muito bonito na trajetória dela”, diz Santhiago.

E completa: “Alguém que aparece na TV de São Paulo e de um dia para o outro literalmente se torna uma celebridade. Num dia estava brincando na Mooca, no outro dia tinha contrato com a TV Record, com a Rádio Jovem Pan, com o Marcos Lázaro, que era o grande empresário de música da época, com a Artistas Unidos, que era uma gravadora também do grupo da TV Record na época. E aí, ela se apaixona por uma mulher e larga tudo isso, abre mão de tudo isso para viver seu amor em liberdade. E depois, ela continua, não larga a carreira. Ela vai reconstruir sua carreira em outro lugar”, diz o biógrafo da cantora.

Miriam morreu em 1994 de um infarto fulminante, aos 47 anos, sozinha em seu apartamento. Seu corpo foi encontrado semanas depois da morte. Segundo noticiou o jornal Folha de S. Paulo na época, a família informou à polícia que a artista estava deprimida e tinha começado um regime para emagrecer. Ela deixou pouca coisa gravada. Foram dois discos solo, alguns compactos e o projeto Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, ao lado de Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star. O repertório que compõe o álbum Infiel, marginal e artista: as composições de Miriam Batucada e que foi apresentado nos shows do Sesc vem de outros lugares.

“Eu sabia que Miriam tinha composto, mas achava que tinha sido uma compositora bissexta. Ao longo da pesquisa, justamente nas fitinhas cassete que ela tinha guardado, nas gravações em programas de televisão, nos diários, fui descobrindo o que ela criou. Consegui com a pesquisa estabelecer mais ou menos 60 músicas compostas pela Miriam, quase todas inéditas”, conta Ricardo Santhiago.

“Mato o robô e viro gente”

Em parceria com o produtor musical Sérgio Arara, Santhiago selecionou algumas dessas composições para o repertório do projeto. O critério de escolha foi o de mostrar a versatilidade de Miriam Batucada. Por isso, tanto o álbum quanto o show passeiam pelo samba-canção, pelo samba de breque, pelo choro, pelo funk, pela canção de amor, pelo brega e pelo humor, tudo a partir de uma releitura pop contemporânea. Uma das interpretações mais bonitas do show da sexta-feira 24 foi a de Juliana Amaral para a canção Pra Nada. Juliana a apresentou destacando que é uma das únicas músicas em que Miriam falou do amor no feminino: “mas eu sei que ela gosta de mim pra nada / eu sei que ela volta pra mim pra nada”.

Outro momento emocionante foi a entrada de Maria Alcina, aplaudida em pé pelo público. De todos os músicos que participaram do projeto, Maria Alcina e Edy Star são os únicos que conviveram e foram amigos de Miriam Batucada. “Miriam era uma mulher crítica, complexa e muito inteligente. Era também uma mulher que tinha suas dores e que sofria. Para ela, eu vou cantar O Robô”, disse Maria Alcina. A letra da canção diz que “agora vai ser do meu jeito / estou farta de ser conduzida / de ser enganada / de ser seduzida / de ser enquadrada / de ser reprimida”.

Vestindo uma camiseta, um quimono de paetê, tênis com meia das cores do arco-íris e calça nenhuma, Edy Star subiu ao palco para um dueto com Maria Alcina na música Eu quero é botar meu bloco na rua, de Sérgio Sampaio, que tanto Miriam quanto Alcina gravaram. Edy levou um caminhão de piadas descaradas para o palco, contou a história da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, se declarou “o primeiro gay assumido do Brasil” (em 1975) e insinuou que certas “artistas da Globo” nunca assumiram os relacionamentos amorosos que tiveram com Miriam.

Da esquerda para a direita: Edy Star, Maria Alcina, Juliana Amaral, Vânia Bastos, Vange Milliet e Graziela Medori no palco do Sesc 14 Bis, com foto da Miriam Batucada na projeção ao fundo. Ayrton Montarroyos está atrás de Vânia e vemos apenas sua mão esquerda.

Da esq. para a dir.: Edy Star, Maria Alcina, Juliana Amaral, Vânia Bastos, Vange Milliet e Graziela Medori no palco do Sesc 14 Bis, no encerramento do show que homenageou a cantora e compositora Miriam Batucada - Foto: Andres Costa/Insta/Fotosdres

As interpretações musicais foram entremeadas por vídeos de Miriam e acompanhadas por projeções de fotos, notícias de jornal, cartas e diários da cantora e compositora. Particularmente tocante, uma dessas projeções reproduzia uma carta na qual Miriam se dirigia a seus pais para falar sobre a aceitação de si mesma. “A Miriam era uma figura que publicamente exalava frescor, alegria, espirituosidade e, do ponto de vista pessoal, foi uma mulher com muitos escuros, com muitas áreas nubladas, com muitas sombras. É isso que eu vou descobrindo ao longo da investigação. Uma figura absolutamente complexa, que existiu bem entre a persona pública e esses escuros”, diz Ricardo Santhiago.

O show terminou com Vânia Bastos, Graziela Medori, Juliana Amaral, Ayrton Montarroyos, Vange Milliet, Maria Alcina e Edy Star juntos sobre o palco, cantando o engraçadíssimo Samba do Orgasmo, que empresta um verso ao título do álbum que nasceu da parceria de Ricardo com Sérgio Arara.

O show, o álbum, o livro e o arquivo digital compõem o que o historiador chama de “uma plataforma de história pública” sobre Miriam Batucada. Com esse trabalho, ele afirma que, para além de resgatar a história de uma artista sobre quem se sabia muito pouco, quer possibilitar às pessoas a ampliação de seu “repertório de possibilidades”.

“O que eu acho que a história dela diz para a gente é que essa trajetória é uma possibilidade legítima. Quando eu falei que a gente precisa fazer com que essa história seja parte do nosso repertório comum, isso diz respeito ao nosso repertório musical, com certeza. Mas diz respeito também ao nosso repertório em termos de possibilidades. Eu acho que conhecer a história da Miriam Batucada alarga o nosso campo de possibilidades, para que nós sejamos pessoas também com coragem, (que) busquemos construir condições para que a gente encontre nosso próprio eu. Para que a gente se subjetive plenamente. Acho que isso é a lição que a Miriam Batucada traz pra gente”, conclui Ricardo Santhiago.

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