Ato em memória aos LGBTQIAPN+ assassinados no Brasil, em frente à Igreja da Candelária, centro do Rio de Janeiro, em janeiro de 2010 - Foto: André Gomes de Melo/Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos RJ via Flickr

Para além do orgulho, Dia Internacional de Combate à LGBTQIAPN+fobia é um dia político

Apesar de conquistas, comunidade LGBTQIAPN+ ainda enfrenta entraves na garantia plena de direitos e reconhecimentos

 17/05/2023 - Publicado há 11 meses

Texto: Danilo Queiroz
Arte: Carolina Borin Garcia

O mês de maio, especialmente o dia 17 – Dia Internacional de Combate à LGBTQIAPN+fobia -, é um dos mais importantes para a comunidade de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Travestis, Queer, Intersexo, Agênero, Pansexuais, Não binários e mais outras identidades (LGBTQIAPN+) ao redor do mundo. Para além do orgulho, a data escolhida tem uma importância política e histórica, já que marca a retirada da homossexualidade, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), do Código Internacional de Doenças (CID), em 1990. 

Apesar de tardio, a comunidade LGBTQIAPN+ entende o reconhecimento internacional como um passo em direção à legitimação de outras existências para além dos corpos no padrão “heterocisnormativo”. Ou seja, que não se identificam pela heterossexualidade nem pelo seu gênero de nascimento.

Lucas Bulgarelli - Foto: Arquivo Pessoal

“Tivemos de passar por algumas décadas para conseguirmos ser entendidos como pessoas e não como doença. Celebrar esse dia é comemorar nossas existências”, comemora Lucas Bulgarelli, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Ainda são muitos os avanços que a comunidade LGBTQIAPN+ carece conquistar, sendo algumas identidades mais afetadas que outras. Em âmbito internacional, por exemplo, a OMS ainda permanece com o termo “transexualismo” [o sufixo -ismo se refere a doenças] na décima versão do CID. Além disso, há países em que a homossexualidade é crime, em alguns com pena de morte ou prisão perpétua. 

Lucas Bulgarelli - Foto: Arquivo Pessoal

A nova versão do CID, o CID-11, apesar de não possuir o termo “transexualismo” apresenta “incongruência de gênero”, que pode estigmatizar a transexualidade enquanto “transtorno mental” - Foto: Reprodução / CID-10 e CID-11

Já o Brasil carrega a triste marca de ser o país que, há 14 anos, mais mata pessoas trans e travestis. Somado à ausência de leis federais que assegurem os direitos da comunidade, o contexto nacional revela os desafios no reconhecimento da diversidade.

Monitoramento realizado pelo Trans Murder Monitoring revela o Brasil como o País responsável pelo maior número de assassinatos de pessoas trans e travestis - Foto: Reprodução/ Transrespect vs Transphobia (TvT)

No País, os direitos civis da comunidade, como a livre expressão da orientação sexual e/ou de gênero em espaços públicos e a redesignação do sexo, estão assegurados somente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para Lucas, que também é advogado formado pela Faculdade de Direito (FD) da USP, isso não basta. “A luta não acabou! Permaneceremos, por meio da história, relembrando nossas conquistas e derrotas”, afirma ele.

Ao Jornal da USP, Lucas conta que “para algumas pessoas, esses direitos são vistos como privilégios. Na verdade, são direitos reparatórios e equipatórios: reparar o que nos foi causado no passado e nos assegurar como iguais no futuro”, observa. “Nosso País gosta de dizer que é diverso e plural, mas ao mesmo tempo não gosta de revelar que é intolerante. Há uma hipocrisia nisso”, aponta. 

É necessário nos reafirmarmos com todas as letras! Pois, para a saúde éramos doença, para o direito éramos criminosos, e para a religião, ainda continuamos sendo pecadores.”

Cidadania colorida

Assistente social, professor e ativista LGBTQIAPN +, Fábio Felix é deputado pelo Distrito Federal - Foto: Wikipedia
Vereadora por Belo Horizonte, Duda Salabert é professora e primeira pessoa transgênero a se candidatar ao cargo de Senadora da República - Foto: Arquivo Pessoal
Erika Hilton é a primeira mulher trans eleita deputada federal pelo estado de São Paulo - Foto: Arquivo Pessoal

A Constituição Federal, ou a Constituição Cidadã, formulada em 1988, não inclui expressamente a orientação sexual, apenas lista como objetivo promover o bem de todos. Para Lucas, é importante compreender que as conquistas da comunidade não são como leis lineares, progressivas. “Ou seja, isso significa que não vamos conseguir mais e mais direitos. E, nos últimos quatro anos, vimos que o que tínhamos conquistado foi reduzido.”

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Sendo pesquisador no Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas) da FFLCH, o doutorando reforça, ainda, a participação ativa de todas as pessoas da sociedade na busca por mais direitos à comunidade,  por meio das eleições. Apesar do avanço, mesmo que mínimo, do Congresso Nacional possuir hoje mais de 15 deputados assumidamente LGBTs, isso não é suficiente. “Ainda temos uma luta  muito grande no Legislativo, que é justamente o poder responsável por promover as leis que a gente precisa. Isso nos revela que a sociedade não está disposta a eleger representantes políticos que defendam esses direitos. Isso é um problema muito sério para que tenhamos ainda mais avanços”, propõe Lucas.

Reafirmação necessária

Antes mesmo do movimento LGBTQIAPN+ decidir reorganizar sua história, a comunidade sempre existiu. Lucas conta que invisibilizar esses corpos foi e ainda permanece sendo uma estratégia de decidir quem deve ser esquecido ou lembrado na história. “Em meados dos anos 1970, no movimento LGBT brasileiro começamos a ser vistos. Nós éramos invisíveis até então”, lembra o advogado. “No entanto, estamos em todas as esferas da vida, apesar da parcial inclusão que conquistamos, mas foi interrompida no último governo, com a retirada da comunidade das diretrizes de direitos humanos. Atualmente, o ministério está sob a responsabilidade de Silvio Almeida, doutor em Direito pela USP, o qual afirmou na sua posse que ‘LGBTs existem e são pessoas valiosas para nós!’”, destaca.

Esses avanços e retrocessos nos movimentos de diversidade levaram Lucas a pesquisar, no doutorado, os significados decorrentes da noção de ideologia de gênero no Brasil. A ideia foi criada por setores conservadores da sociedade que alegam que a comunidade LGBTQIAPN+ tem tentado desconstruir os tradicionais conceitos de família. Ele explica que a retomada desses discursos, que envolvem a política da moral e dos bons costumes, é um dos mecanismos encontrados para promover um duplo ataque: aos corpos LGBTQIAPN+ e às universidades que estudam o tema. “Quem ataca esses estudos sabe da legitimidade desses conhecimentos na formulação de leis e políticas públicas para a comunidade. Não é opinião, nem luta pessoal, é ciência!”, salienta o doutorando.

Escrevendo uma nova história

Narrar as lutas e conquistas da comunidade é um dos caminhos viáveis para escrever uma nova história. É por meio do ensino e do ativismo político que o advogado de direitos humanos Renan Quinalha, doutor pelo Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, propõe narrar e escrever uma nova história a respeito da comunidade LGBTQIAPN+. Seu doutorado, intitulado Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão contra a comunidade LGBTtornou-se livro e, em seguida, uma série de vídeos no Canal USP do Youtube.

Dedicado a estudar a história da comunidade, ele conta ao Jornal da USP que, por meio da escrita, consegue estimular para além do orgulho, coragem. “A capacidade de narrar essas histórias nos restitui a possibilidade de conhecer a nossa própria história e orienta as novas lutas que precisamos desenvolver para o presente”, diz ele, que atualmente é professor e coordenador do curso de Direito da Universidade Federal Paulista (Unifesp), onde também é coordenador adjunto do Núcleo Trans.

Para além de suas outras produções, Movimento LGBTI+: Uma breve história do século XIX aos nossos dias, Justiça de Transição: contornos do conceito, Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade e História do Movimento LGBT no Brasil, Renan agora pretende romper com a literatura especializada a respeito da temática LGBTQIAPN+. Para ele, esta literatura adota um recorte que procura em primeiro plano adotar vivências da comunidade em contextos de maior vulnerabilidade e precariedade. Organizada por ele e por Paulo Souto Maior, professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a mais recente obra Novas Fronteiras das Histórias LGBTI+ no Brasil promete explorar novas narrativas por meio de três fronteiras: territoriais, temporais e temáticas.

Renan Honorio Quinalha - Foto: Arquivo Pessoal

A partir de 24 artigos de especialistas em diversidade do Brasil e do mundo todo, Renan explica que “pretende explorar a historiografia da comunidade por meio de pesquisas a respeito dessas temáticas. A ideia é compilar e divulgar esses estudos, além de trazer visibilidade, uma vez que são produzidos fora do Centro-Sul do Brasil”. O livro atualmente está em pré-venda e pode ser adquirido no site da Editora Elefante neste link. O lançamento será em junho, mês em que se comemora o Orgulho LGBTQIAPN+, pois celebra a série de protestos da comunidade na luta por direitos e reconhecimentos sem represálias. Ocorrido em 1969 nos Estados Unidos, o movimento ficou conhecido como Rebelião de Stonewall e contribuiu para a explosão de levantes ao redor do mundo, impulsionando novas reivindicações até hoje.

Capa do livro "Novas Fronteiras das Histórias LGBTI+ no Brasil" - Foto: Divulgação

“As pessoas da comunidade existem e estão em todos os lugares. Conhecer nossas histórias não representa apenas produção de conhecimento. É uma atitude antes de tudo política”, diz Renan. “Por isso, a importância de nos tornarmos cada vez mais visíveis e prestigiarmos as nossas diversidades. Celebrando isso em alerta, pois os quatro anos de bolsonarismo nos sinalizaram que precisamos ainda mais avançar”, admite.


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