A produção literária e acadêmica sempre foi, inclusive na USP, algo muito elitizado e direcionado originalmente aos leitores de famílias ricas e com tradição de leitura e pesquisa. Mas isso está mudando graças a editoras e jornais comunitários e populares que visam a democratizar o acesso à quinta arte – e também ao mundo das discussões científicas e filosóficas. E uma dessas editoras é a Estação Povoar, cujo lançamento foi realizado no último dia 26, em um evento festivo envolvendo estudantes, principalmente os que se identificam como periféricos.
Fruto da iniciativa das fundadoras do Periferia Livr@, um grupo de extensão e cultura da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, a editora Estação Povoar vinha sendo incubada pelo grupo como uma editora virtual, cuja missão seria publicar e divulgar literatura produzida por artistas da periferia da cidade de São Paulo, além de valorizar e publicar autores negros e disponibilizar materiais didáticos para professores e educadores.
Uma porção de textos, entre e-books, audiolivros e materiais pedagógicos, já foram diagramados, revisados, ganharam capas e alguns foram até traduzidos para o espanhol. Como foram produzidos em formato e-book, eles serão publicados no mais novo app da editora, que atualmente está em fase de desenvolvimento pela equipe de tecnologia. “Visamos valorizar o poder das narrativas, tanto como objetos quanto metodologias, propiciando o fortalecimento de laços interpessoais e promoção do sentimento de pertencimento social, cultural e político, colaborando com uma cidadania mais ativa”, informa o site do grupo.
A Editora Povoar é encabeçada por editores das periferias, tendo como presidente Nivaldo Brito dos Santos (editor da Selin Trovar), vice-presidente Dinha Maria Nilda (Editora da Me Parió Revolução) e conselheiro Paulo Batista (editor da PB Editorial). A professora da FEA, Ana Carolina Rodrigues, diretora geral do Periferia Livr@, que idealizou o grupo de extensão junto com Nivaldo Brito, conta que já são em torno de 18 obras prontas e que tais livros já estão sendo usados em oficinas e apresentações em diversas escolas. “Uma questão muito simbólica desse lançamento é a possibilidade de dar vida à Estação Povoar, construir uma narrativa e realizar pitches para atrair investimentos, pois os recursos que a gente tem ainda são limitados e o aplicativo que está sendo desenvolvido exige muito”, explica a docente. Apesar de a editora ser virtual, assim como todas as obras prontas e em fase de desenvolvimento, Ana Carolina diz que é um plano futuro imprimir as obras também.
Lançamento
O evento de lançamento da editora ocorreu na vivência da FEA e contou com um sarau de poesia, banca de vendas de livros literários e convidados “poetas mirins”: os estudantes da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Milton Ferreira de Albuquerque, localizada no Jardim Beatriz, na zona sul de São Paulo. Esses estudantes, que conheceram o projeto por meio de alguns professores em palestras na escola, tiveram a oportunidade de saber mais sobre a editora e sobre a USP. Alguns deles, inclusive, recitaram no sarau. “Eu não sabia muito sobre o que iria acontecer no sarau. O professor Damásio, de Língua Portuguesa, disse muito brevemente sobre o que seria, mas mesmo assim fiquei bem animada para o evento”, conta Larissa, aluna do 9º ano que recitou um poema sobre amor e carnaval. Ela conta que o professor escolheu alguns dos melhores alunos, os que ele sabia que gostavam de literatura e poesia. “Eu amei o evento. Foi algo divertido e descontraído, algo bem acolhedor e divertido. Eu amei cada poema dito por cada um lá. Acho muito importante ter mais saraus assim, tanto para o público da periferia quanto para outros públicos. Na minha opinião, acho que todos nós precisamos de um pouco disso, pois é uma ferramenta para várias causas e que pode influenciar pessoas”, comenta.
Clara, outra poeta da Emef Milton Ferreira Albuquerque, conta que participou de um projeto na escola onde criou um poema para um documentário sobre racismo. Sua poesia Liberdade de Expressão trata de “opiniões” que não são liberdade de expressão e recebeu muitos aplausos. “Eu amei a experiência de estar ali [no sarau], porque no decorrer do evento eu fui percebendo que cada poesia carrega a sua verdade, e a própria realidade, principalmente poesias de sarau, onde se fala de injustiça, de cor de pele, das lutas sociais. Então, eu gostei muito porque falam muito disso, e se mostra, por trás da poesia, cada realidade ali presente de forma diferenciada”, comenta Clara. Ela conta que ouvir poemas assim é muito importante para se conscientizar sobre os problemas sociais, já que é algo capaz de prender mais a atenção, é mais direto e mais forte do que um texto padronizado ou um discurso pré-moldado. “Eu me senti muito bem no palco. Vi que meus dois amigos ficaram com um pouco de vergonha mas eu não tenho isso, eu me sinto bem quando estou falando para as pessoas, principalmente quando é por uma causa. Eu não estava lá falando qualquer coisa, eu estava falando de uma realidade, do povo ir na internet disseminar ódio e falar que é liberdade de expressão. Acho que deveria sim, ter mais eventos como esse.”
Periferia literária
O Periferia Livr@ é um projeto de extensão da FEA que pretende revolucionar a leitura. Criado pelas professoras Ana Carolina Rodrigues e Kavita Hanza a partir de um projeto denominado Potencializa: Programa de potencialização de jovens multiplicadores em contextos periféricos, ganhou um edital de Empreendedorismo Social, podendo, assim, ser desenvolvido. Como um projeto voltado para formas de desenvolver negócios sociais nas regiões periféricas, o Periferia Livr@ conta com a participação desde professores e alunos da USP, até alunos de ensino médio. Os estudantes têm a oportunidade de realizar as atividades do grupo de forma remunerada por bolsas da USP, Fapesp, CNPq, entre outros, viabilizando o principal objetivo do projeto: unir ensino e aprendizagem à produção cultural e literária, o empreendedorismo, além de agregar ao currículo dos alunos e apresentá-los à literatura negra e periférica.
Fazem parte alunos da FEA, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Escola de Comunicações e Artes, Instituto de Matemática e Estatística, Faculdade de Educação, Instituto de Psicologia, Instituto de Ciências Matemáticas e Computação e Escola Politécnica, além de professores da FEA em diferentes núcleos de atuação dentro do grupo e estudantes do ensino médio. Entre eles: Thiago Mio Salla (ECA e FFLCH), Maria Laura Martinez (ECA), Fraulein Vidigal (IP), Gustavo Mazzola (IP), Rogério de Almeida (FE). Fazem parte ainda alunos da Universidade (FEA, FFLCH, ECA, IME, FE, IP, ICMC e Poli). Segundo a professora Ana Carolina, 70% dos estudantes que compõem o grupo são residentes de periferias, 61% são pretos ou pardos, 13% são trans ou não bináries e 4% são PcD.
Além do apoio à produção e consumo de literatura nas periferias, a iniciativa também pretende auxiliar imigrantes latinos com os processos de inclusão e aprendizado de português. Com esta atuação, o grupo pretende alcançar a internacionalização do conhecimento produzido nas periferias brasileiras por meio da tradução em espanhol das obras. Atualmente, o Periferia Livr@ conta com três frentes de trabalho: a incubadora de uma editora virtual e a digitalização de obras; a potencialização de editoras atuantes e a elaboração de oficinas que gerem interação entre produtores e consumidores.
Saiba mais:
https://www.periferialivre.fea.usp.br/
https://www.instagram.com/periferialivr_/
https://www.youtube.com/channel/UCvG6BC0tUBYtDuQDf81eS4Q
Com informações de Brenda Fernandes, da assessoria de comunicação da FEA