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Livro resgata origens históricas da moda ativista feita por negros no Brasil

Lançada pela USP, obra destaca atuação de jovens negros e marginalizados que, desde a Conjuração Baiana, expressam uma consciência política por meio do vestuário

 05/04/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Tabita Said
Arte: Carolina Borin Garcia

Maria do Carmo Paulino dos Santos já era uma desenhista industrial experiente quando começou um tratamento para se curar de um dano grave no couro cabeludo, causado pelo excesso de alisamento. Negra, ela conta que precisava manter o cabelo alisado para ser menos estigmatizada no mercado de trabalho. “Eu estava em um processo depressivo, tentando o mestrado na USP, e me identifiquei com a Marcha do Orgulho Crespo”, evento que ocorreu pela primeira vez em São Paulo em 2015. “[A marcha] veio pautar o racismo com a valorização da estética negra”, destaca Maria do Carmo que, a partir desse movimento, passou a trabalhar a ideia da “moda afro-brasileira” em seu negócio e em seus estudos. 

Dona da primeira dissertação da USP que utiliza este termo, agora a pesquisadora lança o livro Moda afro-brasileira é design de resistência da luta negra no Brasil pela Coleção Caramelo, que reúne escritos da produção acadêmica da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Publicada no final do ano passado, a obra deverá integrar o catálogo disponível no Portal de Livros Abertos da USP.   

Atualmente, Maria do Carmo é doutoranda em Design pela FAU e em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Em seu primeiro livro, a autora reúne textos sobre a moda feita por pessoas negras no Brasil contemporâneo. Ela propõe que esta moda se apresenta no cotidiano como linguagem de expressão nas roupas e no design de joias. Para isto, ela apresenta o conceito de “moda afro-brasileira”, trabalhado por ela desde o mestrado. Já utilizado no mercado da moda, o termo se refere ao novo segmento originado pelo ativismo de jovens negros e periféricos, que resgatam o legado da cultura e da resistência negra para expressar uma consciência política.

“A gente carrega uma intenção na escolha do que vestir. E é nesse vestir que a gente conta, imageticamente, um pouco da nossa história”, destaca a pesquisadora, que também lança mão de fundamentos históricos e comportamentais do período da invasão colonial para contextualizar seu pensamento. “A pesquisa que estrutura o livro reflete a luta e a coragem negra em todos os períodos da história brasileira, coragem em resistir e em jamais sucumbir ao projeto de dominação colonial branco”, afirma Ana Barone no prefácio da obra. A urbanista especialista em relações raciais é orientadora de Maria do Carmo no doutorado pela FAU.  

Maria do Carmo Paulino dos Santos - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Para Ana Barone, o livro de “Duca”, como também é conhecida Maria do Carmo, tem um tríplice caráter: estilístico, histórico e político. “Eu percebi que na marcha [do Orgulho Crespo], o pessoal se produzia para ir, se manifestar e enunciar: ‘Abaixo a ditadura da chapinha!’; ‘mulher negra resiste!’. Então eu também trouxe a questão da linguagem narrativa discursiva para esse trabalho”, conta Do Carmo. 

Além de resgatar momentos históricos importantes protagonizados por pessoas negras da sua linhagem de ofício – como a Revolta dos Alfaiates –, a obra faz uma análise da moda “nós por nós” desde seus registros nas faculdades de moda até a passarela mais famosa da América Latina, a São Paulo Fashion Week (SPFW). Apesar de enxergar uma certa abertura das grandes marcas para modelos e criadores negros, Duca acredita que o mercado da moda se apropriou da potência negra e periférica para sobreviver à crise. “Porque a moda gira a economia. A roupa de terreiro em si não é uma roupa ‘da moda’; é uma roupa litúrgica. Mas ela vai ter detalhes produzidos em larga escala, e vai transitar neste meio como uma referência identitária”, afirma. Ao Jornal da USP, Maria do Carmo explica que elementos do modo de vestir negro passaram a circular mais em um momento em que diversas marcas fecharam seus parques industriais. 

Recessão e exceções

O ano de 2015 ficou marcado na economia brasileira por uma das piores retrações dos últimos 25 anos. Naquele ano, o setor de produtos têxteis recuou 13,7% com um PIB encolhido em 3,8%. A maior queda desde a contabilização, em 1996, pelo IBGE. O clima de incertezas no cenário político afetou não apenas a economia, como também estremeceu a autoridade de algumas marcas que ditavam as tendências estéticas. “Quando Gisele Bündchen encerra a carreira surgindo pela última vez na passarela daquele desfile para a Colcci, cheio de modelos brancos, a Fashion Week estava perdendo força”, destaca Maria do Carmo que trabalhou nos backstages nas origens da SPFW, quando ainda se chamava “Morumbi Fashion Week”.

No ano seguinte, Emicida e seu irmão Fióte ocupam a mesma passarela na estreia de sua marca, LAB, com modelos plus size e um casting predominantemente negro. “Ele abre o desfile colocando a periferia no centro. E ainda cantou: ‘Fiz com a passarela o que eles fez com a cadeia e com a favela: enchi de preto’. Foi uma grande sacada”, avalia a pesquisadora. Ela lembra, porém, que a partir da edição seguinte, a SPFW amplia os modos de apresentar a moda experimental feita no Brasil, e adota o modelo “pague para entrar”. “Os convites não eram cobrados, mas eram muito disputados. Mas não só isso. A partir do momento em que a periferia consegue um espaço, eles começam também a identificar os influenciadores digitais para poder alavancar o evento”, afirma. 

Gisele Bündchen se despede das passarelas após 20 anos de carreira em desfile para a Colcci no ano de 2015 – Foto: Reprodução / Estadão via Facebook

De acordo com a empresa de monitoramento digital Torabit, a grife LAB do rapper Emicida foi a mais citada na edição 42 da São Paulo Fashion Week – Vídeo: Laboratório Fantasma/ YouTube

Mesmo assim, a mestre em Têxtil e Moda não vê nas grandes passarelas uma moda criativa e um produto consistente. “Eu acho que o pessoal tem muita dificuldade para fazer o desenvolvimento de um produto de moda, sabe? Não basta misturar peças aleatoriamente e colocar um corpo negro. É preciso contar uma história por meio do vestir, da coleção de moda. Saber fazer uma boa modelagem e ter um bom acabamento”, destaca Maria do Carmo, que criou o Ducaduca em 2005, ateliê especializado em moda afro-brasileira e moda praia plus size. A designer também idealizou projetos de desfiles de moda “Afro” e de processos criativos em resíduos têxteis, para estimular a geração de renda de mulheres nas periferias das zonas sul e norte, onde mora.   

Por ser uma criança inventiva e que falava sozinha, o pai a chamava de “caduca”. Já os irmãos a apelidaram “Du”. Da junção, surgiu o nome do ateliê de Maria do Carmo, o Ducaduca – Fotos: Marcos Santos / USP Imagens

Mãos negras

Quase cem anos antes da Lei Áurea, em 1798, a luta por liberdade e igualdade de direitos marcou a história do Brasil com sangue negro. A Revolta dos Alfaiates, movimento que também ficou conhecido como Revolta dos Búzios e Conjuração Baiana, atraiu a atenção e conseguiu o apoio de diferentes camadas populares como médicos, militares e clérigos. No bojo de outros movimentos sociais organizados na França e no Haiti, a Revolta dos Alfaiates costurava suas articulações políticas nos ateliês de jovens alfaiates negros. A partir do desejo de um País livre da escravidão, marginalizados e sonhadores almejavam também a emancipação do Brasil.

“Eu vejo que esse movimento de moda-ativismo, que tanto falamos hoje, começou lá atrás com João de Deus e Faustino Lira, antes mesmo da Revolta dos Malês. Eles faziam a alfaiataria da corte portuguesa, mas foram enforcados e esquartejados em praça pública porque queriam a liberdade das pessoas negras”, lembra Do Carmo. Em seu livro, a modelista destaca as habilidades de que dispunham esses profissionais, que, com criatividade e domínio da técnica, traçavam o modelo do corte diretamente sobre o tecido.

Para se fazer o traçado de uma peça de alfaiataria, é fundamental possuir conhecimentos de matemática, geometria e ergonomia (…) existiram homens negros que, além de serem explorados como escravos, eram também explorados como alfaiates pelo colonizador.”

“Infelizmente, a história da moda brasileira é contada por um viés europeu e a partir do século 19”, aponta a pesquisadora. Apesar de plenamente capazes e habilidosos no feitio de vestuários e joias, os negros brasileiros foram impedidos de realizar ofícios de mestre durante o período colonial. De acordo com Maria do Carmo, seu conhecimento e contribuição configuram atos de resistência, ainda hoje invisibilizados.

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