Poucas pesquisas discutem a autoria afrodescendente e a produção literária "afro" - Foto: Freepik

Literatura “afro” de Brasil e Portugal será tema de nova edição da revista Via Atlântica

Para compor seu próximo dossiê, revista recebe trabalhos sobre literatura negra e afrodescendente em Portugal e no Brasil; edição especial também publicará artigos sobre a abrangência das temáticas queer nas literaturas de língua portuguesa

 16/02/2023 - Publicado há 1 ano

Tabita Said

A revista Via Atlântica recebe, até 3 de março, artigos inéditos e originais que reflitam sobre a produção de autoria negra e/ou afrodescendente em Portugal e no Brasil. Autores e pesquisadores interessados em participar podem submeter na plataforma seus manuscritos, que irão compor o dossiê 45 da revista. Publicação semestral do Programa de Pós-Graduação de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a nova edição irá discutir temas como literatura e vida social, história, transformação social e resistência, nos contextos português e brasileiro.

“Essa edição se relaciona com algumas pesquisas, ainda poucas no mundo, a respeito de uma outra literatura ‘afro’, que tem se tornado um fenômeno editorial na Europa”, conta Mário César Lugarinho, editor-chefe da revista Via Atlântica. Ele explica que essa produção, chamada genericamente de “afropeia”, é empreendida por cidadãos europeus negros, da terceira ou quarta geração de imigrantes africanos. Em Portugal, porém, o fenômeno chegou mais tardiamente, enfrentando diversos problemas. “Primeiro, reconhecimento como produção literária digna de atenção; segundo, o reconhecimento da afrodescendência nessa produção literária.”

Mário César Lugarinho é professor da FFLCH - Foto: Lucas Pecoraro / USP Imagens

Professor da FFLCH e um dos fundadores da Associação Brasileira de Estudos da Homocultura, Lugarinho é pioneiro, junto de José Carlos Barcellos, na apresentação de uma identidade sexual gay na literatura brasileira, construída paralelamente ao cânone nacional. Há quase dez anos na coordenação da Via Atlântica, ele conta que o periódico deixou de ser apenas uma revista de literatura para apresentar outros modos culturais, como cinema, artes plásticas, graphic novels e outros temas. “Muitas vezes ousados para o que seria a linha editorial tradicional das revistas de letras”, diz.

Rosângela Sarteschi é professora da FFLCH - Foto: Arquivo pessoal

“O ambiente acadêmico tem reagido com certa ambivalência à presença das autorias negras na ordem do dia: ora celebrando uma certa renovação de seus ares, ora estranhando a dicção desses novos agentes na cena literária. Examinar esses fenômenos literários com equilíbrio, compromisso social e rigor técnico é um dos maiores desafios de nossa contemporaneidade”, afirma Rosângela Sarteschi, professora da FFLCH e uma das organizadoras do dossiê. 

“Nossa busca é por artigos teóricos que sejam de grande densidade crítica e que se proponham a interpretar a produção afrodescendente em Portugal e no Brasil”, complementa a docente.

Literatura Negra

De acordo com os organizadores, a crescente presença de autores negros no mercado editorial brasileiro não apaga os impasses étnico-raciais em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural. Já em Portugal, as tensões sobre a autoria afrodescendente e de sua luta por visibilidade despertam espectros históricos que ainda condicionam a recepção de determinados textos. 

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“A interlocução proposta entre a literatura e os campos das ciências humanas e sociais, principalmente o campo da história, se consolida como eficiente estrutura para a análise crítica e a interpretação literária”, afirmam.  

Ao apresentar os contextos luso-brasileiros de produção literária, os organizadores destacam que a história surge como elemento fundamental para a compreensão da experiência negra, cuja trajetória está repleta de silenciamentos. “Mensurar corretamente o impacto dos fenômenos sócio-históricos no domínio da literatura é uma das mais adequadas e eficazes armas para se combater tanto o predomínio de uma pauta estética estéril, quanto para evitar que a literatura se torne um campo desidratado de sentido social.”

A organização desta edição é de Inocência Mata, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de Rosângela Sarteschi, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH, e de Luiz Maurício Azevedo, pós-doutorando da FFLCH.

Edições anteriores da revista Via Atlântica, entre elas a edição 33, que apresentou a queerização de obras e seus criadores do cânone luso-afro-brasileiro - Fotomontagem: Jornal da USP

Mar Aberto

Publicada desde 1997, a Via Atlântica tem por objetivo levar aos estudiosos resultados de investigações desenvolvidas por especialistas nas áreas de Literatura Comparada, Literatura Infantil e Juvenil, Literaturas e Cultura Angolana, Cabo-verdiana, Guineense, Moçambicana, Santomense, Brasileira, Portuguesa, Timorense, de Goa e Macau, além das literaturas e culturas das comunidades em diáspora que se expressem em língua portuguesa.

Criada pelo crítico literário Benjamin Abdala Júnior, professor aposentado da USP, a revista Via Atlântica nasceu como periódico acadêmico que divulgasse questões literárias fora do compêndio tido como referência da língua portuguesa. “Ela é vanguardista e muito ousada porque se propôs a apresentar a produção científica da literatura dos países africanos de língua portuguesa, da produção dos territórios onde ainda se fala português, como Macau e Goa, e a literatura brasileira e portuguesa em uma perspectiva comparada”, diz Lugarinho.

A revista também publica artigos que tratem das relações da literatura com outras linguagens e com outras formas do saber, como o jornalismo, a poesia, a educação, a medicina e o feminismo. Além da diversidade de temas, a revista tem recebido contribuições de autores de todas as regiões do mundo onde se fala o português.

Em seu último dossiê especial, a revista propõe repensar a abrangência das temáticas queer nas literaturas de língua portuguesa, a partir do evento histórico que ficou conhecido como Literatura de Sodoma. “Um evento infeliz que completa 100 anos, em março de 2023. Foi um evento bem complicado que envolveu Fernando Pessoa e reinstaurou a censura em Portugal depois de quase 100 anos sendo um país sem censura”, lembra o editor-chefe.

O processo de submissão de textos para o dossiê 100 anos da Literatura de Sodoma ainda está aberto. O prazo para envio de trabalhos termina no dia 28 de fevereiro. Confira as edições anteriores aqui.


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