Organização coletiva fortalece luta de pessoas em situação de rua contra violências e vulnerabilidades

Movimentos de conscientização coletiva potencializam ações de resistência, enfraquecidas pela desumanização dos indivíduos

 05/12/2024 - Publicado há 1 mês     Atualizado: 10/12/2024 às 14:42

Texto: Maria Trombini*

Arte: Joyce Tenório**

Arte: Joyce Tenório**

A rua é marcada pela pobreza multidimensional e pelas violências, mas também é espaço de produção de conhecimento – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil via Agência Senado

No primeiro semestre de 2024, a  população em situação de rua na cidade de São Paulo cresceu 24%. Os dados do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apontam que mais de 80 mil pessoas da capital paulista não possuem moradia fixa e vivem em situação de extrema pobreza. 

Nilson de Jesus Oliveira Leite Junior, pesquisador do Instituto de Psicologia (IP) da USP, buscou entender quais são os fenômenos comuns às vivências da população em situação de rua e como eles influenciam suas ações e compreensões da realidade ao seu redor e de si mesmos. O resultado foi a dissertação de mestrado A dialética nas ruas: entre a humilhação social, a vergonha e a conscientização na práxis política de pessoas em situação de rua em São Paulo-SP.

A ideia inicial de Nilson era pesquisar sobre a atuação de psicólogos nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), uma unidade pública de assistência social. “Eu queria saber como é que esses profissionais lidavam com o fenômeno da pobreza e se isso impactava a prática profissional; enfim, como é que ocorria nas políticas de assistência.”

Imagem: Homem branco, sorridente com barba e usando uma camisa preta
Nilson Leite Junior - Foto: Currículo Lattes

Ao ingressar no mestrado, Nilson recebeu um convite de seu orientador, o professor Antônio Euzébios Filho, para redirecionar a discussão a fim de abordar a população em situação de rua: “Não mudou completamente o meu grande objeto de pesquisa, porque falar da população em situação de rua é falar de uma grande expressão desse empobrecimento, que é produzido pelo nosso modo de produção, e como esse contexto de pobreza impacta a vida das pessoas”. Para isso, ele tomou algumas categorias teóricas como ponto de partida. 

Possibilidades de ação

A práxis política é a atividade prática e consciente que todos nós, enquanto seres humanos, temos. Ela pode agir em função de conservar ou mudar uma realidade.

Para entender a práxis política das pessoas em situação de rua, a pesquisa analisou três fenômenos sociais: a vergonha e a humilhação social como elementos que reduzem as possibilidades de ação, e a conscientização, que as aumenta.

A humilhação social, enquanto uma categoria teórica, foi cunhada pelo professor José Moura Gonçalves Filho, do IP da USP. Ele a apresenta como uma modalidade de sofrimento que é político e psicológico, originado das desigualdades de classe. Nilson explica que o grande objetivo da humilhação social é produzir um rebaixamento político nas pessoas, porque envolve desumanização e inferioridade nas relações de poder.

A vergonha seria uma consequência da humilhação social, quando há uma internalização desse discurso ofensivo e agressivo. “Isso causa uma desqualificação da autoimagem e várias consequências intersubjetivas. Se na humilhação social a pessoa pode ter a possibilidade de responder àquilo ou revidar, na vergonha é pior, porque a vergonha é um sentimento em que a pessoa acaba aceitando aquela inferioridade. Você internaliza toda essa humilhação que vive, essa condição mais animalesca em que te colocam — quando você tira o caráter humano, você associa a pessoa a uma coisa, a um objeto, a um animal”, argumenta o pesquisador.

Ele também explica a categoria de conscientização, resgatando ideias de pensadores como Paulo Freire e Martin Baró, para falar das formas de ação que ajudam na consciência coletiva e envolvem uma prática. “É pensar, por exemplo, os processos de grupalidade, redes de solidariedade ou de apoio social e afetivo, que lutam pelos direitos da população em situação de rua. É pensar em uma pessoa que está em situação de rua, que durante toda a vida foi chamada de vagabunda, ela se vendo de uma outra forma.”

Muitos já me falaram: ‘Na rua, ninguém quer ficar'. Realmente, porque na rua tem marmita com cacos de vidro, tem paulada, fogo, inúmeras violações de direitos, inúmeras formas de violência. Então, ninguém quer ficar na rua. Mas existe um sistema que vai colocando uma série de obstáculos para que a pessoa tenha uma saída qualificada."

Mapeando vivências

“Eu fui percebendo que a rua também é um espaço de potência. Esse é um termo que eu tenho cuidado ao falar, porque, quando a gente fala ‘potência da rua’, pode cair na ideia de que a gente está romantizando a rua. Não é isso! É demarcar que as pessoas em situação de rua também têm resistências e enfrentamentos. E ter um movimento popular organizado, como o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), é um exemplo contundente dessa organização política deles. Desse outro lado da rua, enquanto potência de ação”, aponta o pesquisador.

Ele relata que a principal dificuldade durante o trabalho foi acessar grupos mais específicos que compõem a heterogeneidade da população em situação de rua, como mulheres, idosos e pessoas trans, visto que o público majoritário da instituição frequentada era de homens adultos.

“Algumas pessoas que eu convidei para participar da pesquisa não quiseram naquele momento. Por exemplo, eu não abordei as mulheres que estavam acompanhadas, sem ter um vínculo prévio com o casal, porque isso poderia gerar algum tipo de situação desconfortável para as próprias participantes. E é por isso que eu gosto de sempre ressaltar meus diários de campo. Uma vez, eu estava na Praça da Sé, participando de um atendimento itinerante, e consegui conversar com uma mulher em situação de rua, uma pessoa LGBT, uma pessoa com deficiência e um idoso. Então, por intermédio deles, eu consegui contornar, de certa maneira, essa questão, que eu considero a principal fragilidade da pesquisa.”

No total, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito homens adultos em situação de rua. A partir delas, foi feita uma análise qualitativa, em que o pesquisador procurou aprofundar as relações das narrativas com determinados fenômenos sociais, entendendo que certos elementos de histórias individuais são passíveis de  generalização.

Imagem: Reprodução do logotipo do movimento MNPR
Bandeira do Movimento Nacional da População de Rua - Foto: Reprodução/MNPR

“Quando eles falam da humilhação social vivida, das diversas formas de violência sofrida, das situações de discriminação, preconceito, dos estímulos associados, da representação social de quem está em situação de rua como uma pessoa vagabunda, suja, louca, perigosa ou que não quer nada com a vida, podemos perceber que não são coisas isoladas daquelas pessoas. São processos que se repetem em outras histórias, em outros grupos.”

Ele destaca que o principal elemento comum aos relatos é a presença da humilhação social e da vergonha nas trajetórias de vida, das mais sutis às mais evidentes. Como consequência, elas reduzem as possibilidades de ação e da prática política, porque causam isolamento da população, distanciamento dos serviços e desqualificação da autoimagem.

Entretanto, Nilson ressalta que a rua, ainda que espaço de muita violência e vulnerabilidade, também promove organização, ação e resistência.

Rualogia : o conhecimento de quem vive

“Uma situação me marcou bastante. Logo no começo, eu participava de algumas rodas de conversa com outros grupos de extensionistas. No final de uma delas, que era sobre racismo e violência policial, uma pessoa em situação de rua, que já frequentava algumas das nossas atividades, chegou para mim e falou que trouxe um colega para participar, ‘porque é importante que ele conheça sobre os seus direitos’”, lembra o pesquisador.

Nilson analisa a importância da atitude, que simboliza não só o próprio reconhecimento dos indivíduos, mas também o movimento de convidar o outro a também se reconhecer enquanto sujeito de direitos.

A estrutura da denominação “pessoa em situação de rua” é uma forma de demonstrar como essa realidade é complexa e multifatorial, muitas vezes conjugada por uma série de diferentes vulnerabilidades, mas que representa uma situação, não toda a trajetória de vida de uma pessoa, e que não resulta em um rebaixamento na condição de cidadão e de sujeito de direitos.

“A rua é esse espaço marcado pela pobreza multidimensional e por várias violências e formas de sofrimento político, como humilhação, estereótipos, vergonha e estigma. Mas a rua também é um espaço de produção de conhecimento. Por exemplo, para conseguir resistir a todo esse contexto de opressão, a todas essas investiduras do próprio capitalismo, desses processos sociais e dessas violências, você vai criando estratégias de resistência. Eu vi muita gente brigando por seus direitos, mas também fazendo muitos laços de solidariedade, muita rede de apoio entre a própria população em situação de rua”, diz o pesquisador. O termo Rualogia é adotado pelo MNPR como forma de demarcar esses conhecimentos produzidos na rua. 

Ele menciona o caso da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 976/DF, quando, pela primeira vez, o MNPR foi ouvido pelo ministro Alexandre de Moraes. Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou o que está prescrito na Política Nacional para Pessoa em Situação de Rua, que determina a necessidade de atendimento prioritário às demandas da população em situação de rua em todo o território nacional pelas competências estaduais e municipais.

“Eu já participei de diversas reuniões de grupos de formação política da população em situação de rua em que eles vão, de fato, bater nessas questões do que é o fenômeno da população de rua. Não como algo individual, mas como uma questão histórica e estrutural, Eles vão problematizar a relação com o sistema de produção, a forma como a sociedade se organiza, os processos ideológicos existentes, principalmente nesse contexto neoliberal em que você tem um ‘cidadão de bem’ e um ‘vagabundo’. Eles vão discutir direitos humanos, onde recorrer, como fazer, quais são as instâncias de controle social”, elabora Nilson. 

O movimento nacional tem um lema: ‘Nada de nós sem nós’. Então, você não fala nada sobre a rua sem a rua. Se eu falo sem a rua, estou dizendo que eles não sabem falar sobre si, que eles não têm o potencial e as capacidades. Esse lema é importante porque demarca que só eles sabem sobre eles mesmos."

Ele reforça a importância do processo de elaboração de políticas públicas junto às pessoas em situação de rua, mas também das universidades enquanto produtoras de conhecimento, que amparem tais ações.

“É preciso pensar em outras formas de produção de cuidado, em como nós podemos pensar políticas públicas que sejam, de fato, correspondentes à realidade social e concreta da população. Há a importância da pesquisa vinda da universidade, mas sempre nessa relação com a população em situação de rua”, finaliza.

*Estagiária sob supervisão de Antonio Carlos Quinto
**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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