No Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste 2024, quem passou pela prova, no dia 3 de novembro, precisou redigir um texto dissertativo-argumentativo sobre os “desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Para alunos, professores e ativistas do movimento negro consultados pelo Jornal da USP, o tema proposto devolveu a pauta antirracista ao debate sobre educação pública, mas ainda está longe do cotidiano das instituições de ensino.
No Brasil, a Lei 10.639 de 2003 instituiu a inclusão de temas sobre história e cultura afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino. Mighian Danae, mestre em História da Educação pela Faculdade de Educação (FE) da USP, avalia que ainda existem lacunas no cumprimento dessa e de outras diretrizes curriculares da educação brasileira. “A gente não pode dizer que, de fato, todas as escolas praticam a Lei 10.639, mas nem todas as escolas também praticam uma educação de qualidade, educação ambiental ou educação sexual. A gente teria que ter um número muito maior de funcionários públicos trabalhando para fazer com que a legislação de fato acontecesse, e sabemos do desmantelamento que o Estado passa frente ao avanço do capitalismo e da globalização.”
Mighian trabalhou por mais de 15 anos como professora de educação básica. Ela acredita que o tema da redação deste ano é fruto de um movimento de reconstrução e reorganização de segmentos do Governo, que retomaram políticas públicas e pautas ligadas a grupos indígenas, quilombolas e negros. “[Essa retomada] acaba chegando às instituições, às repartições e aos setores ligados à educação. Então, eu acho que é uma representação do que de fato está acontecendo no MEC. É como devolver ao lugar de direito esse debate sobre educação pública, gratuita e de qualidade para todo mundo. Porque não dá para ter educação pública de qualidade com racismo”.
“A lei transforma, muda o currículo, mas ela não resolve, porque a gente tem um problema no Brasil que é a herança da escravização, da colonização e da exploração. Isso não é algo que se resolve com uma caneta, com uma promulgação de uma legislação. Eu defendo a legislação! Ela trouxe mudança, mas ela não resolve. O que é que resolve? Só a luta.”
Amanda Medina ingressou na Faculdade de Direito (FD) da USP por meio do Enem e como beneficiária da política de cotas. Hoje, no quinto ano da graduação, ela se diz contente com a escolha para o tema da redação do exame. “A escolha por esse tema demonstra que, apesar de existirem desafios para essa valorização da herança africana no Brasil, há, de outro lado, tentativas de tornar esse debate mais presente. A grande repercussão já é um sinal de que essa questão não ficará restrita a uma prova. Eu avalio esse tema como uma oportunidade de estimular estudantes, professores e gestores públicos a terem um novo olhar sobre as contribuições dos povos africanos.”
Desafios de um currículo engajado
Mighian explica que o acesso a um currículo engajado permite ao estudante ressignificar episódios da história do Brasil e ter um olhar diferente sobre as relações de poder e heranças culturais dos diferentes povos. “O estudante que não teve acesso a um currículo engajado na educação das relações étnico-raciais vai entender que a contribuição da herança africana no Brasil talvez seja o legado do trabalho escravizado. E, veja bem, isso não está de todo incorreto, porque, de fato, o trabalho escravizado produziu riqueza no Brasil. Mas para quem foi essa riqueza? A gente pode olhar para um mesmo lugar e produzir considerações diferentes. Esse saber poderia ser ressignificado, potencializado e engajado.”
“Talvez, o estudante que não teve acesso a um currículo engajado, não vá conseguir fazer essa conexão. Por outro lado, o estudante que teve acesso vai conseguir sim entender que a herança africana está para além de servir como mercadoria escravizada no Brasil. Quem teve acesso vai ter uma leitura; e quem não teve, vai ter uma leitura rasa e pode responder coisas que vão beirar o racismo”, argumenta a educadora.
Para Dennis de Oliveira, professor titular na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, a implementação das temáticas de valorização da história e cultura afro-brasileiras nas escolas ainda é pequena por conta do racismo institucional e estrutural. “Também enfrentamos movimentos direitistas na educação, como Escola sem Partido, alguns projetos que visam tecnicização do ensino, como a proposta do Novo Ensino Médio, e outros. A educação escolar é um espaço importante onde se formam gerações futuras e, se queremos combater o racismo, é fundamental pensarmos como formar gerações futuras comprometidas com esta agenda.”
Amanda integra os coletivos negros Quilombo Oxê e Angela Davis, ambos da FD. Ela relata que o maior desafio tem sido reaproximar integrantes mais velhos dos movimentos com a nova geração. “Estamos falando de pessoas que constroem a luta antirracista no Brasil há mais de 40 anos e de uma juventude negra que não está presente nesses espaços em que há a história viva nessas pessoas. Valorizar a herança africana no nosso País passa, necessariamente, por valorizar e passar a frente as lutas históricas dos nossos mais velhos do movimento negro.”
Quanto ao ensino superior, Dennis avalia que o tema não está presente nas universidades brasileiras por conta do eurocentrismo: “Há uma normatividade dos saberes legitimados nos espaços geopolíticos hegemônicos, como Europa Ocidental e EUA, em detrimento do Sul Global, o que faz com que se introjete um sentimento de subalternidade. A presença negra sempre lembra que o Brasil é um País amefricano, o que causa incômodo”.
*Estagiária sob a supervisão de Antonio Carlos Quinto