Gratuito e gerido por estudantes, cursinho pré-vestibular MedEnsina completa 20 anos

Fundado em 2002, idealizado e comandado por estudantes do curso de Medicina da USP, o cursinho MedEnsina já auxiliou mais de 4 mil estudantes de escolas públicas a ingressar no ensino superior, mantendo a gratuidade como missão

Estudantes do cursinho se reuniram para acompanhar a correção ao vivo do vestibular Fuvest 2021 pela Rádio USP - Foto: MedEnsina

 04/11/2022 - Publicado há 1 ano

Texto: Gustavo Roberto da Silva

Arte: Adrielly Kilryann

O MedEnsina é um curso comunitário, gratuito, organizado por alunos da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Idealizado no ano de 2002, durante uma aula de Patologia do professor Paulo Saldiva, os estudantes da Universidade fundaram o projeto com o objetivo de democratizar o acesso ao ensino superior, oferecendo aulas, monitorias e materiais de estudo para alunos do ensino médio público.

Saldiva conta que a ideia do cursinho nasceu em um período muito difícil da faculdade, quando um calouro da Medicina morreu acidentalmente em uma piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz (Caoc). “E nossos alunos, ao saírem na rua com a blusa do curso, eram chamados de assassinos. Eu falei: por que não fazemos uma coisa afirmativa? Vocês estudaram para entrar aqui, então vocês sabem ensinar as matérias do secundário. Vamos montar um cursinho gratuito”, conta Saldiva ao Jornal da USP e lembra que, diferentemente de outros cursinhos populares, que cobram pequenas quantias dos estudantes para se manterem, o MedEnsina conseguiu se manter gratuito.

Paulo Saldiva - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Paulo Saldiva - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Gerson Salvador - Foto: Arquivo Pessoal

Gerson Salvador - Foto: Arquivo Pessoal

Estava presente na turma de 2002, quando cursava seu segundo ano de Medicina na faculdade, Gerson Salvador, atual professor de Propedêutica Clínica na graduação da FMUSP e médico infectologista no Instituto de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital das Clínicas (HC). “Nossa turma se organizou para realizar um projeto piloto que aconteceu no segundo semestre daquele ano”, lembra. “E o professor Saldiva conseguiu material didático, apoio da faculdade para liberação dos anfiteatros e toda estrutura da qual o curso precisava.”

Gerson Salvador - Foto: Arquivo Pessoal

Gerson Salvador - Foto: Arquivo Pessoal

“Eu lembro bem do Gerson. Ali ficou claro que seria uma coisa administrada por alunos, como se fosse uma liga, e os professores dariam um suporte para o que fosse necessário e para utilizar um espaço da faculdade. O primeiro material foi do Anglo, que nos deu as apostilas de alunos dos anos anteriores”, lembra Saldiva. Ele explica que desde o início foi determinado um critério de seleção de estudantes oriundos de escola pública que fariam uma prova seletiva. Destes, o Serviço Social do HC faria uma nova seleção baseada em critérios socioeconômicos. “E assim o cursinho começou, de forma improvisada. Acomodamos uma turma de 90 [estudantes], que era o que cabia no anfiteatro, depois passamos a 180”, detalha.

O cursinho obteve sucesso desde sua primeira edição, e se tornou um projeto de extensão no ano seguinte. As inscrições foram abertas para estudantes de escolas públicas, priorizando aqueles que não podiam arcar com aulas particulares, critério mantido até hoje.

A demanda por parte dos vestibulandos foi imediata, assim como os resultados. Salvador conta que, já no primeiro ano, alunos do MedEnsina conseguiram aprovações na USP e em outras universidades públicas. Vagas em outros programas do ensino superior, como o ProUni, também foram conquistadas, com destaque para uma estudante que se tornaria a primeira mulher negra a se formar em Jornalismo pelo Mackenzie. 

“Foi uma experiência muito feliz na minha vida, acho que ajudou a me formar como cidadão, assim como vários colegas que se engajaram”, diz Salvador. Além do engajamento, atualmente os estudantes envolvidos com o cursinho prestam assessoria a estudantes de outras universidades que replicam o modelo empresarial de cursinho do MedEnsina em outras instituições. Mantendo uma relação próxima e de afeto com o cursinho, Saldiva explica que a tutoria também rende créditos aos alunos, como uma disciplina optativa. 

“Eles estão fazendo um exercício fundamental para um profissional de saúde que é a alteridade; se colocar no lugar do outro. Por exemplo, tivemos um aluno que entrou na Faculdade de Medicina de Londrina e que não ia bem em português, linguagem. E os alunos de internato se reuniam com ele aos finais de semana para ler Machado de Assis”, conta. “Então, eles fizeram um diagnóstico das fragilidades daquela pessoa, para então aplicar a terapêutica adequada. Assim como há a medicina personalizada, aquilo foi um ensino personalizado”, compara o médico, professor e mentor do cursinho. Para ele, é fácil ter compaixão; o difícil é ser solidário. 

Atualmente, o cursinho mantém quatro turmas com 270 vagas, cada, e conta com o apoio da diretoria da faculdade e do Caoc. As aulas acontecem diariamente nos anfiteatros da FMUSP, durante o período noturno. As turmas são anuais, sendo 43% das vagas destinadas a autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, 4% para pessoas transgênero, 4% para pessoas com deficiência e o restante para classificação geral. Os candidatos que se inscreverem para a reserva de vagas de autodeclarados pretos e pardos passam pela banca de heteroidentificação.

Até hoje, Saldiva sai de sua sala, que fica em frente ao anfiteatro utilizado pelo cursinho, para observar os estudantes, se encantar e “tomar uma injeção de esperança”, diz.

Acolher e aprovar

O objetivo de todos os envolvidos no projeto é claro: conseguir aprovações nas principais universidades do País. Apenas nos últimos três anos, 78 alunos ingressaram diretamente em universidades públicas, em diversos cursos. Em 2021, foram 10 aprovados em diferentes cursos da USP, incluindo Medicina e Terapia Ocupacional, oferecidos pela FMUSP. 

Além das aulas, são oferecidos plantões, simulados, tutoriais, material didático gratuito, disponibilizado pelo Sistema de Ensino Poliedro, que é um dos parceiros do projeto, e apoio psicológico aos alunos através de parceria com o Projeto EntreLaços. Todos os professores são estudantes da faculdade, somando mais de 150 voluntários. 

É o caso de Maya Thiery Kizaki Becca, aluna do sexto ano do curso de Medicina e instrutora de química no projeto. “Poder ajudar pessoas a buscarem o sonho de estar em uma faculdade pública parecia algo incrível e inimaginável para mim.” Segundo a graduanda, a relação estabelecida com os alunos tem sido sua principal motivação desde que começou a dar aulas. “Muitas vezes eles trabalham durante o dia e frequentam o cursinho à noite, o que os deixa muito cansados, mas mesmo assim consigo perceber o quanto eles lutam para estar no MedEnsina”, conta.

Maya Thiery Kizaki Becca e seus colegas de turma - Foto: Arquivo pessoal / MedEnsina

A respeito do potencial transformador do projeto, Maya chama atenção para a mudança de paradigma social que o curso promove. “Esses 20 anos significam 20 anos ajudando a diminuir a desigualdade no Brasil. Atualmente temos muitos alunos que estão em universidades públicas, inclusive na FMUSP. Isso é a prova de que o MedEnsina muda vidas. Alunos que muitas vezes não tiveram matemática básica, estão cursando engenharia, alunos que nunca tiveram aula de história, hoje são professores”, exalta.

Dentre as inúmeras trajetórias de ex-alunos, se destaca a de Saulo da Silva Pereira, que há cerca de 19 anos saía do ensino médio de uma escola pública na periferia de Embu das Artes “sem fazer ideia do que era vestibular, curso superior ou universidade pública”, até tomar conhecimento do cursinho popular organizado pelos alunos da FMUSP. “O MedEnsina ampliou meu horizonte de possibilidades. Foi onde aprendi que superar muitas das deficiências do ensino médio público e reivindicar uma vaga no ensino superior era possível”, afirma. 

Em 2018, ingressou no curso de Medicina da FMUSP e viu a possibilidade de retribuir as ferramentas educativas que havia recebido para transformar sua vida por meio da educação. “A possibilidade de fazer aquilo que eu já amava fazer, graças àquela sementinha plantada lá em 2003, mas agora no mesmo cursinho que anos atrás me mostrou caminhos e possibilidades.”

“Às vezes uma utopia deixa de ser desejável e passa a ser possível. Foi isso que aconteceu, esse milagre de pegar um sonho e fazê-lo funcionar até hoje”, ressalta Saldiva.

O MedEnsina dura o ano todo e tem aulas de segunda a sexta, no período da noite, que preparam os alunos para as provas de acesso às universidades (vestibulares e Enem) de todas as áreas. O curso é gratuito e voltado para pessoas que não tenham condições de se manter em um cursinho particular. O material doado ao cursinho também é gratuito. A única taxa cobrada no valor de R$ 27 é a de inscrição para o processo seletivo, que ocorre uma vez por ano, nos meses de dezembro e janeiro. O processo é formado por uma prova de múltipla escolha com questões sobre a matéria do ensino médio e uma avaliação socioeconômica. Saiba mais clicando aqui - Imagem: Reprodução / Site MedEnsina

Sobre a marca de 20 anos de atividades do MedEnsina, Saulo, que hoje é professor voluntário, acredita se tratar do resultado de um compromisso em constante renovação. “É a vitória de uma ideia que surgiu em 2002 a partir de um ilustre professor patologista e um grupo de alunas e alunos inspirados e motivados, e daqueles que lutam dia após dia para mudar suas vidas e histórias em um país cada vez mais desafiador.”

O cursinho possui uma parceria desde 2002 com a Rádio USP, para promoverem a transmissão ao vivo da correção das provas de primeira e segunda fases do vestibular da Fuvest. As correções ocorrem no mesmo dia dos exames. Atualmente, as correções também são transmitidas pelo Canal USP no Youtube. A correção da Fuvest 2022 será no dia 4 de dezembro, logo após a liberação do material pela Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), organizadora do concurso.

Com informações da Assessoria de Comunicação da Faculdade de Medicina da USP

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