Glória Maria durante o 25º Prêmio da Música Brasileira - Fotomontagem sobre imagem Flickr via Wikimedia Commons

Glória Maria, repórter, viveu uma intensa aventura jornalística

A jornalista Glória Maria, que morreu no último dia 2 de fevereiro, marcou época na TV brasileira com sua coragem e independência

 08/02/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Antonio Carlos Quinto
Arte: Carolina Borin Garcia

Na década de 1970, em plena ditadura militar, Glória Maria, uma repórter negra, entrava ao vivo e em cores no Jornal Nacional. Começava ali uma história de coragem e de determinação que culminou, mais de 30 anos depois, com a participação dela na primeira transmissão em HD da TV brasileira, no ano de 2007.

Dennis de Oliveira – Foto: Reprodução

Nada fácil iniciar na carreira jornalística num período politicamente complicado e manter suas convicções. Naquele período, Glória Maria já mostrava o que seria a sua atuação no jornalismo brasileiro como “mediadora dos acontecimentos”, como destaca o professor Dennis de Oliveira, do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Ali ela já praticava o jornalismo de ir às ruas e não deixando, principalmente, de assumir a sua raça, com seu cabelo blackpower”, enfatiza Dennis.

Aliás, como lembra o docente, era também um momento de afirmação de uma estética negra, tanto em São Paulo, como no Rio de Janeiro. “Certo que os movimentos não eram exatamente iguais nas duas cidades, mas havia essa preocupação”, cita o professor.

Após um início já marcado pela coragem, vieram importantes reportagens de Glória Maria. “Lembro que ela cobriu a posse do presidente americano Jimmy Carter”, ressalta o professor. Dennis de Oliveira destaca também que Glória Maria “furou uma bolha”, quando ela quebrou uma estética televisiva essencialmente branca. “E vale ressaltar que, na época, os ídolos negros não eram tantos. Quando se pensava em ídolos negros, éramos direcionados ao campo lúdico, como esportistas, por exemplo. A partir de Glória Maria, surgiram discussões sobre como negros e negras teriam seus lugares no jornalismo”.

Mesmo com o pioneirismo de Glória, ainda há muito a se construir. “Afinal, mesmo tendo crescido o número de profissionais negros e negras nos telejornais, sabemos que os comandos na maioria das redações ainda são, predominantemente, masculinos e brancos”, analisa o docente.

Coragem na vida, nas reportagens​

Foram muitos e diversos os trabalhos de Glória Maria. Para ela não bastou a posse de um presidente americano. Cobriu uma guerra, a das Malvinas. Um conflito armado entre a Argentina e a Inglaterra pelo controle das Ilhas Malvinas. Foi a primeira mulher jornalista a cobrir uma guerra, no início da década de 1980. Ela noticiou o cessar-fogo ao vivo!

Em dezembro de 2021, a jornalista foi entrevistada pelo rapper e compositor Mano Brown. Na conversa, ainda disponível na plataforma Spotify, e que foi recentemente repetida, Glória Maria contou um pouco de sua história pessoal e profissional destacando, principalmente, a sua total independência. “Nunca, em momento algum, ninguém disse a mim o que fazer”, declarou. Ela também lembrou histórias de sua avó paterna, dona Alzira. “Nossa história sempre foi de correntes. Minha bisavó dizia: não permita nunca que te acorrentem. Fui criada para ser livre e nunca tive atitudes de vitimismo, mas sim de enfrentamento. Eu sempre soube que ia enfrentar o preconceito e o racismo”, disse a jornalista à época.

Mesmo naqueles tempos complicados, Glória nunca se curvou, mesmo diante da “autoridade” de um presidente da república militar. Foi em 1979, quando o então presidente João Figueiredo protagonizou um episódio de racismo. Numa das diversas entrevistas concedidas pela jornalista, ela contou quando foi fazer a famosa fala dele na Vila Militar, após sua indicação, em que ele dizia: “Para defender a democracia, eu bato, prendo e arrebento”, contou. Glória rebateu, ao vivo: “Isso que o senhor citou não existe mais”. Com isso, acabou sendo expulsa pelo general: “Tira essa mulher daqui, tira essa mulher daqui”. Após esse episódio, o general sempre dizia à sua equipe de segurança: “Tira aquela neguinha da Globo daqui”.

E-book destaca a jornalista como referência

Glória deixa um legado de lutas, de coragem e pioneirismo que permitiu abrir fronteiras a outras mulheres jornalistas, e negras, nesta fascinante profissão. E foi num Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de autoria da jornalista Caroline de Jesus Queiroz da Hora, com supervisão da professora Cláudia Nonato, que ficou evidente a importância de Glória Maria para outras profissionais. O resultado, apresentado em dezembro de 2018 ao Centro Universitário FIAM/ FAAM, foi o livro-reportagem intitulado Além de Glória Maria: A representatividade da mulher negra no telejornalismo brasileiro, que traz o depoimento de cinco jornalistas negras que tiveram Glória Maria como inspiração: Luciana Barreto, Mariana Aldano, Tássia Sena, Valéria Almeida e Cynthia Martins.

Claro que Caroline teve como referência a repórter Glória Maria. “Em casa havia apenas um aparelho de TV e fazíamos uma espécie de revezamento para assistir aos nossos programas preferidos. Eu sempre assistia ao Fantástico, com a Glória”, conta a jornalista. “Eu não via pessoas negras em posição de destaque na televisão”, lembra. Fora do mercado de trabalho no jornalismo, Caroline trabalha, atualmente, como consultora de negócios numa fintech. Apesar de ter Glória como uma referência, Caroline nunca pretendeu trabalhar no jornalismo diante das câmeras. “Ainda quero atuar na profissão, claro, mas não em frente a uma câmera. Mas é um prazer ver as matérias de Glória Maria sobre suas viagens. No livro-reportagem, Caroline traça a trajetória das jornalistas entrevistadas por ela e informa dados de uma pesquisa intitulada A Cor dos Apresentadores de TV no Brasil, realizada em 2017 pelo coletivo de comunicação Vaidapé, que analisou 204 programas das sete principais emissoras do País e mostrou que, dos 272 apresentadores, somente 3,7% são negros. Esses números contrastam com a real composição da população brasileira que, em sua maioria, é composta de pretos e pardos.

As profissionais destacadas na obra, apesar da origem e caminhos distintos, têm em comum muito mais do que a determinação ou a profissão escolhida: todas tiveram ou têm a jornalista Glória Maria como referência negra no telejornalismo.

Da esquerda para direita, Cynthia Martins, Tássia Sena, Valéria Almeida, Caroline de Jesus Queiroz da Hora, Luciana Barreto e Mariana Aldano - Arte sobre fotos Redes Sociais

Luciana Barreto 
Âncora e editora-executiva do Repórter Brasil (edição da manhã), na TV Brasil, Luciana Barreto de Farias nasceu em Nova Iguaçu, RJ. “Quando eu venho para a televisão, eu percebo que eu tinha um problema de autoestima muito grande e que esse problema tinha uma raiz, que era uma raiz da infância.”

Mariana Aldano 
Mariana Aparecida Aldano nasceu e foi criada na cidade de São Bernardo do Campo, SP, filha de um metalúrgico e de uma dona de casa. Com o auxílio do movimento feminista e do feminismo negro, ela declara que seus olhos estão se abrindo e já consegue enxergar que nas vezes em que foi a última opção não era sua culpa, mas da sociedade que é perversa e que tem a discriminação de gênero e raça introjetada no gene social.

Tássia Sena 
Tássia de Sena Santos nasceu na cidade São Paulo e tinha verdadeira paixão por jornal impresso e o sonho de trabalhar com a imprensa escrita. […] quando achar que é complicado ser uma jornalista negra no vídeo, vale o exercício de imaginar quão pior foi no passado para Glória Maria e Zileide Silva, por exemplo. “Durante algumas gerações ainda precisaremos provar nossa capacidade, só não podemos tomar para si o discurso de quem oprime, pois a situação já foi mais difícil.”

Valéria Almeida
Valéria de Almeida Gomes nasceu na cidade de Santos, SP. No seu depoimento ao livro-reportagem, a jornalista declarou: “Tenho lembranças das imagens de guerra, de tiros cortando o céu, das lutas de boxe que meu pai assistia, mas lembro mesmo de ver a Glória Maria e achar sensacional aquela pessoa que era semelhante a mim.” Valéria ainda cita que a figura daquela jornalista a marcava e que enxergava nela um símbolo de força e liberdade. Também sabia que não seria uma Paquita da Xuxa, mas vendo Glória Maria sentia que era possível estar na telinha.

Cynthia Martins 
Cynthia de Paula da Silveira Martins nasceu na Zona Sul do Rio de Janeiro, mas viveu no subúrbio carioca. A televisão era muito presente em sua vida. Assim como muitas crianças da mesma geração, chegava da escola e corria para a frente da TV sem nem mesmo tirar o uniforme. Quando questionada se sofreu algum tipo de discriminação, a resposta vem rápida e certeira: “Provavelmente devo ter sofrido sim, mas às vezes a gente tenta ignorar para não cair no laço do vitimismo.” Mesmo assim concorda que a discriminação acontece de inúmeras maneiras, inclusive quando nos sentamos ao lado de alguém e essa pessoa nos olha estranho.

Grandes personagens e o mundo a seus pés

Em sua carreira jornalística, Glória Maria conheceu mais de uma centena de países. Viajou e fez reportagens das mais diversas. Pelo microfone de Glória passaram, entre outros, Michael Jackson, Julio Iglesias, Mick Jagger, Madonna. Foram muitas as aventuras também: salto em bungee jump e visitas a lugares inóspitos do planeta.

E numa casualidade, em 1977, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, Glória cobriu uma ressaca do mar. Foi quando ela encontrou o cantor Raul Seixas, que teve seu carro “atropelado” pelas águas do mar durante a ressaca. O vídeo desse encontro “casual” pode ser visto na plataforma do Youtube.


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