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Fotomontagem com imagens de Reprodução/Na mira do mito, Heath Alseike/Flickr e Wikimedia Commons
Na mira do mito: livro-reportagem analisa ataques de Bolsonaro a jornalistas mulheres
Formada em Jornalismo pela USP, autora investiga a relação do atual presidente com a imprensa e entrevista quatro jornalistas agredidas
O livro-reportagem Na mira do mito: jornalistas mulheres como alvos preferenciais do presidente Bolsonaro investiga a relação do atual presidente com a imprensa e, por meio de entrevistas feitas a quatro jornalistas, também busca identificar por que ele acumula ataques específicos a mulheres. O material pode ser acessado virtualmente.
Produzido por Júlia Vieira para o curso de Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o trabalho foi concluído em junho de 2022 e teve a orientação da professora Elizabeth Saad.
A ex-aluna decidiu pesquisar os motivos que levam o chefe do Executivo a utilizar, em suas falas e ações, comportamentos os quais descredibilizam o trabalho dos profissionais de comunicação, sobretudo as mulheres. Ela relata ao Jornal da USP que há duas questões incentivadas por Bolsonaro evidenciadas em seu trabalho: a repulsa contra a imprensa e a repulsa contra as mulheres.
Para entender essas violências sofridas, seja pelo trabalho jornalístico ou simplesmente por ser uma figura feminina, Júlia entrevistou quatro mulheres jornalistas, que já foram mira das agressões de Bolsonaro: Thaís Oyama, Patrícia Campos Mello, Vera Magalhães e Victoria Abel.
A foto escolhida para ser capa do livro é o momento em que Bolsonaro faz esse gesto para a deputada federal Maria do Rosário, também presente na obra. A intenção de não mostrar a face inteira do presidente seria justamente não torná-lo protagonista na história. A cor roxa é associada ao feminismo.
“Para mim, era importante que elas saíssem das estatísticas e das notícias factuais, que narravam apenas os acontecimentos, e se tornassem pessoas como realmente são. Com voz, com sentimento. Elas mereciam, e precisavam, ser ouvidas”, afirma Júlia, no prefácio de seu livro-reportagem.
Na publicação, a autora destaca falas do presidente que, segundo ela, evidenciam um movimento de ataque paradoxal: ataca a imprensa, mas simultaneamente se utiliza dela para se autopromover. Assim, os discursos polêmicos proferidos por Bolsonaro acabam viralizando nas redes sociais. Para a autora, esta estratégia faz com que suas falas contaminem a opinião pública e tornem-se reprodutivas.
Segundo Júlia, ainda que o “mito” – como Jair Bolsonaro é conhecido entre seus seguidores – mire os seus ataques à imprensa como um todo, o alvo preferencial do atual presidente é de profissionais mulheres, com um discurso marcado por atitudes misóginas.
Júlia Vieira acredita que o livro-reportagem poderá fortalecer outras mulheres jornalistas e evidencia a necessidade de repudiar esses ataques, e não naturalizá-los - Arquivo pessoal
A jornalista conta que, atualmente, devido ao período eleitoral, esses ataques vêm sendo cada vez mais disparados, por se tratar de um momento em que as figuras políticas são mais questionadas pelos jornalistas. Segundo ela, a forma como Bolsonaro responde às perguntas que apontam algo negativo sobre ele ou o seu governo, é atacando o profissional que o questiona. O relato mais recente que viralizou nos veículos de comunicação foi a agressão sofrida pela jornalista Vera Magalhães, por parte do atual presidente, durante o primeiro debate entre os presidenciáveis.
Júlia acredita que devido aos ataques sofridos por sua colega de profissão, Vera Magalhães, em rede nacional, a repercussão levou o público a entender o perigo dessas “práticas” do presidente. “Entristece saber que precisamos chegar a esse ponto para que o tema ganhe relevância. Porém espero que com isso a gente mude a forma como vamos reportar esses casos daqui para frente, repudiando com veemência, enfatizando o caráter misógino e sexista, e mostrando como esse tipo de ataque fere a democracia”, diz.
“Vera, não podia esperar outra coisa de você. Acho que você dorme pensando em mim. Você tem alguma paixão por mim. Você não pode tomar partido num debate como esse, fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro” - Jair Bolsonaro.
Diante da fragilização da saúde mental não só da autora, mas de outras profissionais de comunicação, Júlia conta que parar de reportar nunca seria uma opção. Seu livro-reportagem seria uma ferramenta de contra-ataque, sustentado pelo histórico da liberdade de imprensa no Brasil. A jornalista entende que a obra ajudaria a entender, cuidadosamente, o que levaria um presidente a se utilizar da sua posição para atacar os jornalistas, sobretudo as mulheres.
A origem do ataque
Dividido em duas partes: Ele e Elas, o livro-reportagem conta como o atual presidente vem alterando a forma como tem se relacionado com a imprensa ao longo dos anos a partir de documentos históricos. Júlia resgata a primeira menção a Bolsonaro em um veículo de comunicação. Foi em 1983, na Folha de S.Paulo, ao ser promovido nas Forças Armadas. Já em 1986, quando era capitão, ele mesmo escreve um artigo para a Revista Veja, com o título “O salário está baixo”. No texto, Bolsonaro afirma estar insatisfeito com a falta de reajuste aos soldados militares, em uma época em que a inflação chegou a 517%.
Uma das aparições que mais ganharam destaque ocorreu em 1987, quando uma reportagem da mesma revista denunciava o plano de Bolsonaro de explodir bombas nos quartéis, caso o reajuste salarial prometido aos militares ficasse abaixo de 60%. Ele negou o envolvimento, mas, anos depois, em uma outra edição do veículo, foi comprovado que até um esboço do plano foi feito à mão por ele, e entregue à repórter Cássia Maria. Para Júlia, não há como negar: Bolsonaro começava ali seus ataques, ao tentar descredibilizar o trabalho de uma jornalista mulher.
A autora identificou que o comportamento de Bolsonaro foi se alterando à medida que os holofotes foram crescendo. De acordo com o TCC, quanto mais a responsabilidade atribuída a Bolsonaro aumentou – e consequentemente a cobrança sobre suas ações -, cresceram também o número de ataques e a intensidade da violência, de maneira a criar novos focos de atenção nos noticiários. Segundo a autora, não apenas agredindo as figuras femininas, como também descredibilizando o papel da imprensa, por meio de relatos falsos que eram desmentidos quando comprovados.
“A preferência por atacar mulheres está visceralmente associada a preconceitos ancestrais. Parte de apoiadores de líderes populistas gosta de poder se libertar do politicamente correto e se deleita com essa ‘licença’ para dar vazão a um machismo incrustado, que muitas vezes acomete também as mulheres — é uma espécie de catarse".
Patrícia Campos Mello, jornalista, no livro Na mira do mito
A autora do livro também utilizou estudos realizados por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e publicados na Plural, revista de Ciências Sociais da USP. Um dos artigos, “Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: 30 anos (1987-2017) de pautas políticas de Jair Bolsonaro nos jornais brasileiros, está presente na 28ª edição da revista.
Para Júlia, era preciso abrir espaço e ouvir o que as vítimas tinham a dizer.
Reportando as agressões
Em conversa com as jornalistas Thaís Oyama, Patrícia Campos Mello, Vera Magalhães e Victoria Abel, Júlia decidiu dar visibilidade ao que as comunicadoras sentiram e ao que teriam para dizer ,como forma de contra-ataque. A autora narra esses relatos na segunda parte do livro-reportagem, intitulado Elas, em que apresenta os relatos de forma individual.
A maior dificuldade para Júlia foi separar as situações da sua vida pessoal e profissional, afinal ela também é mulher e jornalista e acabava se imaginando no lugar das profissionais relatadas.
“Creio que me afetaria imediatamente, mas não há como prever, principalmente porque esse tipo de violência vem de formas que nem percebemos. Muitas vezes, nem conseguimos responder a eles. O que o processo de construir esse livro me mostrou, no entanto, é que existe uma rede de apoio entre as jornalistas mulheres. Saber disso me acalma. Eu não estarei sozinha”, conta Júlia.
Ele passará, mas as suas palavras não passarão é o título de parte da publicação que se refere aos relatos de Thaís Oyama. A jornalista sofreu ataques do presidente por escrever um livro sobre o primeiro ano de sua gestão. Como consta no livro, o presidente não gostou nada de ter suas crises, intrigas e segredos expostos e mirou sua artilharia na autora. Thaís conta a Júlia que nunca viu, em toda a sua carreira, um presidente que tratasse a imprensa em um patamar como o que Bolsonaro trata.
“Ele faz uma campanha difamatória sistemática. Isso vai ficar por um bom tempo. O governo Bolsonaro passará, mas as sequelas desse movimento não. Vamos ter muito trabalho para reconstituir a reputação da imprensa constitucional”, lamenta a jornalista que também é colunista no UOL.
Já para Vera Magalhães, apresentada no livro em Nós não somos da mesma laia, Bolsonaro prefere atacar mulheres porque acha que elas são mais sensíveis e que, por isso, se dobrarão mais facilmente. A jornalista, que assim como Júlia também se graduou na ECA, conta que os ataques sofridos, inicialmente, a abalaram profundamente. A jornalista chegou a parar a gravação de um programa para poder vomitar, de tão nervosa que ficou ao ouvir as agressões de uma figura que representa o País. Vera, com o tempo, não se deixou abalar e afirmou que não tolera mais esse tipo de agressão.
“Espero que a gente ainda não esteja nesse ponto, no Brasil, em que jornalistas políticos tenham de reforçar sua segurança, porque esse é um sinal de que a democracia já foi realmente para o buraco”, aponta Vera.
Júlia conclui o livro ressaltando que é preciso continuar falando sobre os ataques que a imprensa vem sofrendo, sobretudo, quando as violências têm como alvo mulheres. Segundo a autora, o livro ainda necessita de atualizações. “Digo isso com tristeza, mas acredito que os casos continuarão ocorrendo enquanto Bolsonaro permanecer como uma figura pública relevante. Mesmo sem cargo, acho que o modus operandi dele vai continuar o mesmo. Ou seja, ele atacará quando for questionado.”
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