Dia Nacional da Visibilidade Trans reforça luta por cidadania e respeito

Segundo cientista social, data celebra a história do ativismo desde os anos 1980 e serve de norte à organização das pessoas trans

 Publicado: 29/01/2025 às 17:54
A imagem mostra o Congresso Nacional iluminado com as cores rosa, azul e branco

Dia Nacional da Visibilidade Trans nasceu a partir de um ato no Congresso – Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados

Em 29 de janeiro de 2004, o ato para o lançamento da campanha Travesti e Respeito no Congresso Nacional marcou aquele que seria escolhido como o Dia Nacional da Visibilidade Trans. Lançada pelo Ministério da Saúde em parceria com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a campanha foi a primeira contra a transfobia no Brasil. O dia 29 de janeiro passou a ser uma data para celebrar as vidas trans, mas também reforçar sua luta por reconhecimento e garantia de direitos. Luta esta que, segundo Lux Ferreira Lima, doutore em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, antecede em décadas a campanha de 2004.

Lux aponta que o fortalecimento da militância trans desde 1980 culminou em algumas conquistas importantes da atualidade. Essas conquistas incluem protocolos de atendimento específico à população trans no Sistema Único de Saúde (SUS), a retificação de nome e sexo em documentos de identidade e a adoção de cotas trans em universidades do País.

“Não tem como pensar em todas as conquistas que podemos vivenciar hoje em dia sem reconhecer e celebrar a coragem, a ousadia e a persistência de ativistas trans, em especial travestis negras, como Fernanda Benvenutty, Janaina Dutra, Jovanna Cardoso e Keila Simpson, dentre muitas outras – desde o enfrentamento à ditadura militar, à brutalidade policial e ao projeto necropolítico de ‘gestão’ do HIV/Aids durante a epidemia nos anos 1980 e 1990”, diz Lux, que é também pesquisadore vinculade à Rede de Estudos Trans-Travestis, ao Coletivo de Estudos (In)Disciplinares do Corpo e do Território (COCCIX/NAU) e ao Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas), estes dois últimos sediados na FFLCH.

Lux Ferreira Lima – Foto: Edat/Unicamp

Contudo, ainda há muito a ser feito. A violência transfóbica sofrida em diversas camadas da sociedade e a precariedade de garantia dos direitos das pessoas trans são apenas alguns dos pontos levantados por Lux. Confira a entrevista com Lux Ferreira Lima, editada para fins de concisão:

Poderia falar sobre a sua relação com a causa trans?

Eu tinha, até os vinte e poucos anos, contato com o trânsito de gênero muito pautado pela representação hegemônica da grande mídia. Um pouco antes de entrar no mestrado, tive a sorte de esbarrar nas mobilizações argentinas pelo direito à retificação de registro civil de pessoas trans em cartório sem requisição de laudos médicos, que culminaram na Lei de Identidade de Gênero. A partir daí, me despertou a vontade de conhecer, analisar e participar da publicização da luta trans no Brasil por direitos – algo sobre o qual me debrucei no mestrado, especialmente sobre pedidos de retificação de registro pedidos por pessoas trans em Tribunais Estaduais brasileiros e os argumentos elaborados no processo de autorização ou recusa de tais pedidos.

No doutorado, fui atraíde por narrativas autobiográficas trans – um movimento que num primeiro momento vi como intelectual. Depois, compreendi que havia aí também um desejo pessoal: ao longo do doutorado, tive a sorte de conseguir nomear um horizonte de possibilidade de existência que até então nem considerava imaginável, e assim começar meu processo de trânsito e assunção da não binariedade. Nesses últimos anos, tenho tentado contribuir no campo acadêmico e em espaços de reflexão mais amplos para a disseminação de perspectivas trans – não só sobre transição e sobre dissidências de gênero, mas sobre o mundo em que vivemos, sobre os pressupostos que organizam nossa cognição e entendimento, sobre passados apagados e futuros que podemos desejar.

Quais avanços tivemos de 2004 para cá? Quais desafios permanecem?

Não tem como pensar em todas as conquistas que podemos vivenciar hoje em dia sem reconhecer e celebrar a coragem, a ousadia e a persistência de ativistas trans, em especial travestis negras, como Fernanda Benvenutty, Janaina Dutra, Jovanna Cardoso e Keila Simpson, dentre muitas outras – desde o enfrentamento à ditadura militar, à brutalidade policial e ao projeto necropolítico de “gestão” do HIV/Aids durante a epidemia nos anos 1980 e 1990. O fortalecimento dessa militância nos levou até a campanha em 2004, e essa prática ativista que era na verdade uma luta cotidiana pelo direito à vida e à dignidade foi se consolidando e tendo papel central em uma série de conquistas que hoje são tão familiares.

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Infelizmente, também viemos de um processo histórico de atualização de um regime transfóbico de existência, cujos termos organizam a condução da vida social no Brasil. Isso leva a uma violência transfóbica em diversas camadas – desde transfeminicídios, cuja contabilização ultrapassa as centenas anualmente, passando por representações estigmatizantes e essencialistas em programas de TV e conteúdo digital, até o pânico moral que políticos de ultradireita vêm construindo em torno de pessoas trans, com o objetivo de silenciar reflexões e conversas sobre diversidade sexual e de gênero nas escolas, na mídia, no debate público e em espaços de decisão. Grande parte do enfrentamento dessa violência reside não apenas em ter pessoas trans nesses espaços. Faz-se necessário um engajamento, também em coalizão, de reorganização do currículo escolar, dos padrões de representação de comunidades historicamente vulnerabilizadas, de modos de habitar espaços (fazer valer o uso de nome social, repensar divisão de banheiros, etc.).

De que forma o Dia Nacional da Visibilidade Trans combate o preconceito?

Quando a gente mergulha na história do surgimento da data, vemos como essas ativistas trans tinham como enfoque o combate ao preconceito pelo estímulo à naturalização de pessoas trans ocupando espaços – e não apenas zonas marginais das cidades, à noite, no exercício do trabalho sexual. Esse objetivo ainda tem uma importância incontestável atualmente. A cisnormatividade que toma a cisgeneridade como natural e universal e o trânsito de gênero como anormal, suspeito, falso, imoral, ainda tem como consequência ser incomum termos pessoas trans médicas, pessoas trans advogadas, pessoas trans docentes. O Dia Nacional da Visibilidade Trans é um marco no sentido de nos convidar a refletir sobre as causas que levam à excepcionalidade das poucas pessoas trans que alcançam espaços de prestígio.

Mas também a data, lá em 2004, destacava que pessoas trans têm o direito à informação – sobre aspectos de saúde, sobre procedimentos de alteração corporal, sobre direitos. Então gostaria de trazer esse elemento de reivindicação-chave presente no começo da data para dizer que até hoje ela serve não apenas como uma forma de chamar a atenção de pessoas cis; é uma forma de nos manter em contato umes com outres, de compartilhar saberes, de criar uma rede que tenta ao máximo evitar que pessoas como nós se sintam sozinhas, isoladas, sem apoio. É um modo de passar adiante o que aprendemos e nessa coletividade permitir que mais e mais pessoas conheçam a nossa história, tenham um repertório para lutar pelos próprios direitos, saibam como cuidar de si e de sues companheires, tenham horizontes de futuro de realização e bem viver, e se comprometam com um projeto por dignidade, autodeterminação e equidade. Ela é um norte para a gente se organizar.

Por que é importante termos figuras políticas trans, como a deputada federal Erika Hilton?

Poderíamos dar uma resposta imediata que caberia na palavra “representatividade”. Embora isso seja muito importante, não creio que seja o central. Podemos, por exemplo, ter pessoas trans conservadoras, pessoas trans de direita; afinal, nós somos sujeitos complexos, diversos e contraditórios como quaisquer outros. Eu prefiro ver a questão considerando o que a intelectual Sofia Favero elabora em um texto brilhante, intitulado Por uma ética pajubariana: para além do que somos, cis ou trans, é necessário considerar de que modos o mundo nos inscreveu – considerando gênero, mas também classe, raça, deficiência, geração etc. -, (como) marcou nosso campo de entendimento de nós mesmes e nossas possibilidades de circulação no mundo, e o que decidimos fazer com isso.

O que ela (Erika Hilton) e outras parlamentares, como Duda Salabert e anteriormente Érica Malunguinho, fizeram foi trazer essa perspectiva atravessada por uma série de violências sistêmicas e por luta ativista, bem como pelo compromisso em enfrentar racionalidades e práticas de dominação, exploração e extermínio que afetam sujeitos diversos de modo diferente, mas afetam a todos. São parlamentares que não apenas se voltam à defesa e à efetivação de direitos da população trans, mas também de pessoas em situação de rua, de profissionais do sexo, de trabalhadores precarizados, de povos originários, de modos de vida não humana contra a lógica extrativa da monocultura e a crise climática. O enfoque não é em proteção de um grupo e sua inclusão em tal regime; mas desmantelamento do modo como esse regime se estrutura e a conformação de uma configuração social de cidadania pautada em justiça e equidade.

Do seu ponto de vista, o que é mais alarmante na questão dos direitos das pessoas trans?

Duas coisas são mais alarmantes: a natureza de tais direitos e o modo como se efetivam. Grande parte dos direitos conquistados se dão em considerável precariedade. Ou são atos infralegais (resoluções, portarias etc.) e por isso não têm a mesma força que uma lei, ou são direitos reconhecidos pelo Poder Judiciário, também não tendo a mesma estabilidade de uma lei. A implicação óbvia aqui é que não somos consideradas detentoras de todos os direitos previstos em lei como qualquer cidadão. A nós são previstas apenas algumas normas, sempre sob risco de não serem aplicadas em determinados órgãos, municípios e estados; sempre sob risco de revogação.

Quanto à efetivação de direitos, refiro-me ao modo como a materialização de tais direitos tem sido historicamente desenhada por pessoas cis que muitas vezes compreendem pouco ou nada sobre existências trans. Então, quando falamos sobre o desenho de políticas de atendimento à saúde, por exemplo, ao longo da história tivemos em alguns momentos a expectativa de que pessoas transexuais odiassem seus corpos e quisessem realizar todos os procedimentos hormonais e cirúrgicos para terem corpos similares aos de pessoas cis. Ou, no caso de uso do nome social, instituições como escolas e universidades que inseriram em documentos de circulação ampla, como listas de chamada, o nome de registro junto do nome social.

Isso demonstra uma mentalidade cisgênera na implementação de direitos e políticas a pessoas trans, que sequer imagina os danos que pode causar. Se queremos que tais direitos e políticas sejam eficazes, é necessário chamar pessoas trans para participarem de seu desenho. Não dá para apenas ver a população trans como alvo de políticas, é necessário que ela seja sujeito central no seu desenho e materialização. A luta, assim, não é apenas pelo reconhecimento de um ou outro direito, pela sua efetivação mais bem elaborada; é pelo reconhecimento de nossa legitimidade intelectual e enunciativa, de nossa subjetividade política, de nossa dignidade e humanidade. É pela reconfiguração do entendimento do corpo legal brasileiro e da estrutura de políticas públicas de uma forma não cisnormativa.

*Texto de Rafael Dourador, do Serviço de Comunicação Social da FFLCH, com edição de Silvana Salles. A entrevista completa foi originalmente publicada no site da FFLCH. Esta edição mantém o uso da linguagem neutra, em conformidade com o texto original.

Algumas conquistas do ativismo trans:

  • protocolo de atendimento específico à população trans no SUS
  • uso do nome social
  • reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal do direito de pessoas trans alterarem nome e “sexo” em seus documentos de identidade em cartório, sem a necessidade de laudos médicos ou comprovação de alteração corporal
  • apoio de partidos políticos às candidaturas trans, que tem levado a um aumento gradual de pessoas trans eleitas em cargos no Poder Legislativo
  • aprovação de cotas para pessoas trans na graduação e na pós-graduação em instituições de ensino superior

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