Evento na USP reúne lideranças que propõem “aldear” os espaços institucionais no Brasil

Primavera Indígena, organizada pelo Instituto de Psicologia da USP, reuniu lideranças que utilizaram suas vivências para debater saúde mental, vestibular indígena e participação política

 28/09/2022 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 30/09/2022 as 16:29

Texto: Danilo Roberto Silva Queiroz

Arte: Rebeca Fonseca

Encontro na Casa de Culturas Indígenas, localizada no Instituto de Psicologia (IP) da USP, contou com apresentação musical e roda de conversa – Foto: Cecília Bastos

Para marcar a chegada da estação das flores, o Instituto de Psicologia (IP) da USP realizou, no último dia 22, o encontro Primavera Indígena na Universidade – Saberes e experiências de indígenas mulheres. O evento reuniu as líderes indígenas Sônia Guajajara, Chirley Pankara, Kellen Natalice Vilharva Guarani Kaiowá e Julieta Paredes. As convidadas se utilizaram de suas vivências para reunir saberes e dialogar sobre suas experiências individuais e coletivas, dando ênfase às lutas e desafios que enfrentaram e enfrentam enquanto representações indígenas nas estruturas de poder. 

O evento começou na Casa de Culturas Indígenas com uma apresentação musical, seguida de uma roda de conversa com as lideranças, que discutiram política, educação e cultura. A abertura do evento contou com um momento musical, carregado de significados para a cosmologia Guarani, tanto para os Kaiowá quanto para os Mbyá, as duas etnias aliadas à Rede de Atenção à Pessoa Indígena (Rapi) da USP. Os cânticos representaram um momento para reunir saberes, fortalecer o espírito e desejar um novo tempo.

Indígenas que estiveram presentes no evento destacaram a importância desta reflexão, em um ano eleitoral que registra o maior número de candidaturas indígenas da história. Para eles, é preciso “aldear” os espaços representativos de poder. “Se queremos um futuro, ele precisa ser indígena. Pois, insistentemente, têm sido eles os responsáveis por assegurar a biodiversidade no País; ou seja, a vida”, afirmou Sônia.

A apresentação musical, denominada Mborai’i [lê-se mumbaraí], ocorreu em frente à Casa de Culturas Indígenas e representa um momento de afeto, resistência e, sobretudo, ancestralidade – Foto: Cecília Bastos / USP Imagenso

A Primavera Indígena é um movimento que brotou em 2020, reunindo indígenas e liderado pelas mulheres que compõem povos tradicionais. Uma de suas atuações mais expressivas, a Marcha das Mulheres Indígenas, ocorreu em 2021 e foi liderada por Sônia Guajajara, política brasileira, especialista em educação especial e premiada em 2015 com a Ordem do Mérito Cultural. Ela esteve presente no auditório Carolina Bori, do IP, juntamente com Chirley Pankará, Kellen Kaiowá e Julieta Paredes. 

Juntas, as mulheres discutiram com o público presente suas trajetórias pessoais, a participação política, feminismo comunitário, saúde mental e a carreira acadêmica que tem como pressuposto os saberes indígenas. A roda de conversas reforçou a urgência de políticas públicas que permitam a ascensão e assegurem a permanência indígena nas instituições representativas do Brasil, dentre elas, o Congresso Nacional.

O evento também foi transmitido ao vivo. A apresentação de um musical, Mborai’i, está disponível no Instagram da Rede Indígena. Já a roda de conversas se encontra no canal do IP no Youtube.

Karaí Mirim produziu um livro que narra cânticos em guarani. Ele também realizou as artes gráficas que compõem o material – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Fortalecer para florescer

Para as pessoas que compõem a etnia Guarani-Mbyá, as estações do ano são divididas em duas. Primeiro há o velho tempo, um momento mais reflexivo, chamado de Ara ymã. Depois, um novo tempo que precisa ser comemorado, o momento para se expor e desejar mudanças, chamado de Ara pyau. A chegada da primavera simboliza um mundo que precisa ser reerguido e, para fazer isso, é preciso se fortalecer contra as forças que se opõem ao modo de vida indígena.

Os cânticos indígenas foram liderados pelo xondaro Edson Nunes, membro da Rede Indígena. Ele contou ao Jornal da USP que apresenta o Mborai’i em ocasiões especiais. “Em eventos como estes, o pessoal vai reconhecendo as realidades dos povos ancestrais do Brasil e enxerga o quanto precisa construir ações para garantir a nossa permanência nas universidades do País”, contou Edson, conhecido por Karaí Mirim, em guarani. Xondaro designa uma dança, semelhante à capoeira, e também aqueles que a praticam e conduzem as atividades musicais relacionadas.

Karaí Mirim reuniu em livro os cânticos de sua etnia, Guarani-Mbyá. A Rede Indígena pretende distribuir o material em algumas aldeias de São Paulo para fortalecer esses saberes e permitir a multiculturalidade. O trabalho foi escrito em guarani e traduzido para o inglês e para a língua portuguesa, sob coordenação dos professores Danilo Guimarães e Gustavo Massola, ambos do IP. O material também encontra-se disponível de forma virtual nas plataformas digitais.

O evento teve apoio da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), representada por Miriam Debieux, pró-reitora adjunta da PRIP e coordenadora do Laboratório de Psicologia e Participação Política do IP. Segundo ela, é preciso resgatar os saberes desenvolvidos pelas comunidades tradicionais para que se possa construir um espaço de escuta profunda. “A psicologia, neste sentido, atua promovendo um diálogo horizontal capaz de reconhecer que o sofrimento possui diversos causadores, dentre eles a omissão estatal, e não somente uma questão patológica individual”, disse. 

Para a professora e pró-reitora adjunta da PRIP, Miriam Debieux, é preciso romper silenciamentos históricos e promover uma Universidade diversa, enriquecida por diferentes trajetórias de vida – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Semear a ciência

Kellen Kaiowá, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica pela Unicamp, tem realizado estudos em etnofarmacologia, aliando conhecimentos da sua etnia, Guarani-Kaiowá, à ciência tradicional. Questionando os conflitos no campo e sua baixa repercussão nos grandes veículos de comunicação, Kellen relatou que seu povo se encontra muitas vezes sozinho. Para ela, os povos indígenas não conseguem apoio do Estado, nem visibilidade por parte da sociedade civil, que, por falta de repercussão midiática, não se comove com as violências sofridas pelas etnias.

Quando ingressou na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) para cursar Ciências Biológicas, a pesquisadora sentiu a necessidade de trazer algum ensinamento da academia para seu povo, mesmo diante dos conflitos de saberes existentes. Ela ressaltou a importância das cotas indígenas para o enriquecimento da construção do conhecimento nas universidades a partir de perfis pessoais diversos. “O modelo da educação no Brasil não respeita as nossas tradições. Então, me fortaleço a partir da minha ancestralidade. Estou fora do meu território, é preciso lutar da forma como consigo, e faço isso estudando medicina tradicional indígena”, afirmou.

Kellen Kaiowá, doutoranda no programa de pós-graduação em Clínica Médica pela Unicamp, tem aliado conhecimentos da sua etnia, Guarani-Kaiowá, à ciência tradicional – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Germinar a política

Em sua fala, ela destacou que em uma estação nova, como a primavera, que carrega tamanho significado para os povos tradicionais, é preciso fazer florescer também a democracia. Orgulhosa de seu povo, Arariboia, localizado no Maranhão, ela reforçou o papel das mídias alternativas para tornar conhecida a atuação dos indígenas brasileiros. 

Hoje, moradora de São Paulo, Sônia acredita que é preciso fazer um movimento no centro do Brasil, que emergirá para as demais regiões do País. Segundo ela, é preciso pressionar o poder público e obter uma resposta diante da destruição das florestas nativas “que as empresas privadas vêm causando em todo o País, visando tão somente o lucro”. Em toda a história política brasileira, apenas dois indígenas estiveram no Parlamento nacional. 

Uma de suas pautas mais defendidas é a demarcação das terras indígenas. Questionando o agronegócio e as tecnologias que dizem assegurar a biodiversidade, Sônia explica que “demarcar terras indígenas é uma das melhores tecnologias para garantir o futuro da Terra.”

Florescer na educação

Chirley Pankará, líder do movimento indígena, tem buscado em seu povo o conhecimento para desenvolver sua tese de doutorado em Antropologia Social pela USP. Sua investigação tem se debruçado em compreender a cosmopolítica Pankará. Chirley afirmou que tem confrontado o patriarcado diariamente, que reprime a presença de mulheres nos espaços de poder. 

Ela mencionou suas raízes matriarcais como elemento sustentador para resistir às provocações machistas que recebe constantemente. Chirley diz que somente o seu corpo já incomoda a sociedade. “Tanto que eu precisei utilizar essa voz para gritar, reivindicar direitos. O tom de voz que carrego é uma forma de gritar às tantas perseguições que nosso povo sofre”, alega.

Produzir nas artes

Julieta Paredes, uma das impulsionadoras do feminismo comunitário e pertencente à etnia Ayamara, localizada na Bolívia, questionou o que chamamos de América. Para ela, uma construção eurocêntrica, nomeada por uma vivência externa. A poeta e escritora criticou os fenômenos ocasionados pela globalização, como o avanço do trabalho exploratório, que concorrem com o modo de vida indígena e fogem do padrão capitalista.

Julieta defende que os corpos se relacionam com a mãe natureza. “Se queremos ter saúde mental, precisamos saber que isso vai muito além de uma questão não patológica. Mas, é sobre se sentir pertencente aos territórios que são ocupados”, diz.

Como artista, Julieta conta que a música, a poesia e a relação com o próprio corpo sempre estiveram presentes nas culturas tradicionais, “antes mesmo da invasão europeia – não descobrimento – e das normatizações impostas sobre os povos indígenas”. Manifestar isso, para ela, é consolidar uma ancestralidade.  

A Primavera Indígena na USP, organizada por indígenas e membros da Rapi, alerta para um pedido ecoado na voz de Julieta: “Queremos esse espaço de partilha para consolidar as nossas memórias na Universidade e só poderemos revolucionar o conhecimento se nos transformarmos juntos”.

Julieta Paredes tem utilizado principalmente a música para impulsionar o feminismo comunitário e despertar o protagonismo das mulheres indígenas – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Rede de Atenção à Pessoa Indígena

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Dentro da USP, a Rede de Atenção à Pessoa Indígena (Rapi) é um serviço ligado ao Departamento de Psicologia Experimental do IP. O objetivo da rede é articular pessoas e perspectivas que envolvam as comunidades indígenas e acadêmicas na construção de práticas psicológicas que considerem as experiências concretas desses povos. A Rede composta pelos professores Gustavo Massola e Briseida Resende, ambos do IP, propõe somar-se à luta indígena por reconhecimento, soberania e participação nas instituições e políticas públicas brasileiras e é coordenada pelo professor Danilo Guimarães, do IP.

Atualmente, a rede tem atuado sobre as demandas que as comunidades indígenas trazem. A partir de uma escuta atenta, os participantes constroem juntos medidas que possam fortalecer essa relação. Há projetos inter-institucionais sendo desenvolvidos em áreas como vestibular indígena, turismo de base comunitária indígena e produção audiovisual indígena. 

Material produzido pela Rede Indígena sobre a filosofia e o modo de vida na aldeia Tekoa Yyrexakã, localizada na Terra Indígena Tenondé Porã – Ilustração: @aua___art / RAPI

O serviço é responsável pela Casa de Culturas Indígenas, denominada Xondaro kuery Xondaria kuery onhembo’ea ty apy – espaço de aprendizado de saberes ancestrais da USP. O local concentra indígenas de diversos povos e apoiadores, estudantes da graduação e pós-graduação, bem como indígenas que não integram a comunidade universitária, mas se somam às pautas de ingresso diferenciado.

Um dos intuitos da rede é construir uma psicologia para além do padrão judaico-cristão, e se atentar para as particularidades psíquicas dos povos indígenas. Os encontros ocorrem quinzenalmente na Casa de Culturas Indígenas e reúnem algumas etnias do Estado de São Paulo.

A ideia do encontro, construído coletivamente entre PRIP e a Rede Indígena, foi apresentada inicialmente pelo pós-doutorando em psicologia clínica Raoni Machado Jardim, que também esteve presente no encontro afirmando a importância de estabelecer o diálogo intercultural como um eixo da formação superior no Brasil.


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