Curso educativo da USP sobre estigma relacionado ao peso corporal vence Congresso Brasileiro de Nutrição

Em formato on-line, o material propõe orientar profissionais da saúde a promover uma atenção humanizada às pessoas com nível corporal mais elevado

 19/12/2022 - Publicado há 1 ano
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Curso estará disponível em breve para todas as pessoas e propõe combater os estigmas atrelados ao peso corporal por meio de diferentes recursos pedagógicos –  Fotomontagem com imagens cedidas pelos pesquisadores, Flaticon e World Obesity Federation

 

O Grupo de Pesquisa Alimentação e Cultura da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP desenvolveu um curso on-line para profissionais da saúde visando a construir  uma atenção humanizada a pessoas com sobrepeso. Formado por estudantes e pesquisadores da Universidade, o grupo foi o vencedor do Congresso Brasileiro de Nutrição (Conbran) deste ano, que é considerado o maior concurso de nutrição do País. Não são poucos os constrangimentos que pessoas com sobrepeso passam no dia a dia e, de acordo com o Ministério da Saúde, o País possui mais da metade da população nessa condição e enfrenta desafios para superar a questão. Seja no ambiente familiar, nos locais de trabalho ou até mesmo com profissionais da saúde, é crescente o tamanho da discriminação que o peso corporal pode trazer às pessoas.

Fernanda Baeza Scagliusi – Foto: Arquivo pessoal

O trabalho intitulado Elaboração e avaliação de um curso educativo sobre estigma relacionado ao peso corporal para profissionais de saúde foi  desenvolvido por pesquisadores da área de alimentação, como Fernanda Sabatini e Mariana Dimitrov, e por pesquisadores da antropologia, como Ramiro Unsain. Também teve a colaboração das graduandas de Nutrição Luana Cordeiro e Ariel Regina. Sob a supervisão da docente do Departamento de Nutrição da FSP Fernanda Baeza Scagliusi, o curso assume um papel educativo. 

Fernanda destaca que o material desenvolvido desde o início foi pensado de forma horizontal, no qual todos pudessem participar de forma justa a partir dos conhecimentos que estavam desenvolvendo. Ela ressalta o quanto o trabalho foi construído para enxergar a obesidade não como problema, mas como uma questão complexa e pertinente para se pensar, restrita não somente aos cursos de saúde para lidar com isso.

“ ‘Será que essa também não é uma questão para a gente pensar nos nossos projetos políticos-pedagógicos?’ Por exemplo, vamos pensar no curso de engenharia. Os engenheiros projetam os aviões pensando na diversidade corpórea que existe?’Me parece que não. Os banheiros e as poltronas, ao não se adequar a alguns corpos, já demonstram que o estigma não é só verbalizado, mas instituído.” Fernanda Baeza Scagliusi

O curso

Dividido em seis eixos temáticos, com 26 materiais didáticos, o curso foi idealizado ao longo da pandemia. Logo, surgiu a ideia de tratar da questão com uma linguagem e um suporte acessíveis e de fácil compreensão. Além disso, era preciso também ouvir o que as pessoas com sobrepeso tinham a dizer, suas vivências e desafios para que a sociedade as enxerguem como indivíduos, não reconhecidas apenas pela sua composição corporal. 

Para a docente Fernanda, era preciso, então, aproximar os estudos desenvolvidos pela Universidade da sociedade em geral. “Eu acho que a Universidade pode ser a primeira a trazer o debate à tona e mostrar a complexidade que envolve a questão da obesidade”, diz. “Nossos docentes podem não estar preparados para lidar com isso e acabam, assim, reproduzindo estigmas em suas turmas”, complementa.

O curso apresenta diversos formatos para tornar a experiência a mais interativa possível. Há desde videoaulas, podcasts, textos e infográficos, até depoimentos de cinco pessoas obesas. Felipe Alvarenga fez parte de um desses relatos. Graduado em Saúde Pública na FSP, ele também avaliou o curso após finalizado. “Enquanto uma pessoa gorda, preta e LGBT, a nossa vida é atravessada por estigmas de diversas formas ao longo da nossa existência”, conta.

Felipe Alvarenga – Foto: Arquivo pessoal

Uma das provocações que Felipe relata é: o que, na verdade, é saúde? “Lidar com sobrepeso e obesidade enquanto uma questão de saúde não é apenas buscar pela perda de peso, nos reduzindo a um IMC, mas é nos trazer para o comando da própria saúde, da nossa vida”, destaca. Os estigmas também podem ser reforçados quando associam doenças ao tamanho corporal. “No senso comum saúde é ausência de doença. Entende-se que por sermos gordos somos ‘doentes’. A humanização nos cursos da saúde é rasa e muitas vezes malfeita. Por isso, a necessidade de cursos como esse, que não nos trata como objeto de estudo, mas como membros da construção do saber”, complementa.

Para Felipe, a gordofobia está presente no cotidiano de forma explícita ou não. “O mundo não nos quer receber. É possível enxergar isso quando catracas impedem nossa presença, cintos nos apertam ou quando não há jalecos de nosso tamanho”, relata. 

Saúde não é ausência de doença

O grupo de pesquisa também destaca a importância de debater a questão, haja vista que é comum as pessoas associarem pessoas magras como saudáveis e pessoas gordas como doentes. De formas institucional, estrutural e interseccional os estigmas, para Luana, bolsista Fapesp em Iniciação Científica e uma das participantes do grupo, estão por toda parte. “O peso corporal não é um determinante direto das condições de saúde. Precisamos reconhecer a necessidade de desenvolvermos práticas de cuidado em saúde mais justas e equânimes e que estejam de acordo com os princípios do SUS”, diz.

Luana Cordeiro – Foto: Arquivo pessoal

Dentre os estigmas está o bullying sofrido na infância e reproduzido ao longo da vida, a padronização de cadeiras nas salas de aulas, as catracas nos ônibus. Segundo Luana, o pontapé para reverter esse comportamento é desvincular a patologização que corpos devem receber. “Por que não enxergar a gordofobia como violência, assim como encaramos o racismo? Não é simplesmente uma questão de escolha. Precisamos superar a questão como algo clínico. Renda, por exemplo, define o que vou comer. Não é só ir lá e fazer dieta, tem muita coisa por trás”, reforça a estudante.

Para surpresa dela, o que deveria ser apenas, no seu caso, um projeto de iniciação científica se tornou o vencedor do concurso de nutrição. “Isso mostra o quanto o campo da nutrição está aberto a esse diálogo. Está reconhecendo a importância de pautar o estigma relacionado ao peso corporal e cuidar da saúde da pessoa gorda por uma perspectiva humanizada e não culpabilizadora”, ressalta.

A docente responsável também relata o quanto isso evidencia o reconhecimento da potencialidade de jovens estudantes com trajetórias de vidas tão distintas e que desejam impactar socialmente a sociedade por meio do conhecimento que desenvolvem. “Eu acredito numa docência horizontal, sem hierarquias. Eu acredito muito na potência da iniciação científica, no grupo de pesquisa. A Universidade deve abrir caminhos e promover formas de acreditar na importância de um projeto na graduação até uma pesquisa de doutorado”, diz.

Por uma atenção respeitosa

O curso é voltado para profissionais da saúde, mas também pretende estar presente em breve para ser acessado para todas as pessoas interessadas. Seja na plataforma Moodle de cursos de extensão da USP ou como disciplina optativa nos cursos de graduação da Universidade, iniciando-se no Departamento de Nutrição da FSP. De acordo com o grupo de pesquisa, falar de atenção primária à saúde, no caso da nutrição, não é falar em nutricionismo. Ou seja, não é sobre o que você deve ou não comer, mas sobre o tipo de atenção humanizadora que você está estabelecendo.

O grupo chegou a concluir para a elaboração do projeto o quanto, na verdade, a reprodução dos estigmas chega a levar a pioras na qualidade de vida das pessoas com nível corporal elevado. “Quanto maior o grau de obesidade, maior a violência que essas pessoas sofrem. Porque isso afeta diretamente o nível de estresse, a autoestima, a qualidade de vida e, por consequência, acaba por gerar novas doenças. Há mulheres que não fazem exame de prevenção de câncer de mama por conta do seu peso, porque são assistidas da forma como deveriam, que absurdo!”, reforça  a docente Fernanda, que atualmente pesquisa interseccionalidades entre os estigmas e a alimentação. 

A interseccionalidade faz parte da metodologia do curso. O participante não só vai aprender de forma científica sobre a questão, mas perceber os vieses sociais, antropológicos e culturais, por exemplo, em que o estigma se desenvolve. As práticas pedagógicas também apresentam as padronizações que as instituições de saúde estabelecem, por exemplo, nos equipamentos, como aparelhos de mamografia que não são desenvolvidos para atender qualquer corpo. 

Foram muitos os relatos obtidos pelo grupo de pesquisa ao longo do desenvolvimento do curso. Para eles, o que mais espantou foi a comunicação brutal que alguns profissionais de saúde desenvolviam em seus locais de trabalho. Desse modo, eles acreditam que o curso é um alarme para que esses profissionais se enxerguem enquanto agentes políticos de mudança. 

Ativismo político

“Assim como não basta não ser racista é preciso ser antirracista, na saúde é a mesma maneira. Não basta apenas apenas não reproduzir estigmas, é também preciso interrompê-los de forma coletiva”, é assim que o grupo pensa a atuação do projeto.

O Conbran neste ano trouxe rodas de conversa e debates pertinentes para o desenvolvimento de pesquisas que se relacionem com diversidade e inclusão. Com palestrantes compostos de pessoas trans, negras e com deficiência (PCDs), o grupo acredita que é possível estabelecer uma alimentação e, sobretudo, uma atenção humanizada para com pessoas em um nível de massa corpórea elevado.

O curso faz parte de um projeto mais amplo da FSP coordenado pela professora Patrícia Jaime, intitulado Apoio e análise para a implementação das ações na atenção básica da linha de cuidado para sobrepeso e obesidade nos municípios do Grande ABC paulista, que recebe financiamento do CNPq.

Atualmente o curso está em estágio final após passar por um processo de avaliação. O projeto piloto foi testado por 15 profissionais de saúde do SUS. Ao final do curso, as respostas se baseavam no quanto o material foi proveitoso para refletir os impactos que os estigmas em relação ao peso corporal poderiam causar na saúde das pessoas medicamente classificadas como obesas.

Isso demonstra o quanto o material que trouxe a perspectiva do ativismo gordo, segundo os desenvolvedores, não apresenta a obesidade como a causa da estigmatização. “São as pessoas que estigmatizam. Por isso, o nosso compromisso é com a justiça social de forma ampla. Precisamos falar disso nas universidades, nos locais de trabalho, nas instituições, na família, e mostrar que é possível sim normalizar todos os tipos de corpos”, pontuam.

Mais informações: fernanda.scagliusi@gmail.com


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