Aprovação da Lei de Cotas foi marcada por discursos racistas e defesa de hierarquia social

Fim do privilégio branco nas universidades ressuscitou no Congresso Nacional discursos que foram usados no período da abolição da escravidão

 19/09/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Lívia Lemos*

Arte: Gabriela Varão**

Marta Quintiliano, ex-cotista, quilombola do Quilombo Vó Rita e antropóloga à bancada do Plenário do Senado durante sessão especial para celebrar dez anos da Lei de Cotas - Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) foi aprovada em 2012, mas a discussão sobre o tema no Congresso Nacional começou dez anos antes e foi marcada pela disputa entre uma coalizão favorável e uma contrária à proposta. Em sua tese de doutorado, Sérgio José Custódio, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, observou como a coalizão que era contra a Lei de Cotas ressuscitou discursos racistas usados por aqueles que se opunham à abolição da escravatura no século 19.

Esses discursos eram utilizados para estigmatizar a coalizão a favor da lei. Reforçavam, sobretudo, a hierarquia social que a coalizão queria manter, instituída ao longo da história brasileira . “O tempo todo foi um jogo de colar estigmas, preconceitos e, na prática, mobilização do racismo brasileiro”, diz o pesquisador.

Em sua pesquisa, Custódio analisou o processo político que se desenvolveu no Parlamento ao longo dos anos em que a proposta tramitou. O enfoque da análise foi do debate entre a coalizão que era a favor e a coalizão que era contra a Lei de Cotas.

Sérgio Custódio e Conceição Evaristo lendo a tese de doutorado do pesquisador - Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Sérgio Custódio e Conceição Evaristo lendo a tese de doutorado do pesquisador - Foto: Leonor Calasans/IEA-USP

Segundo o pesquisador, o conflito envolvendo as duas coalizões se instalou a partir do momento em que aqueles a favor da Lei de Cotas decidiram reivindicar seu espaço nas universidades públicas: “Essa disputa, marcada pela vitória da coalizão dos Pés Descalços, foi violenta tanto no Parlamento quanto na sociedade brasileira”, afirma Custódio.

Luta pelas cotas denunciou desigualdade na educação

A Lei de Cotas garante 50% das vagas em instituições públicas de ensino superior para estudantes de escolas públicas, entre esses, os de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e com deficiência. A principal missão da lei era democratizar o acesso ao ensino superior, uma vez que a educação desigual deixava os estudantes da rede pública em desvantagem em relação aos alunos da rede particular no vestibular.

A luta pelo direito à universidade por meio de políticas públicas de ação afirmativa começou diante de um cenário comum a quase todos os estudantes da rede pública na virada do século 21. “Eles terminavam o ensino médio e tinham duas alternativas: pagar universidades particulares ou enfrentar os vestibulares tradicionais. Mas havia um grande problema na educação pública brasileira. Mesmo enfrentando os vestibulares, eles não conseguiam entrar nas universidades públicas”, diz Custódio.

Essa desvantagem era comprovada através das fotografias dominadas por rostos brancos e dos números dos aprovados. Segundo o pesquisador, 90% dos alunos tinham o mesmo perfil social – eram brancos e egressos de escolas da rede privada. Diante desse quadro, estudantes, movimentos sociais e cursinhos periféricos levaram a demanda pelas políticas de ação afirmativa às universidades, mas encontraram as portas fechadas.

“Por encontrarem as portas das universidades fechadas, eles migraram para o Parlamento, o que vai ser uma longa caminhada motivada, principalmente, pelas vitórias de comissão a comissão”, conta Custódio.

Ele lembra que, em 2002, esses atores marcharam até Brasília para pedir uma política de inclusão que democratizasse a entrada dos jovens de baixa renda no ensino superior. O argumento central era que uma educação desigual impedia que os jovens da rede pública tivessem as mesmas chances que os oriundos da rede privada para concorrer aos vestibulares.

Discurso meritocrático serviu ao status quo

Do outro lado, a coalizão contra a Lei de Cotas apresentou o argumento meritocrático de que existia no Brasil uma igualdade formal, material, substancial e racial que garantia condições iguais de competição. Essa igualdade tornaria desnecessária a implementação de políticas de ação afirmativa para o acesso à universidade.

“O discurso dominante era: ‘se fulano ou ciclano conseguiu, você também pode’. Eles comemoravam as exceções [da escola pública] que passavam no vestibular, mas não havia uma atenção para a entrada de toda uma geração negra ou indígena em peso na universidade”, conta Custódio.

Protesto contra o sistema de cotas feito por alunos de escolas particulares de Brasília, em 2012 - Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Manifestação contra cotas - Foto: Rose Brasil/Agência Brasil

Ele destaca que a coalizão contrária fez uma defesa incansável do status quo. “Eles queriam deixar tudo exatamente como estava, que os negros e os indígenas da escola pública continuassem no seu lugar. Então, na verdade, o que eles defendiam era a cota do privilégio branco na universidade, que é a mais antiga. Porém, já não havia mais lugar para a cota privilegiada da branquitude”, diz o pesquisador.

Lei de cotas: a nova abolição do Brasil

Custódio classifica a Lei de Cotas como a nova abolição do Brasil, uma vez que, através da lei, o número de estudantes oriundos de escolas públicas nas universidades federais aumentou significativamente nos anos seguintes à sua aprovação. De acordo com dados do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da UFRJ, de 2013 a 2019, a variação porcentual de estudantes negros, pardos, indígenas e de baixa renda foi de 205%.

“Tem que comemorar a vitória da Lei de Cotas, pois ela reconhece que a riqueza de uma nação é a sua juventude. A criança pequena que está na escola pública, quando vê que seu irmão mais velho passou na Medicina na USP, tem seu horizonte ampliado, além de passar a sonhar com convicção”, defende o pesquisador.

Estudantes de escola pública circulando pela USP - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Ele ressalta, contudo, que o acesso não basta. É necessário que as universidades ofereçam políticas de permanência para que os alunos tenham condições dignas de continuar estudando. Apesar de a USP ter sido a última universidade do País a aderir à Lei de Cotas, o pesquisador chama atenção para esse papel de permanência que a instituição vem cumprindo. “No ano passado, a USP criou a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), o que mostra um engajamento com a lei”, argumenta.

A tese de doutorado de Sérgio José Custódio, intitulada Lei de Cotas: mudança estrutural em política pública e vitória suprapartidária da Coalizão dos Pés Descalços no Parlamento do Brasil, foi defendida em abril de 2022 no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades. Para acessá-la em PDF, clique aqui.

*Estagiária do Serviço de Comunicação Social da FFLCH
Com edição de Silvana Salles

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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