Foto: SSgt. F. Lee Corkran, DoD via Wikimedia COmmons

Um susto de concreto que durou 28 anos

Em 13 de agosto de 1961, da noite para o dia, a Alemanha Oriental levantou o Muro de Berlim e separou famílias e ideologias

Texto: Marcello Rollemberg
Arte: Beatriz Abdalla
08/11/2019

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Cruzamos o Muro de Berlim antes que batesse a meia-noite ou ficaríamos retidos

Foi como um susto — um susto que pegou boa parte do mundo desprevenida e durou 28 anos. Literalmente da noite para o dia, em 13 de agosto de 1961, um domingo, Berlim, a antiga capital prussiana e inominável capital nazista, se viu dividida por um muro. A cidade do Portal de Brandemburgo já estava fracionada desde o fim da Segunda Guerra Mundial em quatro áreas de influência criadas pelos aliados que bateram Hitler: Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética. Mas a convivência estava longe de ser pacífica. Mesmo assim, a circulação entre a Berlim Ocidental e sua parcela oriental era livre. Talvez até livre demais para o gosto soviético, já que desde o fim da guerra cerca de 3,5 milhões de alemães orientais migraram para a Alemanha capitalista. Então, os comunistas da República Democrática Alemã levantaram um muro — na verdade, eles levantaram “O Muro”, aquele exemplo de concreto e arame farpado que dava materialização à Cortina de Ferro e à Guerra Fria.

 
Foto: Aad van der Drift via Wikimedia Commons CC BY 2.0
Foto: Aad van der Drift via Wikimedia Commons CC BY 2.0
No começo, ele foi até um tanto tímido, com barricadas e cercas, mas foi o suficiente para apartar famílias e alertar o mundo. Ao longo das décadas, a coisa só fez piorar: o muro chegou a ter 302 torres de vigilância, 155 km de extensão — 43 km percorriam o centro de Berlim —, 66 km de gradeamento metálico, 127 km de redes metálicas eletrificadas e 255 pistas de corridas para a ação dos cães de guarda ferozes, fora fossos e a terrível “Ordem 101”, aquela que dava licença para os guardas de fronteira matarem  qualquer um que tentasse fugir para a fatia ocidental.
 

Muitos tentaram, apesar disso. O número de mortos nunca foi efetivamente contabilizado, mas alguns nomes se tornaram tristemente célebres, como o de Günter Litfin, baleado em 24 de agosto de 1961 — o primeiro de uma série a morrer. Logo depois, em 17 de setembro, Rudolf Urban também morreu, ao tentar cruzar a fronteira do muro pendurado em uma corda que ia de seu apartamento no lado oriental para o terreno capitalista extramuro. Não deu certo.

Foto: White House Photographic Office via Wikimedia Commons
Por quase três décadas, o Muro de Berlim separou uma cidade, a Europa, famílias inteiras e ideologias. E rendeu pelo menos duas frases fortes em discursos de presidentes americanos. A primeira, “Ich bin ein Berliner” (“Eu sou um berlinense”), dita por John Kennedy em 26 de junho de 1963 em Berlim Ocidental. Vinte e quatro anos depois, na mesma cidade, foi a vez de Ronald Reagan conclamar ao secretário geral do Partido Comunista da União Soviética Mikhail Gorbachev: “Mr. Gorbachev, tear down this wall” (“Senhor Gorbachev, ponha esse muro abaixo”).
Dois anos depois, ele caiu, graças aos distúrbios libertários que pipocavam na parte oriental da Cortina de Ferro e por muita inépcia dos alemães orientais. Em 9 de novembro de 1989, depois de muitos distúrbios, o governo comunista alemão resolveu abrir as fronteiras para a Alemanha Ocidental. Em uma transmissão ao vivo pela TV, Günther Schabowski, membro do Politburo alemão, deu a notícia tão aguardada. “Quando?”, perguntou um jornalista. Sem saber exatamente o que dizer, ele respondeu de supetão: “Imediatamente”. Foi a senha para uma multidão se dirigir para o muro, tomá-lo de assalto, escalá-lo e avançar por aquela barreira que dividia irmãos. A fronteira abriu às 23h, primeiro no posto de Bornholmer Strasse e mais tarde em todas as outras. E o resto é história.

“Ninguém poderia imaginar que no dia 9 de novembro o Muro de Berlim cairia”

Essa afirmação é do professor da USP Marcus Vinicius Mazzari, que estava na Alemanha quando caiu o símbolo mais representativo da Guerra Fria

Texto: Claudia Costa

Em 9 de novembro de 1989, o porta-voz da ex-Alemanha Oriental Günter Schabowski anunciou a nova legislação sobre viagens do país e, ao ser perguntado por um jornalista a partir de quando, respondeu que imediatamente. O mal-entendido levou uma multidão de cidadãos da Alemanha Oriental, de regime comunista, a dirigir-se à fronteira interna em Berlim, que, munidos de machados, martelos e marretas, puseram abaixo várias partes do longo muro que dividia a cidade, colocando fim ao símbolo mais representativo da Guerra Fria. Construído em 1961, o Muro de Berlim não apenas dividiu a cidade, como também se tornou o ícone da divisão ideológica em dois blocos políticos antagônicos: o bloco ocidental, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco oriental, liderado pela União Soviética.

O professor Marcus Mazzari – Reprodução/Jornal de Resenhas
Foto: Raphaël Thiémard via Wikimedia Commons CC BY-SA 2.0

Foto: Raphaël Thiémard via Wikimedia Commons CC BY-SA 2.0

“Esse comunicado foi feito à noite e ainda durante a madrugada muitas pessoas atravessavam o muro”, conta Marcus Vinicius Mazzari, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que participou do evento histórico. Mazzari tinha acabado de chegar a Berlim para fazer seu doutorado sobre o escritor Günter Grass, e presenciou a queda e o que viria depois. “Cheguei a Berlim no dia 3 de outubro, que atualmente é um feriado na Alemanha, quando se comemora a reunificação”, relata, comentando que em suas viagens de trem ouvia os cidadãos da Alemanha Oriental falarem sobre o bom momento político. “Mas nenhuma pessoa na face da Terra, nem sociólogos ou políticos, podia prever que o muro cairia em tão pouco tempo”, conta. E acrescenta que, na perspectiva mais otimista, como a de um juiz amigo seu, se as coisas continuassem evoluindo daquela maneira, dali a dez anos a Alemanha estaria unificada.

Para o professor, as mudanças realmente tomaram corpo depois de um discurso realizado, em Berlim Oriental, por Mikhail Gorbachev bastante contrário à política do Partido Socialista Alemão. Mazzari lembra de um bordão de Gorbachev: “Quem chega atrasado é punido pela história”. O professor diz que a partir daí começaram as reformas na República Democrática Alemã. Claro, diz, já havia muitas manifestações. “Em todas as segundas-feiras as pessoas se reuniam nas igrejas.” Mas foi depois do discurso “desastrado” de Schabowski que milhares de pessoas seguiram para o muro, e os guardas, sem saber o que fazer, se retiraram. “Ninguém acreditava, mas todos começaram a passar pelo muro.” Mazzari estava lá, onde se encontrou com o professor alemão de Literatura Brasileira Erhard Engler (tradutor de Jorge Amado), que nunca tido ido para o outro lado. “Os alemães, quando chegavam ao lado ocidental, não acreditavam. Era como um sonho. Eles diziam: nós estamos lá, estamos do outro lado”, relata Mazzari.

Foto: Xizdos via Wikimedia Commons CC BY-SA 4.0

No dia seguinte, juntou-se aos professores Mazzari e Engler o escritor Rubem Fonseca, que também estava em Berlim no momento da queda do muro. “Andamos muito por lá.” A recepção, como conta o professor, por parte dos alemães de Berlim Ocidental era muito entusiasmada e hospitaleira. “Era uma confraternização de um povo que ficou separado por 28 anos.” E continua: “Já havia a divisão, as pessoas circulavam pelos dois lados não tão facilmente, mas com o muro ficou impossível. Muitas pessoas morreram, e até pouco antes da queda do muro houve mortes de quem tentava atravessá-lo.”

Foto: Jurek Durczak via Wikimedia Commons CC BY 2.0

Mazzari ficou em Berlim até julho de 1994, testemunhando as transformações ocorridas na Alemanha. “Muitos jovens migraram para as cidades ricas da Alemanha Ocidental, acarretando vários tipos de problema. Algumas cidades da Alemanha Oriental se esvaziaram, entrando em profunda decadência”, relata. Emprego não era um problema, havia muitos. “Antes da chegada dos alemães do lado oriental, o lado ocidental importava muita mão de obra turca”, contextualiza.

Os cidadãos da Alemanha Oriental em fila para pegar os 100 marcos alemães de boas-vindas. – Foto: Roehrensee via Wikimedia Commons CC BY-SA 3.0

O próprio Estado apoiava essa união, trocando marcos orientais pelos marcos ocidentais, até a reforma monetária que extinguiu o marco oriental. Além disso, o Deutsche Bank injetou muito dinheiro na Alemanha Oriental. Mazzari ainda lembra que, no dia seguinte à queda do muro, os alemães que chegavam pela primeira vez à parte ocidental recebiam de presente 100 marcos ou o Begrüssungsgeld (“dinheiro de boas-vindas”) – o equivalente hoje a R$ 400,00.

Segundo o professor, havia políticos com visões inteligentes sobre o processo de desenvolvimento alemão, como Willy Brandt, que tinha uma posição social-democrata, mais clara que a do próprio chanceler Helmut Khol. O professor cita uma frase repetida por Brandt em todos os seus discursos, “Es wächst zusammen, was zusammen gehört” (“Que cresça junto o que deve crescer junto”, na livre tradução de Mazzari), que se tornou um mote de toda a história alemã. 

Apesar de várias tentativas em se evitar o pior, vieram as desilusões. “Desilusões essas que estão na raiz do crescimento atual da extrema direita na antiga Alemanha comunista”, ressalta Mazzari. “O muro caiu, mas não para alguns. Começaram a surgir os conflitos, preconceitos e até piadas, relacionando os alemães orientais como atrasados. Nas universidades, por exemplo, houve uma limpeza. Para ser professor era preciso ser do Partido Comunista, mas após a queda muitos perderam os empregos.”

Foto: Sharon Emerson via Wikimedia Commons CC BY-SA 3.0

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O Muro, entre a realidade e a ficção

Ainda hoje, segundo Mazzari, há muito ressentimento com a reunificação. “Grandes intelectuais alemães, como o próprio escritor Günter Grass, eram contra a reunificação na forma tão rápida como aconteceu. Para eles, na verdade, não era uma reunificação e sim a anexação da República Democrática Alemã pela Alemanha Ocidental.” A reunificação foi vertiginosa, nas palavras de Mazzari. Menos de um ano depois da queda do Muro de Berlim, a Alemanha já estava reunificada, e a primeira grande consequência foi o fim da União Soviética, em 1991. Também nos anos 90, Günter Grass lançava o romance político Um Campo Vasto, um dos primeiros sobre a reunificação da Alemanha. “Uma crônica picaresca da reunificação alemã, de rara ousadia, compondo tableaux sobre os quais o autor projeta e prismatiza uma visão extremamente crítica dos acontecimentos depois da queda do Muro de Berlim, no dia 9 de novembro de 1989″, analisa, lembrando que a queda do muro é um tema recorrente na literatura alemã.

“Passados 30 anos, ainda há problemas”, diz Mazzari, citando como exemplo as eleições recentes no Estado da Turíngia, no leste da Alemanha, onde se pode acompanhar um crescimento preocupante da extrema direita. “Felizmente a esquerda venceu.” O partido Die Linke (A Esquerda) ganhou as eleições sobre o partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD). Mesmo com todas as consequências e desilusões, o professor ainda relembra um fato comovente, um dia depois da queda do Muro de Berlim: “Pessoas que estavam no ponto de ônibus, cidadãos de Berlim Oriental, já muito idosos, que 40 anos antes estiveram em Berlim Ocidental, comentavam sobre a linha que passava em lugares que conheciam, lembrando da infância vivida do outro lado do muro”.

Em direção à democracia

Um evento organizado por Brigitte Weiffen, professora visitante do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e titular da Cátedra Martius de Estudos Alemães e Europeus na USP, ocorrido no último dia 7 de novembro, relembrou os 30 anos da queda do Muro de Berlim através de memórias, narrativas e estudos. Segundo ela, a queda do muro teve um forte impacto na Alemanha por acabar com a divisão do país, que tinha existido depois da Segunda Guerra Mundial, e com o confronto entre os blocos democráticos e capitalistas do oeste e dos blocos comunistas sob a influência da União Soviética. “Além de abrir a possibilidade do caminho para a reunificação, que não foi clara no momento inicial, mas que aconteceu de forma rápida, é preciso analisar o contexto mais amplo de várias transições democráticas. Não só na Europa, onde houve várias manifestações acontecendo desde os anos 80, como na Polônia, por exemplo, e o início das reformas políticas e econômicas na União Soviética, que significaram menos repressão a movimentos reformistas em países dos blocos comunistas, mas também em outros lugares do mundo. Nesse sentido, a queda do muro foi um forte símbolo para essa virada em direção à democracia.”

A professora reitera que todos pensaram que estavam em um caminho para um futuro democrático liberal. “Mas neste momento, 30 anos depois, na Europa e em outros lugares do mundo, há um crescimento de vários movimentos de forças nacionalistas, populistas e autoritárias, principalmente na Alemanha, que capturam as frustrações remanescentes.” Para Brigitte, a reunificação é vista de forma ambígua: a maior parte da população enxerga o processo de forma positiva, mas há aqueles que perderam seus empregos e seus status por causa das várias reformas que estavam acontecendo. “De início, a população alimentava empatia com partidos de esquerda, mas isso mudou, e os ‘setores frustrados’ se viraram para o espectro ideológico da direita, com o crescimento da Alternativa para a Alemanha (AfD).” Atualmente, afirma a professora, há uma tendência em se polarizar o cenário político, e “talvez a queda do muro seja uma boa lembrança dos aspectos positivos da democracia e da liberdade”.

Infografia: Beatriz Abdalla/Jornal da USP com imagens de Wikimedia Commons CC BY-SA 3.0


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